Economia & Negócios

Por que a falta de chips tem parado a fabricação dos carros?

Semicondutor é item cada vez mais necessário nos automóveis; eletrônicos já representam 40% do custo dos carros

Texto: Cleide Silva

12 de março de 2021 | 14h50

Responsável pela paralisação da produção de montadoras no mundo todo, inclusive no Brasil, os semicondutores estão entrando cada vez mais nos automóveis. Em dez anos, a eletrônica embarcada, que tem como base os chips, representará metade do custo dos novos carros. Hoje a participação já está em 40%, praticamente o dobro do que era há duas décadas, segundo estudo internacional da consultoria Deloitte.

Essa presença forte e em alta vem do aumento das novas tecnologias embutidas nos veículos, que passam pelo sistema de injeção eletrônica, airbags, freio ABS, direção autônoma, ou seja, tudo que ajude a melhorar a dirigibilidade, o conforto, a segurança e a eficiência energética dos veículos.

300 é a quantidade média de chips em um SUV de médio porte 

A demanda por componentes eletrônicos, que não existem sem os semicondutores, vai crescer muito nesta década em que mais veículos vão rodar com energia elétrica e diferentes níveis de autonomia até chegar ao carro sem motorista. “Na virada dos anos 90 para os 2000 a eletrônica era 15% a 20% do custo dos carros; hoje passa de 40% e provavelmente em 2030 vai chegar a 45% ou 50%”, afirma Flavio Sakai, diretor da Associação Brasileira de Engenharia Automotiva (AEA).

Em outro comparativo, Sakai informa que no fim dos anos 80 cada carro tinha entre 10 e 15 semicondutores. Hoje, por exemplo, um modelo SUV de médio porte como o Taos, que a Volkswagen vai lançar até junho, tem cerca de 300 chips, segundo a fabricante. “Se no começo da década já temos esses números, ao fim dela cada automóvel deve passar de centenas de microprocessadores, principalmente quando a aplicação de inteligência artificial e conectividade for ainda maior.”

Os chips controlam sistemas eletrônicos que vão da direção ao controle de setas. Confira na arte abaixo alguns deles.



Onde está o chip?

A maioria das inovações automotivas depende de sistemas eletrônicos comandados por chips, uma espécie de nanocomputadores que abrigam vários circuitos integrados. São eles que estão possibilitando automóveis mais seguros, mais conectados, mais econômicos e menos poluentes se moverem com energia e sem motorista.

Dirigibilidade

Controle de transmissão
Detecção de faixa
Sensor de ponto cego
Sensor de estacionamento
Sensor de distância
Câmera de ré
Controle de posição da luzes
Controle de iluminação
Sistema de visão noturna
Frenagem automática
Frenagem de emergência
ABS
Controle de frenagem
Controle de estabilidade
Suspensão ativa
Acelerador eletrônico
Assistente de rampa
Direção elétrica
Disparo do airbag
Módulo de controle de direção
Parking assistance
Monitoramento do motorista
Radar
Comunicação curta distância
Comunicação veículo/veículo
Comunicaçãoveículo/estrutura
Controle de setas
Cruise Control

Eficiência energética

Controle de admissão de ar
Start stop
Controle do motor
Gerenciamento de bateria
Regeneração de energia

Conforto e informação

Controle de derrapagem
Controle de estabilidade
Controle de transmissão
Controle de vibração
Detecção de faixa
Redução de ruído do escapamento
Displays de passageiros
Controle de assentos
Controle do limpador de pára-brisas
Painel de instrumentos
Tuner AM/FM
Display multimídia
Rádio navegação
Rádio via satélite
Tuner digital
Módulo de câmera 360º
Controle de vidros
Controle de retrovisores
Sensor de chuva
Sensor de luz
Head up display
Carregador sem fio
Controle de ar condicionado
Módulo wifi
Hub USB

Segurança e outros

Câmera interior e exterior
Módulo de antena
CyberSecurity
Sensor de ultrassom Telemática
RFID (sistema de rastreamento)
Controle de trava de portas e alarme
Gateway
Immobilizer
Diagnose OBD II (sistema de autodiagnóstico)



“A presença de chips fica cada vez mais forte principalmente para melhorar a eficiência energética, a segurança e o conforto dos veículos”, afirma Camilo Adas, presidente da SAE Brasil, entidade ligada às áreas de engenharia e mobilidade do setor automotivo.

Os preços de componentes para microprocessadores variam muito de acordo com a aplicação. Segundo Ricardo Helmlinger, diretor de operações e marketing da Standard America, fabricante brasileira de placas eletrônicas, vão de US$ 10 para cada mil peças a US$ 50 um único item. “Posso importar os mais caros, mas se faltar um capacitor que custa US$ 1 não monto a placa”, diz.

