Economia & Negócios

Nova geração do agronegócio cria startups para aliar o campo à tecnologia

Empresas oferecem serviços como agricultura de precisão e máquinas de baixo custo

Douglas Gavras

18 de março de 2021 | 09h50

Os filhos de produtores rurais que saem do campo para estudar e depois voltam para as fazendas, trazendo tecnologias e ferramentas de gestão, não se destacam apenas ao assumir o comando das propriedades da família. Esses jovens também estão criando startups voltadas ao agronegócio, que oferecem soluções para problemas que eles conhecem de perto.

A catarinense Horse Machine, por exemplo, foi fundada por Guilherme Kieling e Cleomar Matuchaki e cria máquinas que ajudam nas colheitas de pequenas propriedades da Região Sul do País. Já a mineira Mariana Vasconcelos, da Agrosmart, coleta e analisa dados para irrigação de plantações. Eduardo Rezende, também do interior de Minas, desenvolveu com a Agrosolutions um sistema de gerenciamento de propriedades rurais. No caso do filho de criadores de gado de leite Elias Sgarbossa, da Z2S Sistemas, do Rio Grande do Sul, a ideia foi criar um sistema que automatiza a limpeza de ordenhadeiras.

“A minha geração vai ficar conhecida como aquela que não precisava mais sair do campo para desenvolver seu talento. É um setor que tem sido resiliente às crises e que tem conquistado mais relevância global. Existe uma transformação de modelos de gestão e produção”, diz Mariana.

Segundo relatório da Agtechgarage, as startups voltadas para o campo se concentram em São Paulo, Minas Gerais e Paraná. E a maioria dessas empresas oferece serviços de suporte à agricultura de precisão (como indicadores que ajudam o produtor a definir a quantidade de defensivos a ser aplicada, por exemplo), internet das coisas (IoT) e gestão agrícola.

A minha geração vai ficar conhecida como a que percebeu que não precisava mais sair do campo para desenvolver seu talento.”

Mariana Vasconcelos, cofundadora da Agrosmart

Com os resultados positivos do agronegócio, mesmo em um momento de crise para os demais setores, as pessoas estão digitalizando suas fazendas, mas alguns clientes também sentiram os impactos da pandemia, lembra Rezende, da Agrosolutions. “Por mais que o produtor tenha segurado a receita e tenha tido um aumento da produtividade, muitos investimentos para inovação acabaram sendo represados pelas incertezas.”

Ainda assim, eles sentem que há um aumento no número de jovens empreendedores também no campo. “O interesse das novas gerações em empreender no campo é sinal da força que o agronegócio tem no País, mas o fato de ser filho de produtor não é garantia de sucesso. Antes de abrir uma startup, tive experiências trabalhando em grandes empresas que fizeram toda a diferença. Houve uma explosão de agtechs (as startups de agro) e o mercado vai acabar filtrando as boas ideias”, completa Rezende.


 Confira as histórias



Agrosolutions

‘Com novas gerações, plataformas de gestão vão ganhar espaço no campo’

Eduardo Rezende, de 35 anos, é filho e neto de produtores de café, eucalipto e criadores de gado no interior de Minas Gerais. Cresceu na fazenda, mas com um pé na tecnologia. Ele chegou a morar em grandes cidades antes de voltar ao campo, mas via desde cedo que uma das principais barreiras, ainda mais em um contexto de aumento da competitividade, era a profissionalização da gestão das propriedades.

Quando criou a startup Agrosolutions, há seis anos, empresa que oferece um sistema de gestão agrícola para os produtores rurais, ele, que é formado em ciência da computação, já mirava nas próximas gerações do campo, por perceber que a sucessão familiar e o aumento da participação dos filhos de proprietários no cotidiano das fazendas aumentaria também a demanda por tecnologia.

Eduardo Rezende, que desenvolveu plataforma de gestão de propriedades
Eduardo Rezende, que desenvolveu plataforma de gestão de propriedadesDivulgação

Além de ser um exemplo desse movimento, ele vê na prática que as propriedades rurais estão se digitalizando impulsionadas pela nova geração. “Muitas fazendas ainda têm uma estrutura muito familiar, não é como uma empresa, em que a parte financeira e contábil, por exemplo, são muito organizadas. Tudo acaba ficando na mão do produtor, que na maior parte das vezes não tem facilidade com tecnologia. Acabamos oferecendo o produto direto para a próxima geração, de filhos de produtores.”

