A revolução digital chegou como um furacão em um mar acostumado com ventos tranquilos: o mercado financeiro brasileiro. Os grandes bancos, que sempre trabalharam com forte rentabilidade, estão sendo obrigados a se reinventar, de acordo com o presidente do Bradesco, Octavio de Lazari. “Tivemos de nos moldar à nova concorrência. Mas aquilo que não me mata, me fortalece”, afirma, em entrevista ao Estado
“Antigamente eu acordava de manhã e sabia que meus concorrentes eram Itaú, Santander, Banco do Brasil e Caixa. Eu mais ou menos sabia as armas que eles iriam usar. Agora, novos competidores podem surgir a qualquer momento”, diz Lazari, ilustrando as mudanças pelas quais o setor vem passando nos últimos quatro anos. “Antes, todo mundo cobrava tarifa. Mas como esses novos bancos não têm ainda de dar lucro, então eles não cobram. Aí eu também não posso cobrar.”
A chegada dos bancos digitais e a forte queda nos juros deverão ter impacto na rentabilidade dos bancos brasileiros no médio e longo prazos, na visão de Lazari. “É muito provável que, no futuro, os bancos não vão conseguir mais dar 20% de retorno sobre o patrimônio. A gente deve ir para patamares mais próximos dos EUA em rentabilidade.”
Dentro da “revolução digital” do Bradesco, o movimento mais visível até agora foi a criação do banco digital Next. Mas, nesses tempos de adaptação a uma nova realidade do mercado, a estratégia do Next também teve de ser revista para fazer frente a rivais como o Nubank e o Inter.
O Next começou voltado aos millennials e cobrando tarifas, mas precisou abrir o leque de público e oferecer serviços gratuitos. Em breve, o banco passará a ter estrutura independente do Bradesco, tanto para alçar voo próprio quanto para se livrar das amarras regulatórias que o Banco Central (BC) aos grandes bancos e a suas controladas.
Em meio à transformação do mercado, o Bradesco aproveita o fato de ainda ser muito lucrativo – somente no primeiro semestre, os ganhos da instituição somaram R$ 12,7 bilhões – para pavimentar o caminho em meio a uma concorrência muito mais acirrada.
Em 60 dias, o banco relança a corretora Ágora e, mais adiante, uma empresa de pagamentos. A ideia é que os projetos paralelos sejam cada vez mais independentes. “Minha missão é criar ativos para essa organização. Tudo o que a gente criar deve ter vida própria. Amanhã posso abrir o capital do Next ou da Ágora.”
Na entrevista ao Estado, ele também falou das mudanças no perfil das agências bancárias e da transformação das equipes do Bradesco. “As habilidades das pessoas hoje são totalmente diferentes”, diz, citando que o banco já contratou antropólogos e filósofos para tentar entender seu “novo” consumidor. “Talvez hoje o Octavio não tivesse mais chance de trabalhar no Bradesco.”
A série de entrevistas Choque Digital será publicada semanalmente pelo Estadão e mostrará os esforços de empresas de diversos setores para buscar respostas para os desafios impostos pelas transformações digitais
Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista:
Os serviços das fintechs estão mais parecidos com os dos bancos tradicionais. Isso aumenta a pressão sobre as instituições?
Era um movimento natural para as fintechs – não havia outra alternativa. Não há como rentabilizar o negócio sem agregar produtos. Existem vários exemplos, como o do Nubank, que está aí há sete anos. Ele não tem rentabilidade, mas tem valor de mercado estimado em US$ 10 bilhões. A busca por novos produtos é uma forma de fidelizar, de evitar perda de clientes. Porque os investidores (em participações acionárias de bancos digitais) um dia vão deixar de se guiar somente pelos múltiplos de faturamento. Ainda mais em um momento em que as pessoas tendem a centralizar todas a vida financeira em um ou dois bancos, no máximo.
Eles representam uma ameaça?
A capacidade de fazer concorrência para grandes bancos se eleva. No fim das contas, eles já eram concorrente em cartões, conta de pagamento ou adquirência (captura de transações em cartões de crédito). Agora estão se especializando.
A Cielo nunca mais será aquela empresa que dava R$ 4 bilhões de resultado por ano, com 60% de geração de caixa. Não existe mais isso
Ao lançar o Next, o Bradesco cobrava pela conta corrente, mas logo teve de mudar a estratégia. Ou seja: os bancos digitais estão obrigando os “bancões” a mudar?