A justificativa para a escassez desses componentes – produzidos em sua maioria na China, Coreia do Sul e Taiwan –, é que, durante a pandemia, as montadoras suspenderam encomendas porque as fábricas foram fechadas para evitar contaminações.

Fábricas de semicondutores ficam sobrecarregadas
Fábricas de semicondutores ficam sobrecarregadasMichael Dalder/Reuters

O maior número de trabalhadores em home office e de crianças fora da escola levou a um boom nas vendas de eletroeletrônicos como computadores, celulares, laptops, câmeras e fones de ouvido e toda a produção passou a ser direcionada para esses produtos.

Quando a situação da pandemia estava mais amena, setores da economia, entre os quais a indústria automobilística, retomaram atividades num ritmo superior ao esperado, provocando a incapacidade de atendimento da demanda. Com isso, a falta de chips se generalizou.

“Houve um deslocamento de aplicação e de demanda bastante significativo”, confirma Sakai. Segundo ele, a indústria automobilística fica atualmente com 13% da produção global de semicondutores.

No Brasil, onde não há produção de chips, as indústrias dependem da importação e estão disputando compras com o mundo todo. Há empresas brasileiras que adquirem componentes lá fora e fazem a montagem, mas também estão com dificuldades de adquirir peças.

Há especialistas e empresários que acreditam na normalização do mercado no segundo semestre, mas há quem aposte que o fornecimento regular vai ocorrer só a partir de meados de 2022.

Houve um deslocamento de aplicação e de demanda bastante significativo”

Flavio Sakai, diretor da Associação Brasileira de Engenharia Automotiva (AEA)

Assim como ocorreu no início da pandemia, quando o Brasil se deu conta de que precisava de produção local de itens como máscaras e respiradores, a falta de chips despertou a discussão no País. Adas informa que a SAE pretende promover debates sobre o tema em um recente grupo criado para avaliar produtos que podem ser fabricados no Brasil.

É quase consenso na indústria, porém, que a nacionalização do produto final é um processo difícil em razão da escala e dos preços competitivos dos asiáticos. Seria necessário elevado investimento e não justificaria fabricar só para o mercado brasileiro. Seria preciso atrair clientes externos, avalia Sakai.

O estrago no Brasil

Desde meados de dezembro grandes fabricantes de veículos dos Estados Unidos, Canadá, Europa, Japão, Coreia do Sul e México começaram a reduzir ou a paralisar a produção, colocando milhares de trabalhadores em férias coletivas, por falta principalmente de chips e outras peças para a produção. Estão nesse grupo Audi, Ford, General Motors, Honda, Mazda, Nissan, Renault, Stellantis (reúne Fiat, Jeep, Peugeot e Citroën), Subaru, Toyota e Volkswagen.

No Brasil, a primeira a parar por falta de circuitos eletrônicos foi a fábrica da Honda em Sumaré (SP), por uma semana em fevereiro e mais dez dias a partir de 1° de março, afetando a produção do sedã Civic.

A presença de chips fica cada vez mais forte principalmente para melhorar a eficiência energética, a segurança e o conforto dos veículos”

Camilo Adas, presidente da SAE

A General Motors suspendeu, na semana passada, toda a produção do complexo de Gravataí (RS), onde é produzido o Onix, carro mais vendido do País. Todos os funcionários, inclusive os das empresas de fornecedores, ficarão em férias coletivas até o dia 20.

Pouco depois do retorno, em 5 de abril, pelo menos metade deles ficarão em lay-off (com contratos suspensos) por dois meses. Nesse período a fábrica vai operar com apenas um turno de trabalho.

Na filial de São José dos Campos (SP), que produz a picape S10 e o SUV Trailblazer, a GM fará lay-off para 600 trabalhadores, também por dois meses, e a fábrica vai funcionar com metade da capacidade atual.

A GM informa que a falta de peças tem potencial de afetar de forma temporária e parcial o cronograma de produção e que trabalha com fornecedores, sindicatos e demais parceiros do negócio para mitigar os impactos gerados pela situação.

Fiat vai parar uma de suas linhas de produção em Betim (MG) por dez dias
Fiat vai parar uma de suas linhas de produção em Betim (MG) por dez diasWashington Alves/Reuters

Desde quarta-feira, 10, a Fiat suspendeu por dez dias o segundo turno de produção de uma das três linhas da fábrica de Betim (MG) e os trabalhadores ficarão em férias coletivas.