Ele desenhou o plano de negócios quando foi morar na Nova Zelândia e via que a tecnologia ainda estava distante das fazendas. Na década passada, poucas propriedades estavam informatizadas, as que trabalhavam com dados usavam bancos de dados locais e softwares de gestão atualizados por CD-ROM. O conceito de bancos de dados integrados e computação em nuvem parecia ficção científica, sobretudo para um público que ainda engatinha no uso de tecnologia na gestão, como o médio produtor.

Na prática, as propriedades conseguem organizar processos internos, evitando a perda de produtos no estoque, fazer um controle melhor de pedidos de insumos e defensivos e alguns ganhos de precisão. A propriedade é enxergada como uma empresa, desde o recebimento de produtos até o controle de manutenção das máquinas.

Há muito chão ainda a percorrer para esse tipo de tecnologia de gestão de propriedades no agronegócio.”

Eduardo Rezende

A propriedade da família foi a cobaia para implementar a plataforma. Hoje, eles prestam serviços para 60 fazendas, de agricultores de café a pecuaristas. “Mas a demanda é muito maior. À medida que as novas gerações forem assumindo o controle das fazendas, o sistema de gestão, que não chega a 5% das propriedades rurais hoje, vai ganhar espaço. Há muito chão a percorrer para esse tipo de tecnologia ainda no agronegócio.”

Mas ele lembra que também está aumentando o perfil de produtores que se interessam por implementar técnicas de inovação em suas terras, como o uso de drones e de análise de solo por geolocalização e esse é o público-alvo das startups voltadas para o agronegócio hoje.

Em vez de tentar convencer o produtor mais velho, eles focam no produtor mais jovem que busca por ferramentas para aumentar o controle e a eficiência. “No começo, era difícil explicar os ganhos de produtividade que a gestão agrícola trazia a alguns produtores mais tradicionais. Com o aumento de participação das gerações mais jovens na tomada de decisões, tem ficado mais fácil de vender o nosso serviço”, conta.


Agrosmart

‘Cultivava-se a ideia de que o futuro estava na cidade, mas isso mudou’

Filha de produtores de milho e de pastagens e irmã de um agricultor de café e hortaliças, Mariana Vasconcelos, de 29 anos, viu de perto o aumento da demanda por tecnologia aumentar no campo. “O produtor tem de lidar com o paralelo de ao mesmo tempo ter de aumentar a produção de alimentos e contornar a falta de água e mudanças climáticas que afetam a lavoura e a transformação do padrão de consumo mundial.”

Reconhecida em listas de jovens de destaque, como a de talentos com menos de 30 anos da revista Forbes, ela é uma das fundadoras da Agrosmart, startup que oferece serviços de agricultura de precisão, com estudo de solo e de clima para aumentar a eficiência da propriedade e reduzir custos. Fundada em 2014, a empresa hoje atende cerca de 800 mil hectares ou mais de 4 mil produtores.

Mariana Vasconcelos criou sistema que monitora clima e solo
Mariana Vasconcelos criou sistema que monitora clima e soloDenny Cesare/Estadão

“Cresci no campo, acompanhando meu pai, que é produtor no sul de Minas Gerais. As dificuldades de tomar decisão no campo são muitas, o caminho era sempre o de confiar na intuição ou observar o que o vizinho estava fazendo”, conta ela. “Por muito tempo cultivou-se a ideia de que a vida melhor estava na cidade e que o importante era estudar para sair do campo. Isso está mudando.”

Acompanhando os avanços tecnológicos mais recentes, como a internet das coisas, e ao se formar em administração na faculdade, ela passou a se perguntar como trazer mais tecnologia para a propriedade dos pais e para o círculo social deles. “Por que a gente não usa as tecnologias 4.0 para o agronegócio? O setor de tecnologia ainda tem muito o que evoluir no País, mas o Brasil já é uma autoridade no agronegócio. A intenção era juntar os dois mundos.”

Mariana conta que o clima sempre foi uma das principais reclamações do produtor rural - ela ouvia esse tipo de queixa dos pais desde a infância. Além disso, o uso de dados para implementar práticas sustentáveis na lavoura virou uma demanda crescente e hoje, com a pandemia, a transformação tecnológica nas fazendas, que já vinha crescendo, acabou sendo acelerada.

Incentivou-se tanto os jovens a saírem do campo, que agora o desafio é aproximar  o campo dos mais jovens que já nasceram conectados.”

Mariana Vasconcelos

Como o clima acaba ditando todos os processos agrícolas, a plataforma digital que ela ajudou a criar faz o monitoramento das lavouras, por meio do acompanhamento das condições de temperatura e de umidade, ciclo de chuvas, radiação solar e salinidade do solo.

