Economia & Negócios

Degrau Quebrado
Maternidade é obstáculo para mulheres rumo à liderança de grandes empresas

Executivas enfrentam barreiras de entrada nos setores financeiro ou de operações; diretoras de empresas do Ibovespa ficam concentradas em áreas de apoio, como recursos humanos e sustentabilidade

Luciana Dyniewicz e Shagaly Ferreira

08 de junho de 2022 | 05h00



Para chegar à posição de vice-presidente da multinacional brasileira de tecnologia CI&T e à de membro dos conselhos de administração da operadora Telefônica/Vivo e da locadora de veículos Locamerica, a executiva Solange Sobral não só teve de atravessar barreiras extras por ser mulher e negra, mas também por ser mãe e atuar em uma área predominantemente masculina, a de tecnologia. A maternidade e o setor de atuação são dois dos grandes obstáculos que as mulheres enfrentam hoje e, em muitos casos, acabam estancando a trajetória das executivas, de acordo com especialistas.

“Quando você vai para alguns desses setores, como de tecnologia ou financeiro, e, dentro dessas áreas escolhe o ‘core business’ (atividade principal da empresa), o número de mulheres vai rareando cada vez mais. E vai ficando cada vez mais difícil você ascender nesse ambiente”, diz Solange.

Das 101 diretoras das empresas do Ibovespa (o principal índice de companhias listadas na Bolsa), 9,9% ocupam posições na área financeira ou de relações com investidores, 30,7% estão em segmentos operacionais ou estratégicos e 54,4% em setores de apoio, como recursos humanos, marketing, jurídico e sustentabilidade, de acordo com levantamento do Estadão. Não foi possível identificar a área de três profissionais, e outras duas atuam como presidentes.

A professora do Insper Ana Diniz explica que a participação reduzida das mulheres nas áreas consideradas mais estratégicas é consequência da divisão sexual do conhecimento. Se antes as mulheres ficavam em casa cuidando dos filhos e, num segundo momento, após romperem essa primeira barreira, se tornaram professoras e enfermeiras, agora é praticamente natural que a lógica do cuidado continue sendo reproduzida. Por isso, diz a professora, vemos hoje mais mulheres na gestão de pessoas e na sustentabilidade, e menos nas finanças, na tecnologia e no operacional.

“Não é coincidência que os lugares tido como femininos sejam menos valorizados. Se você comparar a remuneração de um gestor de recursos humanos com um de finanças, possivelmente o nível é diferente. As áreas mais ocupadas por mulheres são vistas como menos estratégicas.”

Ana Diniz, professora do Insper

Diretora financeira e de relações com investidores da operadora TIM, Camille Loyo Faria é uma das poucas mulheres no País que quebrou essa lógica. Formada em engenharia química, ela fez carreira no setor financeiro e, quando jovem, sentia que incomodava a maioria masculina das equipes em que trabalhava por ter uma visão “diferente”.

“Também cheguei a ouvir que havia alcançado certa posição porque estava tendo um caso com o chefe. Queriam dizer que eu não tinha competência para estar onde estava.”

Hoje, Camille diz que se sente respeitada nos ambientes de trabalho, mas acredita que mulheres que cresceram em áreas tidas como mais femininas podem ter se sentido mais confortáveis com suas equipes.

“Quando você está cercada de pessoas diferentes, pode haver menos empatia. Não acho que uma profissional de RH tenha menos dificuldade do que eu, mas é mais fácil lidar com as dificuldades quando se tem colegas que vivenciam as mesmas experiências.”

Para Camille, da TIM, empatia pode ser maior quando há profissionais com experiências semelhantes
Para Camille, da TIM, empatia pode ser maior quando há profissionais com experiências semelhantesPedro Kirilos/Estadão

A executiva Vanessa Lobato, vice-presidente de varejo do banco Santander, diz não conhecer outra mulher que ocupe posição semelhante a sua no mercado bancário brasileiro. Vanessa começou sua trajetória na liderança como gerente, foi superintendente e depois acabou migrando para a diretoria de recursos humanos - antes de se tornar vice-presidente de varejo.

“É mais difícil ver mulheres numa posição como a minha. É como se fosse mais permitido a mulher se desenvolver nas áreas de suporte. É um viés inconsciente. É como se a mulher fosse menos capaz de lidar com números e entrega, e mais capaz para lidar com contextos. Que grande bobagem”, diz a executiva, que lidera 30 mil pessoas.

Vanessa reconhece que, no comando do varejo, a maior parte da diretoria que responde a ela é formada por homens, diferentemente do que ocorria quando estava na área de recursos humanos. Na posição atual, tem trabalhado para suas equipes também comprarem a pauta da diversidade de forma genuína e não tem perdido as oportunidades para mudar a cara da liderança do banco.

