Economia & Negócios

Marcas da Covid
Morte de idosos por covid-19 provoca o empobrecimento de famílias

Em 18,1% das famílias, idosos são a única fonte de renda; 74% das mortes na pandemia são de pessoas com mais de 60 anos

Texto: Renée Pereira

01 de novembro de 2020 | 14h00


Foi com a renda da mãe, de 67 anos, que Daniela Soares Barreto conseguiu bancar seus dois filhos mais velhos nos últimos cinco anos. As crianças foram praticamente adotadas pela avó, com quem passaram a morar. No último dia 23 de agosto, porém, a história de dona Leovany foi interrompida. Diagnosticada com covid-19, a trabalhadora que se aposentaria dentro de um ano foi internada e, em pouco mais de 24 horas, faleceu, deixando para trás uma família chocada com o efeito devastador da doença.

“Tudo foi muito rápido. Estávamos esperançosos de que ela sairia do hospital logo”, afirmou Daniela, que rapidamente teve de arrumar forças para lidar com a falta de recursos para bancar os filhos. Daniela mora numa casa menor com o marido e a filha, de quatro anos, que tem paralisia cerebral. Com a morte da mãe, os dois filhos – de 18 e 14 anos – voltaram a morar com ela, que ganha R$ 1.179 por mês. Boa parte desse valor é gasto com fraldas e remédios para a filha menor. A renda do marido, quase igual à de Daniela, é usada para pagar o aluguel e as contas da casa.

Com a morte da mãe por covid-19, filhos de Daniela voltaram a morar com ela.
Com a morte da mãe por covid-19, filhos de Daniela voltaram a morar com ela.DIDA SAMPAIO/ESTADÃO

A situação de Daniela é semelhante à de outras famílias brasileiras que contavam com ajuda dos idosos para fechar as contas no fim do mês. Com a covid-19, além do trauma de perder seus entes, também passaram a conviver com um grau maior de pobreza. Segundo um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a morte de idosos na pandemia pode provocar uma queda média de 20% na renda dos domicílios. Até o dia 27 de outubro, a redução somou R$ 245 milhões. De acordo com o estudo, quase 74% das mortes por covid são de pessoas com 60 anos ou mais - ou seja, cerca de 113 mil pessoas.

“Em alguns casos, no entanto, essa perda pode chegar a 100%, já que o idoso era o único provedor da casa”, diz a pesquisadora Ana Amélia Camarano, autora do estudo “Os dependentes da renda dos idosos e o coronavírus: órfãos ou novos pobres?” Segundo o trabalho, 35% dos domicílios brasileiros têm pelo menos um idoso e, em 18,1%, eles eram os únicos provedores de renda da família, com um ganho médio de R$ 1.666,80. Nesse grupo estão 24 milhões de pessoas, sendo 19,5 milhões de idosos e quase 5 milhões de adultos e crianças.

E esses números vêm subindo rapidamente nos últimos anos. Um levantamento feito pela consultoria iDados, a pedido do Estadão, mostra que, enquanto o número de domicílios chefiados por idosos com dependentes cresceu 34%, o número total de domicílios no País avançou 19% entre 2012 e agora. “O Brasil está passando por um envelhecimento populacional importante. Por isso, veremos cada vez mais idosos como provedores de suas famílias”, diz o pesquisador do iDados, Bruno Ottoni.

Além da questão populacional, esse fenômeno também está associado ao aumento do desemprego, que alcançou 14,4% em setembro. Antes disso, entre o primeiro e o segundo trimestre de 2020, quando o índice de desemprego subiu de 11,6% para 13,8%, o número de residências chefiadas por idosos com dependentes aumentou em 541 mil, segundo o iDados. No mesmo período do ano passado, houve uma redução do número de domicílios chefiados por idosos.

“Sem emprego, familiares passam a depender dos mais velhos, muitos deles aposentados”, diz a professora e coordenadora de economia do Insper, Juliana Inhaz. Quem mora junto com os pais retarda a saída. E aqueles que já eram independentes, ao se deparar com o desemprego, voltam ao lar parental. Quando há o enriquecimento das famílias, os adultos se separam dos pais, diz o economista Daniel Duque, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV). “Hoje vivemos o inverso. Há um empobrecimento e os filhos voltam a morar com os pais.”

Mas, na avaliação de Juliana, hoje os idosos estão mais vulneráveis. Mesmo aqueles que sobrevivem à covid passam a gastar uma parcela maior da renda com remédios e outros cuidados médicos. Nessa situação, a família é obrigada a enxugar o orçamento, sobretudo se há algum desempregado em casa. Isso significa um número maior de gente na pobreza.

Para Ana Amélia, os idosos são vítima duas vezes nessa pandemia: são mais discriminados no mercado de trabalho e são os mais atingidos pelo coronavírus. “Podemos dizer que, quando morre um idoso, uma família entra na pobreza.”

Os idosos, sobretudo os aposentados e pensionistas, são considerados uma elite no País do ponto de vista de ter uma renda fixa regular. Quase 63% da renda dos idosos vem de pensões e aposentadorias, o que garante a regularidade do ganho e estabilidade das famílias.

Segundo estudo da FGV Social, os idosos são 17,44% dos 5% mais ricos do Brasil e 1,67% dos 5% mais pobres. “Os idosos têm uma função de bons provedores na sociedade brasileira”, diz o economista Marcelo Neri, diretor da FGV Social, destacando que a família de quem mora com pessoas com mais de 60 anos é pequena. Em média, tem 2,68 pessoas por domicílio.

