Cultura

Como o folclore conta o Brasil

Personagens do imaginário popular refletem traços de diversos ‘brasis’

Texto: Cindy Damasceno / Ilustração: Marcos Muller / Design: Bruno Ponceano

22 de agosto de 2022 | 05h00

Saci, Cuca e Curupira: é provável que o leitor reconheça de cara a seleção que abre este texto. As personagens são figurinhas carimbadas e vez ou outra aparecem como heróis de contações por aqui – principalmente quando o assunto é folclore brasileiro, celebrado neste 22 de agosto. A coletânea cultural nacional, no entanto, não se restringe à esta tríade: de norte a sul, o país reúne centenas de personagens que registram – e protagonizam – uma versão da história do país no mundo do fantástico.

É que o contar é a forma do povo assimilar o que acontece ao seu redor. Reflete as mudanças do tempo e do cotidiano: uma explicação que se veste na territorialidade e é repassada em diversos sotaques. “O folclore é uma mediação de informação. A voz é uma força poderosa de transmissão de conhecimento e mediação cultural e comunicacional”, diz Luiz Tadeu Feitosa, professor de cultura e mídia na Universidade Federal do Ceará (UFC).

ARRANCA LÍNGUA (CENTRO-OESTE)
Figura maligna parecida com macaco que, durante o século XX, assombrou a região de Minas e Rio de Janeiro por arrancar a língua do gado. É descrito como um 'homem amacacado', como um gorila, de braços compridos, mãos grandes e rosto chato e pode ser considerada uma explicação popular para febre aftosa.

ONÇA DA MÃO TORTA (CENTRO-OESTE)
Criatura toda rajada e com uma das patas dianteiras completamente torta. Por ser encantada, nada acontece se alguém atira nela. Dizem que ela é a alma penada de um vaqueiro velho muito mau que vivia na região central do Brasil

ANTA ESFOLADA (NORDESTE)
Anta 'enfeitiçada' que, durante caçada às antas no século XIX, teria sobrevivido a um esfolamento. Foi preciso exorcismo para que a região se livrasse do animal

CABELEIRA (NORDESTE)
Assassino que viveu no século XVIII em Recife e que, posteriormente, entrou para o imaginário da região

COBRA NORATO (NORTE)
Filho do boto com uma Índia, Cobra-Norato é uma entidade que vive nas proximidades do rio Tocantins. Os sulcos que deixa na terra são a origem dos igarapés. De grandes feitos, Cobra-Norato é cobra de dia e, à noite, vira um homem vestido de branco chamado Honorato

TAPIORA (NORTE)
No fundo dos charcos e igarapés do rio Madeira, no Norte do país, vive uma onça, a Tapiora. Ela ataca pescadores e marisqueiros em seus barcos. O que denuncia a chegada da Tapiora é o cheiro forte. Em outras versões a criatura possui cabeça e cascos de anta e ataca caçadores quando eles não respeitam as leis da caça como, por exemplo, matar fêmeas grávidas

LOIRA DO BANHEIRO (SUDESTE)
Em algumas versões, a Loira do Banheiro é uma moça vaidosa que, após ver um vulto no espelho do banheiro da escola, escorregou e bateu a cabeça, morrendo no local. Desde então assombra todos os banheiros escolares. Para invocá-la é preciso acionar todas as descargas ou chutar com força algum vaso sanitário

MÃO DE CABELO (SUDESTE)
Entidade que tem a aparência de um ser humano magro com muitas mechas de cabelo nas mãos. O Mão de Cabelo tem como alvo predileto crianças pequenas que fazem xixi na cama. Outra versão dá conta de uma velha muito magra, vestida de branco, com dedos macios como cabelos. À noite, ela visita as casas e passa as mãos peludas nos rostos para que a pessoa “pegue no sono”

MÃE DO OURO (SUL)
Entidade que protege o ouro e ajuda os homens a encontrá-lo. A mitologia da Mãe do Ouro está ligada ao ciclo do ouro no Brasil. Em algumas regiões, como no Rio Grande do Sul, a Mãe do Ouro se manifesta sob forma de fogo, raios e trovões. Já no Paraná, a personalidade é uma mulher sem cabeça que guarda as minas de ouro

ZAORIS (SUL)
Zaoris seriam homens que nasceram numa Sexta-feira da paixão. Em aparência, seriam rapazes comuns, mas seus olhos teriam um brilho especial: nada se esconde deles

Quando se fala de folclore, estamos falando de gente – o termo é uma junção expressão “abrasileirada” de folklore – folk (povo) lore (conhecimento), e no pé da letra pode ser traduzido como “conhecimento do povo”. Isso vale para qualquer manifestação porque o jeito que se veste, se dança e se come também é folclore.

As personagens mitológicas são uma faceta desta ‘culturalidade’. Por isso, entender como se conta e o que se conta é uma forma de visualizar, no imaginário coletivo, como as relações foram construídas, explica Frank Wilson Roberto, coordenador acadêmico da Companhia Folclórica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), traz a provocação: “As manifestações culturais estão ligadas aos espaços físicos, geográficos, ao território do homem e do povo que produz isso.”, explica.