No campo, assim como nas empresas, a sucessão familiar é um passo desafiador para a maioria das famílias. Mariana lembra que muitos produtores a procuram não apenas para levar os produtos da empresa para suas terras, mas também para que ela converse com seus filhos sobre a importância de pensar a propriedade como um laboratório a céu aberto para implementar tecnologia e, dessa forma, aumentar a eficiência da produção. “Incentivou-se tanto os jovens a saírem do campo, que agora o desafio é aproximar o campo dos mais jovens que já nasceram conectados.”

Com o serviço da startup de Mariana, que é oferecido a partir de R$ 99 por mês, algumas fazendas conseguiram reduzir em até 60% o uso de água, 40% o de insumos e aumentar a produção em até 20%.

Ao aliar a tecnologia, assunto em que a maioria dos sucessores na casa dos 30 anos têm mais familiaridade que seus pais, o campo está invertendo a diáspora de jovens. “Eles voltam trazendo ideias e soluções para produzir em suas fazendas de maneira mais eficiente ou para criar startups de agronegócio, como foi o meu caso.”


Z2S Sistemas

‘Propriedade da família serviu de cobaia para inventar algo novo’

“Quando comecei a faculdade, a ideia era não voltar para o campo”, relembra o filho de ex-criadores de gado de leite e produtores de grãos Elias Sgarbossa, de 28 anos, de Ibiraiaras (RS). “Meus próprios pais diziam que a atividade rural era muito sacrificante, sem períodos de descanso e que dava pouco lucro. O futuro, na época, parecia estar na cidade. Mas, aí, tudo mudou.”

Ele conta que, já no começo da graduação, percebeu que poderia aplicar o conhecimento técnico que estava recebendo na atividade rural. Poderia voltar para a propriedade dos pais e ajudá-los a rever métodos de trabalho, aumentar a produtividade, a automação e a lucratividade e ainda vender soluções para outros produtores da região.

Elias desenvolveu sistema de limpeza para ordenha
Elias desenvolveu sistema de limpeza para ordenhaDivulgação

A família tinha muito trabalho com o processo de limpeza dos equipamentos de ordenha, que tinha de ser feito duas vezes por dia. O processo levava em torno de 30 minutos e precisava atender a diferentes parâmetros, como a temperatura da água e quantidade de detergente usado. O processo demandava que alguém da família estivesse o tempo todo ali, acompanhando.

O engenheiro desenvolveu uma forma de resolver um problema antigo que os pais tinham na propriedade da família e criou um sistema que automatiza a limpeza das ordenhadeiras. “Era preciso ter uma limpeza eficiente para que a qualidade não caísse, e evitar uma queda no preço cobrado pelo leite. Na faculdade, desenvolvi o sistema para automatizar o processo de limpeza.” Há cinco anos, ele protocolou o pedido de patente do protótipo. Ele, então, criou a startup Z2S Sistemas, com ajuda de um professor e de um colega da faculdade, para levar a tecnologia a outros produtores da região.

“Era um problema crônico de vários pequenos e médios produtores. Já existiam soluções para isso, mas que não eram totalmente automatizadas. Em algum momento, o produtor precisava estar lá durante o procedimento para acompanhar a limpeza dos equipamentos. No nosso sistema, ele não precisava fazer mais nada. Ele manda iniciar a limpeza, que é feita automaticamente.”

O equipamento resolvia um problema crônico dos produtores. Já existiam soluções para isso, mas que não eram totalmente automatizadas.”

Elias Sgarbossa

O sistema é composto de válvulas que liberam água quente e fria para um tanque de mistura, até atingir uma temperatura determinada. Bombas dosadoras sugam o produto químico de limpeza e o misturam com a água. Em seguida, uma bomba de sucção faz o processo de recirculação - ela suga a água do tanque, passando por toda a área em que o leite circulou e depois retorna para o tanque.

A propriedade da família serviu de teste para o equipamento. A contagem bacteriana total (CBT) do leite, que é um dos indicadores da qualidade do leite, baixou de 40 mil para 2 mil. Com esse resultado, ele passou a receber R$ 0,06 a mais por litro de leite. O processo completo passou a ser feito em 20 minutos.