Segundo a Anfavea, associação que reúne as montadoras brasileiras, especialistas internacionais estimam que a crise de abastecimento de componentes deve resultar em queda global de 3% a 5% das vendas totais de veículos neste ano, previstas entre 76 milhões e 78 milhões de unidades.

A maioria das demais fabricantes afirma estar enfrentando problemas de abastecimento de chips e outros produtos, mas, no momento, não há planos de suspender a produção. Algumas tiveram paradas pontuais e redução ou atraso de produção. Estão nesse grupo Toyota, Volvo, Renault, Mercedes-Benz e Volkswagen.

3% a 5% é a perda de vendas globais prevista em razão da falta de peças 

A Volkswagen Caminhões e Ônibus tem mantido veículos incompletos no pátio e, quando chegam componentes convoca trabalhadores para horas extras para completar a montagem. Segundo a empresa, fornecedores têm recorrido ao transporte aéreo, quando há disponibilidade, para evitar atrasos em entregas, estratégia também adotada por parceiros da Volvo.

Recentemente, uma encomenda da Nissan chegou ao aeroporto de Viracopos em Campinas (SP) por volta de 1h. “Contratamos um helicóptero para buscar a carga e levar para a fábrica, em Resende (RJ), para que o primeiro turno conseguisse operar normalmente”, informa Tiago Castro, diretor da empresa no Brasil.

As empresas reclamam da falta de diferentes itens, em especial do aço que, além de escasso, teve reajuste de preço de 110% em um ano. Entre os produtos com dificuldade de abastecimento foram citados pneus, fundidos, forjados, aços planos e especiais, alumínio, resina de plástico e ligas metálicas.

Outro grande gargalo é a logística. O presidente da Mercedes-Benz do Brasil e América Latina, Karl Deppen, afirma que faltam contêineres, há atrasos na chegada de navios e o frete aéreo ficou caro. “Como o transporte de passageiros diminuiu, não existe porão disponível (em aeronaves)”.

Contratamos um helicóptero de madrugada para buscar a carga em Viracopos e levar para a fábrica em Resende (RJ) para que o primeiro turno conseguisse operar”

Tiago Castro, diretor da Renault

A Renault teve a produção em São José dos Pinhais (PR) suspensa por três dias no mês passado em razão de dificuldades logísticas para a chegada de componentes. Segundo o presidente da companhia, Ricardo Gondo, tem ocorrido atrasos de navios e, quando chegam ao porto, já perderam o local para atracar e ficam esperando dias para o desembarque. A matriz do grupo calcula que 100 mil veículos da marca podem deixar de ser produzidos em todas as suas fábricas neste ano por causa da escassez de semicondutores.

Na contramão de grande parte das fabricantes, a BMW informa que a fábrica de Araquari (SC) opera normalmente. A empresa comprou suprimentos antecipadamente e até chamou funcionários para trabalho extra em dois dias “para atender aumento de demanda”. Na última terça-feira, a fabricante de modelos premium anunciou que vai aumentar em cerca de 10% o volume de produção neste ano, para 10 mil unidades.

Preço do chip sobe até 250%

Com a escassez de semicondutores vieram os reajustes de preços, que vão de 5% a 250%, dependendo do item, informa Ricardo Helmlinger, diretor de operações e marketing da Standard America, fabricante de placas eletrônicas em Campinas. O frete do transporte aéreo, sempre usado pela empresa, também está mais caro.

Além disso, diz ele, o prazo de entrega de componentes, que era de um a dois meses, passou para cinco a seis meses, mesmo com as fornecedoras, a grande maioria asiáticas, operando com 100% da capacidade.

“Materiais que deveríamos ter recebido antes do Natal chegaram na primeira semana de fevereiro, isso porque antecipamos a compra, pois hoje os prazos estão ainda mais longos”, diz Helmlinger. Ele importa praticamente tudo para a montagem das placas que são usadas, no caso do setor automotivo, em equipamentos como ar condicionado e limpador de para-brisa.

Helmlinger: pedidos feitos agora chegam só em agosto ou setembro
Helmlinger: pedidos feitos agora chegam só em agosto ou setembroBenHur Studio

Pedidos que a empresa fez agora para a produção a partir de junho estão previstos para serem atendidos em agosto ou setembro. O executivo ressalta ainda que em Taiwan, onde estão os maiores fabricantes de wafers (como são chamadas os discos de silício semi acabados para chips), estão com falta de água, que é crucial para o processo de enriquecimento do silício.

“Esse vai ser um ano bastante complicado”, lamenta. A única solução, diz ele, é a expansão da capacidade produtiva das fabricantes de componentes, mas isso leva tempo.


Expediente

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