Vanessa Lobato: ‘A mulher é vista como menos capaz de dar direção, falar coisas objetivas e liderar’
Vanessa Lobato: ‘A mulher é vista como menos capaz de dar direção, falar coisas objetivas e liderar’Felipe Rau/Estadão

“Quando uma cadeira (de diretoria) fica vazia, temos de procurar alguém com o olhar da diversidade. Não vou sair demitindo homens, mas temos de ter coragem para ter ações afirmativas”, acrescenta ela, que admite ter mudado nos últimos anos. “Oito anos atrás, se você me chamasse para uma reunião de diversidade, eu talvez não fosse. Mas tive o privilégio de estudar o tema, de olhar para minha vida e perceber o quanto de machismo já enfrentei. Já estive numa sala com homens que fingiram que eu não estava ali, mas, na época, eu nem percebia isso.”

Para Solange, conselheira da Telefônica e da Locameria, além de adotar ações afirmativas, desenvolver projetos que estimulem mulheres a mergulharem na tecnologia e que mostrem as perspectivas que a mulher pode trazer para esses setores pode ajudar a elevar a presença feminina em áreas estratégicas. Dar espaço para as mulheres em eventos, contando suas histórias, também é importante, diz. “Tenho certeza de que, por trás de muita história das empresas de tecnologia, tem mulheres fazendo a diferença. São poucas e elas não aparecem. Mas essa é uma forma de outras mulheres verem que é possível.”

Ana Diniz, do Insper, afirma que a área de tecnologia é justamente a que mais tem promovido esse tipo de iniciativa. Ela destaca que também é preciso ressignificar setores que hoje são menos valorizados – e dominados por mulheres.

A diretora de relações governamentais do Mulheres do Brasil (grupo que trabalha na defesa dos interesses das mulheres e é liderado pela empresária Luiza Trajano, do Magazine Luiza), Lígia Pinto, reconhece que em algumas áreas, como as engenharias, há menos mulheres sendo formadas. Daí a necessidade de, ainda nas primeiras fases da escola, conscientizar as meninas de que elas podem estar onde quiserem.

“Homens e mulheres são diferentes e exercem a liderança de formas diferentes, mas é preciso saber, desde a infância, que é muito grave o discurso de que homem veste azul e mulher, rosa. As meninas precisam ser inseridas também nas aulas de robótica”,  diz Ligia, que também é professora da Fundação Getulio Vargas (FGV).

Mulheres com filho têm menos chance de alcançar à alta liderança, dizem especialistas

Outro grande desafio na trajetória das mulheres, a maternidade é apontada pelas executivas como uma das  maiores barreiras para a ascensão. De acordo com Margareth Goldenberg, gestora executiva do Mulher 360 (movimento empresarial que trabalha por empoderamento feminino e equidade de gênero), é mais comum que mulheres cheguem à liderança quando não têm filhos. Isso significa, explica ela, que muitas precisam abrir mão das ambições pessoais para serem executivas. “Não é justo que elas tenham de optar. As barreiras da maternidade são imensas na jornada de desenvolvimento profissional. Portanto, as empresas precisam adotar práticas acolhedoras, como horário flexível.”

Ligia Pinto, do Grupo Mulheres do Brasil, conta que, em um trabalho que fez para uma grande consultoria, observou que as mulheres que estavam na lista dos dez principais candidatos a se tornar sócios da empresa não tinham filhos. As candidatas com filhos apareciam nas últimas posições de um ranking com 40 profissionais. Isso acontecia porque a metodologia adotada para analisar os futuros sócios considerava o faturamento que os profissionais tinham conseguido gerar em 12 anos. Mulheres que haviam tirado licença maternidade tinham faturamento zero por quatro ou oito meses, conforme o número de filhos que tinham tido.

“Eles não levavam em consideração o período de afastamento. Quando era desconsiderado o período de licença maternidade, essas mulheres subiam no ranking e entravam de verdade na disputa pela vaga de sócia. Essa questão da maternidade é estrutural, mas esse exemplo mostra quanto até o padrão de avaliação pode ser machista”, diz Lígia.

“A avaliação de profissionais, para ser meritocrática, tem de considerar pessoas em igualdade de oportunidades. Assim, tem de considerar as especificidades da mulher que é mãe, que não está em igualdade de oportunidades dos outros."

Lígia Pinto, diretora de relações governamentais do Grupo Mulheres do Brasil

Professora de gestão de pessoas na FGV, Vanessa Cepellos conta que muitas mulheres acabam sendo forçadas a deixar seus empregos quando têm filhos e, ao tentarem retornar ao mercado, percebem que suas habilidades ficaram obsoletas. Para aquelas que conseguem permanecer no trabalho, é comum que passem a ser mal avaliadas pelos superiores por terem de dividir a atenção com as obrigações domésticas.