Neri diz que idosos têm função de bons provedores da sociedade brasileira.
Neri diz que idosos têm função de bons provedores da sociedade brasileira.REUTERS

Inadimplência de idoso é menor, mas é a que mais cresce

Outro dado que demonstra como a renda dos idosos ganhou peso na sociedade brasileira vem da Serasa Experian. Com mais estabilidade nos ganhos, os aposentados passaram a ter mais acesso ao crédito - muitas vezes para atender às necessidades dos filhos. O resultado disso foi o avanço da inadimplência entre os mais velhos.

Segundo o economista da Serasa, Luiz Rabi, o idoso tem uma taxa de inadimplência menor, mas é a que mais cresce entre todas as faixas etárias. Em 2018, 32% dos idosos acima de 60 anos estavam inadimplentes. Hoje, esse número está em 37%. Enquanto isso, na faixa etária entre 41 e 60, essa fatia subiu de 40% para 42%; e na de 26 a 40 anos, ficou em 45%.


“Devo ter umas oito faturas vencidas em casa”

Famílias relatam o drama de viver sem a renda dos idosos mortos pela covid-19

Thaynnara Valetim Batista e o irmão moravam com o pai, de 56 anos, até o fim de abril, quando ele faleceu de coronavírus. Segurança, Francisco Alberto Batista trabalhou vários dias sem saber que havia contraído a doença. Achava que estava apenas cansado, mas os sintomas pioraram e ele teve de ser internado e entubado. Mas resistiu apenas poucas horas.

Desempregados, Thaynnara, de 25 anos, e o irmão, de 27 anos, dependiam financeiramente do pai. Com a morte, ficaram sem nenhuma renda. “Não conseguimos o auxílio do governo e acabamos sendo socorridos pela Cufa (Central Única das Favelas), que nos ofereceu cestas básicas por mais de dois meses”, diz ela. Além disso, eles ganharam R$ 120 por mês do movimento Mães da Favela para pagarem algumas despesas.

Thaynnara teve de recorrer às doações e ONGs para sobreviver após morte do pai, em abril.
Thaynnara teve de recorrer às doações e ONGs para sobreviver após morte do pai, em abril.JARBAS OLIVEIRA/ESTADÃO

Hoje, Thaynnara está trabalhando e ganha um salário mínimo por mês. “Estou tentando colocar as contas acumuladas ao longo dos meses em dia, mas ainda não consegui.” A preocupação é ter a água e a luz cortados por falta de pagamento. “Devo ter umas oito faturas vencidas em casa”, diz ela.

A situação de Claudia Corrêa, de 45 anos, é parecida. Sua mãe Eneide Corrêa, de 79 anos, era o alicerce financeiro da família. Com quatro filhos, a idosa morava com Claudia e um neto, de 24 anos. A renda de  cerca de R$ 3 mil, como pensionista, garantia o aluguel do apartamento, o pagamento da energia elétrica e parte da alimentação da casa. Com sua morte, em março, em função das complicações do novo coronavírus, Cláudia tem se desdobrado para dar conta das despesas mensais, sem a ajuda do salário da mãe.

A renda era mais do que uma contribuição no orçamento, ela supria quase metade das despesas da casa.”

Claudia Corrêa, autônoma

Ela chegou a receber o salário de abril, já que a mãe faleceu no final do mês anterior. “O último salário foi para pagar parte das despesas com os medicamentos e o aluguel de casa. A renda era mais do que uma contribuição no orçamento, ela supria quase metade das despesas de casa”, disse.

Para driblar a falta do salário da mãe, Claudia mudou-se de casa e hoje vive com a ajuda do filho e as encomendas de doces e salgados. “Estou sem trabalhar com carteira assinada. A pandemia também fez eu fechar a minha loja de roupas e agora faço bolos, tortas e comidas sob encomenda. Por outro lado, meu filho se formou em julho e parei de pagar a faculdade dele. Uma despesa a menos.”

Eduardo, de 42 anos, era aposentado por problemas cardíacos e diabetes.
Eduardo, de 42 anos, era aposentado por problemas cardíacos e diabetes.ARQUIVO PESSOAL

A agente comunitária de saúde Diana Ketlen Nogueira, de 36 anos, moradora do bairro Alvorada, em Uberlândia, no Triângulo Mineiro, perdeu há dois meses o marido, Eduardo José Nogueira, de 42 anos, morto depois de contrair o vírus. Eduardo era aposentado por problemas cardíacos e diabetes, doença que acabou lhe tirando parte da visão.

Diana conta que o salário que recebe corresponde à metade do valor do benefício que era pago ao marido pelo INSS. Com a morte do Eduardo, as contas atrasaram. O casal tem uma filha, Maria Tereza, de onze anos. A casa da família fica nos fundos da residência da mãe de Eduardo, onde mãe e filha seguem morando.

"Ele tinha muitas comorbidades, mas você não espera que isso aconteça", diz Diana. "Graças a Deus não chegou a faltar nada, mas por causa da ajuda da família", conta. A agente comunitária deixou atrasar algumas contas, como a de água.

Pela legislação, a viúva tem direito a receber o benefício pago ao marido. "Mas o dinheiro ainda não foi liberado. Disseram que agora vai sair.". Diana afirma ainda que o que irá receber não é o mesmo valor que era pago a Eduardo. "Vou receber 70% do benefício e por prazo de 15 anos", afirma ela. (Colaboraram Roberta Paranaense e Leonardo Augusto, Especiais para o Estadão)


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