Esses bancos trouxeram dois pilares fundamentais. Primeiro é a concorrência em novas arenas. Antigamente, eu acordava de manhã e sabia que meus concorrentes eram Itaú, Santander, Banco do Brasil e Caixa. Eu mais ou menos sabia as armas que eles iriam usar. Agora, novos competidores podem surgir a qualquer momento. E mais: antes, todo mundo cobrava tarifa, então eu tinha de oferecer o melhor serviço (para reter o cliente). Mas como esses novos bancos não têm ainda de dar lucro, então eles não cobram (tarifas). Aí também não posso cobrar, porque se eu cobrar o Next não decola. Tivemos de nos moldar. Mas aquilo que não me mata, me fortalece. E está dando certo: nós já batemos 1,5 milhão de clientes no Next.
O Next vai ser mesmo separado do Bradesco?
Sim, o Next não poderá ser mais visto como um banco que pertence ao Bradesco, então vai ser totalmente separado. Vai ter sua própria administração, sua estrutura física fora da Cidade de Deus para de fato concorrer (com as demais fintechs) e ser enxergado pelo Banco Central dessa forma. Porque hoje ele tem de observar as mesmas regulações do Bradesco. Por isso ele será apartado.
O Next usa a estrutura do Bradesco?
Ele vai usar como um open bank (banco aberto). O Next vai vender produtos de muitos parceiros, e o Bradesco vai ser um deles. Vai usar o empréstimo ou o seguro do Bradesco – e pagar uma taxa por isso.
Seria um parceiro exclusivo?
Não necessariamente. Nada me impede, com as regras do open banking, de ter outros serviços de outros parceiros. Inclusive de investimentos. O Next poderá oferecer um papel de um outro banco.
É muito provável que, no futuro, os bancos não vão conseguir mais dar 20% de retorno sobre o patrimônio. A gente deve ir para patamares mais próximos dos EUA de rentabilidade
É possível ter uma abertura de capital do Next no futuro?
É o caminho natural, deve acontecer.
Falando de regras. O sr. acredita que as fintechs, à medida que crescem, devem ter mais obrigações com o BC?
Sim. Uma coisa é uma fintech pequena, de risco muito controlado. À medida que esses bancos vão crescendo, o Banco Central tem de adotar novas regras. Lógico que não vai ser a mesma regra aplicada ao Bradesco ou a outros grandes bancos, mas precisa ser o suficiente para preservar a saúde dessas instituições e evitar riscos ao sistema. O Nubank tem 10 milhões de clientes. Não se pode abrir mão da segurança. Apesar da crise econômica que vivemos nos últimos cinco anos, que obrigou as empresas a jogarem como perda cerca de R$ 500 bilhões, nenhum banco brasileiro teve problemas. Por isso, o sistema tem de ser preservado.
O Bradesco vê a possibilidade de incorporar alguma fintech?
Não. A gente tomou a decisão muito clara. Podemos fazer algum negócio muito pequeno e pontual, em áreas como inteligência, ciência de dados e análise de crédito. Mas uma fintech maior, um Nubank, não. Não faz sentido para nós, porque construímos o Next do zero.
Existe uma ‘bolha’ de fintechs? O total de bancos digitais tende a diminuir?
Não temos crescimento econômico para suportar o total atual de bancos digitais, então vai ter um adensamento. No entanto, vão sobrar vários, além dos incumbentes (grandes bancos). Alguns bancos digitais já adquiriram musculatura suficiente.
O Next ajudou o Bradesco a conquistar os millennials?
O Next nasceu como um banco para millennials. Mas vimos que essa não era a estratégia correta. Se continuássemos nela, não estaríamos abrindo 8 mil contas por dia. Hoje, qualquer pessoa, de qualquer faixa etária ou de renda, pode abrir uma conta no Next. Faz sete meses que mudou. Coincidiu com a decisão de deixar de cobrar tarifas.
Então, a escolha por um banco digital não tem relação com idade?
Zero. Por incrível que pareça, a relação mais forte do Next é com pessoas de 30, 35, 40 anos.
Como o Bradesco vai renovar a própria oferta digital?
Pelo open banking. Não adianta querer lutar contra, é uma realidade. Desenvolvemos a nossa plataforma de micro e pequeno empresário, que tem um ‘chassi’ de Bradesco, mas todos os serviços que estão lá – contratação de contador, controle de estoque, curso de gestão financeira, por exemplo – são terceirizados. Tem uma série de empresas que já estão plugadas com a gente via open banking. Não saiu ainda a regulação do Banco Central, deve provavelmente sair em 2020, então vamos ver como vai ficar
Minha missão é criar ativos para essa organização. Tudo o que a gente criar deve ter vida própria. Posso abrir o capital do Next ou da Ágora.”
Ou seja: os grandes bancos estão com uma nova mentalidade.
Mudou demais. Antes todos os bancos pensavam apenas no produto. A atenção era para o desenvolvimento se encaixar no sistema do banco. Especialmente de quatro anos para cá, houve uma mudança. O foco passou a ser o cliente. Então não é só a pessoa de produtos pensando. É um time que tem cientistas de dados, comercial, uma equipe multidisciplinar de desenvolvimento. O MEI foi um exemplo disso. Fizemos grupos de pesquisa em sete cidades brasileiras para perguntar o que o microempresário precisava. Desenvolvemos de acordo com a demanda deles, não no que era mais fácil para o sistema do banco.