No caso de Solange Sobral, da CI&T, a ascensão profissional e a maternidade só foram possíveis porque ela teve a oportunidade de discutir com os chefes, antes da licença, como seria seu retorno. “Isso me deu uma sensação de conforto, de que não seria esquecida.” Quando a licença acabou, a executiva já tinha novos desafios para assumir no trabalho. “Tem de haver essas ações intencionais”, frisa.

Antes da licença maternidade, Solange discutiu com os chefes como seria o retorno
Antes da licença maternidade, Solange discutiu com os chefes como seria o retornoCI&T

Solange conta também que o apoio da mãe e do marido foram fundamentais para conciliar vida pessoal e profissional. “Tive o privilégio de ter parceiros e filhos que entenderam que, em alguns momentos, não estaria presente porque, para me sentir completa, tinha também o lado profissional.”

A diretora de relação com investidores da TIM, Camille Loyo Faria, também afirma que contou com familiares que ficavam com os filhos enquanto ela se dedicava ao trabalho. Ela destaca, porém, que foi preciso se despir de uma “culpa cultural” para deixar as crianças com os parentes. “Temos de entrar nessa jornada sabendo que não vamos ser mães e profissionais perfeitas. Temos de entender qual é o momento em que estamos na vida, quando precisamos priorizar o trabalho ou a maternidade. Você tem de estar em paz com isso e ir equilibrando os pratos.”

As especialistas em gestão de pessoas e líderes dos movimentos de empoderamento feminino, porém, afirmam que um dos pontos-chave para se ter equidade de gênero no ambiente corporativo é que os homens também assumam a responsabilidade de criar os filhos, o que pode ser incentivado com leis de licença paternidade. “É preciso um incentivo ao compartilhamento do trabalho produtivo e do reprodutivo. Os pais têm de ter papel mais ativo na criação das crianças, e estender a licença paternidade favorece isso”, diz Ana Diniz, do Insper.


Simone Franco,

vice-presidente de supply chain da Alpargatas

‘É preciso garantir que programas de equidade frutifiquem’

Para mulheres que assumem cargos de liderança em redutos predominantemente masculinos, ter experiência e qualificação não reduz a ocorrência de abordagens sexistas. Vice-presidente de supply chain (cadeia de suprimentos) da fabricante de calçados Alpargatas, a engenheira Simone Franco conta que ainda na faculdade – onde era uma das 10 mulheres em uma turma de 90 alunos – escutava que uma mulher precisava escolher entre ser inteligente e fazer uma faculdade ou ser bonita. Mais tarde, em uma das organizações pela qual passou, ouviu de um líder que supply chain era lugar de homem.

Simone lidou com profissionais que colocavam constantemente sua competência à prova. “Sempre observava que, a todo tempo, eu era testada pelas pessoas que estavam no mesmo grupo que eu. Se eu tinha um cargo de liderança, o time que eu liderava sempre tinha aquela coisa: ‘será que ela vai dar conta?’”, relembra a executiva.

Simone era uma das dez mulheres em uma turma de 90 estudantes de engenharia
Simone era uma das dez mulheres em uma turma de 90 estudantes de engenhariaFelipe Rau/Estadão

No começo da atuação na área, Simone diz que os homens não sabiam como lidar com uma mulher na sala de negociação. Em uma dessas ocasiões, fora do Brasil, foi recebida com uma gravata como presente de boas-vindas por executivos que esperavam um representante do mesmo gênero. “Quando viram que era uma mulher, ficaram desconcertados e o dono da empresa me pediu desculpas porque esperava um homem.”

O constrangimento acendeu um alerta para a engenheira. “Foi quando percebi que estava em um lugar em que não é comum as mulheres estarem. E isso chamou a atenção: já que agora estou em um lugar em que eu posso montar times, como abro as portas para trazer mais mulheres?”. Hoje ela tem uma equipe com três mulheres e quatro homens.

Simone diz que atualmente, embora haja um movimento de evolução, ainda existe um caminho longo a percorrer para se alcançar equidade em sua área. Ela explica que, da produção até a diretoria, todo o quadro de funcionários tem sido majoritariamente masculino. “Bons programas e intenções têm vários. A gente precisa garantir que eles frutifiquem, porque só ficam no contexto de boas práticas. Ter uma oportunidade aqui e outra ali não vai fazer a coisa mudar.”


Expediente

Editor executivo multimídia Fabio Sales / Editora de infografia multimídia Regina Elisabeth Silva / Editores assistentes multimídia Adriano Araujo e William Mariotto / Designer multimídia Maria Claudia Correia / Infografistas Multimídia Ana Célia Mota, Gisele Oliveira e Marcos Müller / Editor de Economia Alexandre Calais / Reportagem Luciana Dyniewicz e Shagaly Ferreira  

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