O primeiro passo para perceber esta construção imagética de Brasil é saber que, apesar de compartilharem acontecimentos, cada região têm sua individualidade – e o que o imaginário popular é fruto dessas peculiaridades. “Mesmo que a gente tenha origens semelhantes com a questão da africanidade, da questão indígena, do colonizador, cada parte seguiu uma cultura orgânica.”, explica Lourdes Macena, professora do Instituto Federal do Ceará (IFCE) e integrante da Comissão Cearense de Folclore.

Erra quem hierarquiza a explicação popular como forma menos valorosa de justificar o que se vê no dia a dia. “A cultura folclórica é a vida do homem simples da forma que ele entende o seu cotidiano. Ela não advém dos livros, ela vem da prática.”, defende Macena. O imaginário, aponta Tadeu Feitosa, é tão real quanto o real porque traduz, em símbolos, o que se enxerga de eventos reais. “O que muda é essa relação direta com a natureza. E a diferença se dá pelas identidades de cada cultura. São contados com a dicção e o sotaque de cada lugar.”, complementa.


Território

O esforço de mapear as manifestações regionais a partir da mitologia e do folclore já foi feito antes. Na década de 1940, o historiador potiguar Luís da Câmara Cascudo reuniu em sua pesquisa as influências culturais nos diversos estados brasileiros. A coletânea de apontamentos foi lançada em 1947 sob o nome de Geografia dos mitos brasileiros e traz, à luz da análise de referências, o inconsciente de cada território diante da influência européia, dos povos originários e dos povos africanos.


O que se vê

Cada região apresenta sua leitura sobre fenômenos, mas certas figuras se repetem no inconsciente coletivo. Separamos alguns dos perfis que mais aparecem entre as histórias que reunimos aqui.

Fauna fantástica
Onça, cobra e boi: os animais se repetem no imaginário popular brasileiro e a roupagem da história depende do local. No caso das histórias relacionadas ao boi, a cena é parecida apesar da variação de região para região: envolve o sacrifício do bovino para satisfazer algum desejo ou aposta.

Protetores da floresta
Além do Curupira e da Caipora, outros seres da floresta também aparecem como protetores dos animais e da natureza. Na região Norte, conta-se da Mãe da Mata, entidade que rege a fauna e a flora. Os trabalhadores, ao saírem de seus acampamentos na mata, desatam as redes ou desarmam as camas com medo da Mãe da Mata colocar gravetos envenenados que podem fazê-los dormirem profundamente.

Nas águas
Figuras marinhas e ribeirinhas também se repetem na coletividade – o Brasil é cortado pela influência de rios e mares. Em Pernambuco, a Cachorrinha d’Água é uma das entidades e aparece às margens do São Francisco para secar-se ao sol. Acredita-se que quem avistar o animal terá uma vida de sorte.

Cuidado com o Bicho-papão
Do Homem do Saco à Cabra-Cabriola, o Brasil tem o seu portfólio de histórias de entidades com preferências por crianças levadas. Em Alagoas, o João Galafoice não pode ver criança fujona. O destino é certo: rapta o pequeno e não devolve nunca mais.

Pregadores de peça
Encabeçados pelo Saci, os pregadores de peça são espíritos ou entidades que gostam de tirar as coisas do lugar. O Romãozinho, no Centro-Oeste, tem como principal diversão preparar situações humilhantes. De acordo com a sabedoria popular, o travesso é invisível para os adultos e só as crianças são capazes de enxergá-lo.

“Você enfraquece um povo que não se conhece, não sabe da sua cultura e das suas tradições. É importante se reconhecer, o folclore é patrimônio imaterial brasileiro.”,  conta Januária Cristina Alves, jornalista de formação e estudiosa da tradição oral brasileira. “É preciso lembrar do folclore para além do dia 22 de agosto”, defende. Pernambucana, a pesquisadora cresceu rodeada por histórias fantásticas contadas pela família.

O interesse de Januária, surgido na infância, rendeu livro na vida adulta: o Abecedário de personagens do folclore brasileiro, lançado em 2017 pela FTD, traz mais de 140 personagens de histórias contadas Brasil afora – parte dos materiais recolhidos neste texto, inclusive, se baseiam nesta pesquisa da autora.

Para ilustrar essa diversidade, o Estadão, distribuiu, em tabela, a série de histórias ouvidas por Alves. Alguns personagens compartilham similaridades, apesar de suas particularidades: para se debruçar sobre as peculiaridades de cada um, basta pesquisar por região.



Personagens do folclore brasileiro



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Editor executivo multimídia Fabio Sales / Editora de infografia multimídia Regina Elisabeth Silva / Editores assistentes multimídia Adriano Araujo e William Mariotto/ Colaboração Laís Almeida e Lucas de Amorim

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