É um modo de trabalho mais próximo ao das empresas de tecnologia?
É uma empresa de tecnologia pura, especialmente na área de produtos e serviços. Não há mais um gerente departamental, mas filósofo, cientista de dados e antropólogo. Os skills (habilidades) das pessoas são totalmente diferentes. No fim desse processo, tem uma pessoa de compliance, que só diz se é possível ou não fazer. Mas essa pessoa não é mais parte do processo criativo. Mudou totalmente. Talvez, hoje, o Octávio não tivesse mais chance de trabalhar no Bradesco.
O Bradesco está realizando o segundo PDV (Programa de Demissão Voluntária) de sua história, citando justamente a tecnologia como motivo...
Os estudos mostram que, dois anos após se fazer um PDV, é necessário realizar outro, porque existe o rescaldo de quem queria ter entrado no anterior e muitas vezes se arrependeu. Serve também para gente perto da aposentadoria. Tem departamentos cujo trabalho hoje é feito pela inteligência artificial. O prazo para adesão vai até 15 de outubro. Tenho certeza que o ajuste terá o tamanho apropriado.
Mas esse tipo de PDV pode ajudar a mudar o perfil do quadro de funcionários?
É natural, pelo perfil profissional necessário hoje. Isso está acontecendo em qualquer empresa. Essa semana mesmo estamos contratando mais 64 cientistas de dados. Há cinco ou dez anos atrás não era assim. Antes, basicamente, a gente contratava economista, administrador, advogado e contador.
Como será o formato das agências daqui em diante?
O ponto de atendimento vai continuar sendo importante para captar clientes. Mas o total e o tamanho das agências vão diminuir. Antes as agências tinham mil metros quadrados. Hoje, com 300, 400 metros quadrados, você atende bem. Então esse ano vamos fechar entre 150 e 200 agências e mais 200 no ano que vem. Temos de ser pragmáticos. Vou ter agências nas quais o cliente pode fazer todos os serviços e outras que vão ser mais limitadas, com um quadro muito mais leve.
O mercado de cartões também está bem mais concorrido. Como fica a Cielo, da qual o Bradesco é sócio, nesse cenário?
A Cielo nunca mais será aquela empresa que dava R$ 4 bilhões de resultado por ano, com 60% de geração de caixa. Não existe mais isso. Com a mudança da legislação e a abertura de mercado, o novo normal da Cielo será uma empresa de R$ 1,6 bilhão, R$ 1,7 bilhão de faturamento. Mas a estrutura do pagamento via cartão de crédito no Brasil está muito bem implementada, enraizada. Não é como na Índia ou na China, onde as pessoas não chegaram a usar o cartão. Nesses países, implementar o pagamento via celular foi muito mais fácil. Mas o Bradesco e a Cielo estão se antecipando com relação ao QR Code e ao pagamento via celular. A previsão é que 30% dos pagamentos nos próximos três anos serão feitos dessa forma.
Mas não é necessário estar preparado para a concorrência de empresas de tecnologia?
A concorrência vai ser muito mais severa. Já disse anteriormente que não tinha medo das fintechs, e sim das ‘big techs’ (grandes empresas de tecnologia). Ao mesmo tempo, não é tão fácil assim montar um banco. Tanto que nem a Apple nem a Amazon fizeram isso nos EUA. A gente viu um monte de bancos estrangeiros indo embora – só ficou o Santander. O setor bancário tem uma série de exigências de capital. É diferente do que acontece no setor de tecnologia, no qual a empresa só pensa em multiplicar o faturamento. Acredito muito em parcerias para produtos e serviços do que numa guerra (entre bancos e empresas de tecnologia). O Bradesco está fazendo parcerias, uma delas é com o WhatsApp. Será possível usar a BIA para dizer que quer fazer uma transferência pelo WhatsApp.
E o WhatsApp é um serviço importante, porque as pessoas estão lá o tempo inteiro.
Seria fantástico. Mas o que adianta eu fazer um sistema pelo WhatsApp só para o Bradesco? É preciso que os bancos se unam para ser relevante. E é exatamente isso o que o Banco Central quer fazer, criar uma plataforma para todas as instituições. Aí não vai importar seu banco, mas sim o comando que você der aqui (no WhatsApp). Se isso ocorrer, acho que acelera esse processo.
Como o cenário de juros baixos, o que o Bradesco pode fazer para capturar a migração do cliente para a renda variável? E como fazer isso digitalmente?