“Na época, meu pai não tinha afinidade com smartphones. Eu tinha de criar um equipamento que fosse simples o bastante para que ele terminasse de fazer a ordenha, tocasse em uma tela e o processo se iniciasse”, lembra Elias, que diz que a empresa está em processo de captar investimentos. Desde que a empresa começou, três equipamentos foram instalados. “Estamos negociando com um investidor que vai trabalhar tanto na promoção das máquinas quanto na formatação da empresa.”


Horse Machine

‘Com poucos recursos, pequeno produtor acaba ficando abandonado’

O filho de pecuaristas gaúchos Guilherme Kieling, de 24 anos, e o catarinense Cleomar Matuchaki, filho de produtores de tabaco, ficaram amigos na faculdade e tinham em comum o objetivo de criar tecnologia a um custo baixo o bastante para chegar à agricultura familiar.

“A propriedade da família era pequena, de agricultura familiar. E, desde cedo, sempre ouvia que tinha de estudar, para sair do campo, pois a agricultura não dava dinheiro”, diz Kieling. “Sempre fui curioso e me interessei por máquinas. Daí, pensei: será que posso transformar isso em um negócio, que fosse útil para o produtor?”

Guilherme (E) e Cleomar criaram startup que desenvolve máquinas de baixo custo
Guilherme (E) e Cleomar criaram startup que desenvolve máquinas de baixo custoGuilherme Hahn/Estadão

Com esse objetivo, eles fundaram há pouco mais de um ano a startup Horse Machine no interior de Santa Catarina, que desenvolve máquinas de baixo custo, voltadas especialmente para os pequenos produtores, que fazem serviços, como o de colheita de frutas — uma demanda forte de agricultores da região. A empresa é parte da incubadora da faculdade em que eles cursaram engenharia e se prepara para captar investimentos no mercado.

“Existe uma grande oferta de tecnologia para os grandes proprietários. Mas os pequenos não têm acesso a esse tipo de equipamento. Com poucos recursos e tendo de confiar muito na intuição, eles acabam ficando abandonados. Nosso objetivo era melhorar a oferta para esses pequenos agricultores que têm problemas parecidos com os dos nossos pais.”

Kieling conta que a implementação de ferramentas de tecnologia acaba comprometendo quase todo o faturamento dos pequenos produtores, por isso é tão importante pensar em alternativas de baixo custo e que atendam a esse público. “Começamos a testar nossas primeiras máquinas há pouco mais de dois anos. Amigos do interior e a própria família foram as ‘cobaias’ para as nossas primeiras máquinas, a partir delas, íamos fazendo ajustes.”

Amigos do interior e a própria família foram as ‘cobaias’ para nossas primeiras máquinas, a partir delas, íamos fazendo ajustes.”

Guilherme Kieling

Hoje, são mais de 20 modelos projetados, sendo quatro máquinas que ainda não eram oferecidas aos produtores. Esses equipamentos ajudam na cultura da maçã, forte na região de Criciúma e São Joaquim. “Era uma cultura que a gente não conhecia, mas nos aproximamos de produtores, que contavam as demandas que tinham. Uma das máquinas, por exemplo, coleta os galhos, o que era feito manualmente. O trabalho que era feito em uma manhã inteira, agora é terminado em uma hora. Uma das nossas empilhadeiras é vendida por um quarto do preço de uma convencional.”

No caso da Horse Machine, as máquinas já estão operando em mais de cem propriedades e, apesar da pandemia de covid-19, os negócios não foram prejudicados no ano passado. A não ser pela falta de insumos da indústria, além da alta de custos com o aumento de preço do aço. As máquinas que eles fabricam variam de R$ 2 mil a R$ 50 mil.

Com a mudança de geração no campo, Kieling também avalia que a presença cada vez maior de tecnologia nas propriedades rurais é um caminho sem volta. “Meus amigos que trabalham nas propriedades da família são completamente conectados, querem aprender a engenharia das máquinas, tentar aprender por conta própria por meio de vídeos na internet. Muitas das nossas ideias vêm de produtores que sabem o que está sendo feito na Europa e querem o mesmo nível de qualidade aqui no País.”


Expediente

Editor executivo multimídia Fabio Sales / Editora de infografia multimídia Regina Elisabeth Silva / Editores assistentes multimídia Adriano Araujo, Carlos Marin e William Mariotto / Designer Multimídia Lucas Almeida / Editor de Economia Alexandre Calais / Editora-adjunta de Economia e Negócios: Cátia Luz / Reportagem Douglas Gavras / Coordenador de Produção Multimídia Everton Oliveira / Edição de Vídeo Léo Souza / Foto de abertura Epitácio Pessoa/Estadão

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