Dentro de 60 dias, vou relançar a corretora Ágora, que o Bradesco comprou e botou para dentro do ‘bancão’. Ela virou uma corretora do Bradesco. Com os juros de 5% ou 4,5%, um pedaço do mercado vai para renda variável. Precisamos embarcar essa tecnologia na internet, tanto no Bradesco quanto na Ágora, para que o cliente possa fazer as operações de maneira muito simples. Não pode ser nada muito complicado.
Então o Bradesco acredita que os negócios têm mais chance de sucesso se não incorporá-los. Eles passarão a ter vida própria?
Acredito 100% nisso. Minha missão é criar ativos para essa organização. Tudo o que a gente criar deve ter estrutura e vida próprias, para a gente conseguir monetizar. Amanhã, posso abrir o capital do Next, da Ágora, da minha empresa de pagamentos.
A ideia é que as empresas do InovaBra sejam mais prestadoras de serviço do que tenham de ser compradas pelo Bradesco?
A ideia é que tenham vida própria. Se eu boto para dentro, ela vira uma empresa que atua somente para o Bradesco. Se não fizer isso, ela pode prestar serviço para o Itaú, Santander, Petrobrás, Vale...
Qual é o papel do InovaBra para o Bradesco?
É fundamental. Hoje, investimos em quase 20 empresas, todas fintechs. A gente tem 10% de uma, 20% da outra – no máximo, temos 25%. Respeitamos a administração, temos outros sócios. Essas empresas têm de gerar o próprio caixa, em vez de depender toda hora de uma nova rodada de captação de recursos.
O Bradesco está fazendo uma grande mudança tecnológica e é desafiado. O céu de brigadeiro dos bancos ficou para trás?
Bem na minha hora! Os bancos tinham um status quo sereno. Hoje, não. Graças a Deus a gente tem lucro. Por isso o banco tradicional é tão importante: gera lucro para que eu possa fazer investimentos nesses novos negócios. O Next não deu lucro, e não vai dar lucro nos próximos quatro anos. Isso vale também para o InovaBra e para as finetchs que a gente investiu. E todos os outros negócios que a gente vai criar daqui para frente.
Sabe quantos funcionários eu tenho no Bradesco para cuidar da parte tributária? 350. Com a simplificação, eu poderia resolver isso com 30 pessoas
Se a era das tarifas ficou para trás, como os bancos vão ganhar dinheiro daqui em diante?
Escala. Não tem outro jeito. É muito provável que, no futuro, os bancos não vão conseguir mais dar 20% de retorno sobre o patrimônio. Com taxa de juros de 4,5%, com inflação de 3%, a taxa real cai para 1,5%. Como vai dar 20% de retorno? A gente deve ir para patamares mais próximos dos EUA de rentabilidade. A vantagem é que o mercado brasileiro tem muito a crescer. Por isso eu digo: na hora de negociar uma operação de crédito, é preciso esticar a corda do spread (diferença entre o juro de captação e o cobrado do cliente) até onde dá. O pior spread é (a operação) que caiu no concorrente. Se eu cobrava 2%, 3% ao ano, agora já faço operação para grande empresa a 0,5% ao ano. Na pessoa física, é a mesma coisa. As operações que mais crescem são o crédito imobiliário e o consignado, de taxas mais baixas.
Toda a mudança digital depende, em certa medida, do cenário econômico. Como o sr. está vendo o ano de 2020?
Para 2020, não vejo um crescimento tão grande da economia brasileira. Gostaria que 2019 tivesse sido o ano de arrumação, mas isso não aconteceu. A gente já está quase no último trimestre, e a reforma da Previdência está bem encaminhada, mas ainda não saiu do Senado. Já se viu um efeito de valorização da Bolsa, mas geração de empregos, confiança e retomada de consumo não vieram. A reforma tributária é fundamental, mas é mais complicada do que a da Previdência. E o ótimo é inimigo do bom. Não adianta querer fazer o ótimo, faça apenas o bom na reforma tributária. O que precisa fazer? Pegar 57 tributos do Brasil e condensar isso. Sabe quantos funcionários eu tenho no Bradesco para cuidar da parte tributária? 350. Com a simplificação, eu poderia resolver isso com 30 pessoas. A questão dos Estados e municípios é muito complexa. Não vai dar para resolver agora. Então pega esses 57 e reduz para 12, 13, no máximo. Vai facilitar muito a vida das empresas. A expectativa para o ano que vem é de no máximo de 2%.
E tem as privatizações.
O processo de privatização está acelerada. Acho que 2020 vai ser o que a gente gostaria que 2019 tivesse sido. Para 2021, devemos ter uma condição melhor. Conversei com investidores na China e na Índia. Todo mundo diz que as margens de qualquer setor estão mais apertadas e banco não é diferente. Só há uma solução: ganhar escala. Ganhar menos, mas atender mais gente. E o investidor internacional sabe que o Brasil é um dos poucos mercados de escala no mundo.