Economia & Negócios

Viver em cima do Rio

Mancha urbana de Manaus, cidade de 1,7 milhão de habitantes, se expande pelas margens dos rios

Texto: Adriana Fernandes e Idiana Tomazelli

17 de dezembro de 2020 | 05h00





Nas casas próximas dos rios e igarapés de Manaus, o quarto do casal tem a função de sala onde os moradores se reúnem. É assim na residência do mecânico Eliazb Lopes Dantas, o Lio, de 43 anos, no bairro de Educandos, na beira do Rio Negro, em Manaus. Ali, a família recebe as visitas para tomar uma bebida gelada com uma conversa. O frigobar e o ar condicionado potente ficam próximos da cama, usada como sofá.

Dono de uma balsa-oficina de motores, Lio é chamado pelos vizinhos de “riquinho”. Além da oficina e da casa de três andares, que comprou da irmã – única com curso superior da família e que foi morar em Portugal –, tem dois carros, uma residência no interior e outra alugada no mesmo bairro. Ele vive com a mulher, Elizandra, e as filhas Thais, de 19 anos, estudante de História na Universidade Federal do Amazonas, e Thalia, de 9.

No Brasil de 2020, casas ainda são erguidas em palafitas, de forma precária, à beira dos rios
No Brasil de 2020, casas ainda são erguidas em palafitas, de forma precária, à beira dos riosGabriela Biló / Estadão

Na comunidade que se desenvolveu num igarapé, como é chamado um braço do rio, as casas são coladas umas nas outras ao longo de um barranco. As primeiras, localizadas à margem e dentro do Negro, são de palafitas. À medida que se afastam da água, elas ficam maiores – e de alvenaria.

Bairro antigo, Educandos sofreu, em dezembro de 2018, um incêndio que atingiu 600 casas e deixou marcas. O fogo começou em uma área com dezenas de habitações de madeira e rapidamente se propagou para as residências de alvenaria. “O fogo chegou a cinco metros daqui. Foi um dos momentos mais tristes da minha vida. Todos os meus amigos moravam ali e perderam tudo. As coisas que conseguiam pegar as pessoas depois iam roubando”, relembra Lio, no terraço no alto da sua casa, de onde tem um vista privilegiada do bairro. Quem perdeu a casa no incêndio não conseguiu voltar até hoje, dois anos depois.

A casa para Lio é sinônimo de conforto e paz com a família. “Conforto é ter uma cama boa, ar condicionado gelando e uma televisão que dê para assistir a um canal fechado. Não preciso mais de nada. E essa bicha do meu lado e outra do outro”, diz ele, ao lado das duas filhas.

O mecânico de motor de popa diz ter tido sorte com a profissão, uma atividade especialmente rentável na região. Um conserto mais simples de motor, onde os barcos são o principal meio de transporte, não sai por menos de R$ 500. Os serviços mais caros podem chegar a R$ 5 mil.

Lio diz gostar de onde mora, mas comprou um terreno num condomínio fechado a seis quilômetros de distância de Educandos. Planeja construir uma casa. A mulher quer ir embora do bairro à beira do rio em razão da violência. “Aqui na rua a gente é o riquinho”, diz o mecânico.

O mecânico Lio mora em casa de alvenaria em Educandos, bairro de Manaus, e é chamado de ‘riquinho’
O mecânico Lio mora em casa de alvenaria em Educandos, bairro de Manaus, e é chamado de ‘riquinho’Gabriela Biló / Estadão

Na nova casa, planejada para ter quatro suítes, ele pretende realizar o sonho de dispor de uma piscina. Chegou a pensar em construir uma no terraço da casa de Educandos. Mas acabou desistindo depois do alerta de que a construção, feita sem nenhum planejamento, não resistiria ao peso da água. “Meu sonho sempre foi ter uma casa. Eu já fiz uns cem projetos. Mas tem de ter uma piscina, porque eu gosto de água. Vivo literalmente dentro dela.” A casa nova, diz ele, será feita por uma construtora em dois anos.

A pandemia mudou a rotina da família e consumiu a economia para começar a construção da nova casa. Lio continuou indo para a balsa-oficina, mas os clientes sumiram. A queda no faturamento chegou a 90% com a restrição da circulação dos barcos na cidade. Com o isolamento em casa, passou boa parte do tempo na frente da TV com as filhas, vendo filmes e documentários e fugindo das notícias pesadas sobre o coronavírus. O acolhimento da casa, diz, ganhou importância ainda maior na pandemia. Os clientes estão voltando agora, com a reabertura da economia, e o ritmo de trabalho já está “quase normal”.

Pandemia atingiu em cheio os moradores da comunidade de Educandos, em Manaus
Pandemia atingiu em cheio os moradores da comunidade de Educandos, em ManausGabriela Biló / Estadão

Na vizinhança, muitos moradores passaram o pior momento da pandemia como se não houvesse perigo. “Tá morrendo gente e a maioria não acredita”, diz. Na sua rua, dois vizinhos morreram. Na família, foram dois tios. “Estamos vencendo a doença. Eu falo sempre que moro no maior hospício a céu aberto do mundo, mas aqui somos uns loucos pelos outros”, afirma Lio. Pelo WhatsApp, ele envia uma foto da paisagem do rio ao lado da seguinte mensagem: “Eu não tenho o que reclamar”.


‘Casa’ de Raimundo no Rio Negro foi feita por ele mesmo com geladeiras velhas amarradasGabriela Biló / Estadão

A casa flutuante de Raimundo ganhou mais um andar

Na beira do Rio Negro, no centro de Manaus, Raimundo Silva construiu a sua casa entre os barcos que fazem o transporte diário para as localidades da região. Já são quase 10 anos morando na água, embaixo do paredão que cerca a região do porto da capital do Amazonas. O barulho é grande. A noite assusta até o cachorro que acompanha o dono da moradia improvisada com geladeiras velhas.

Amarradas, as sucatas de geladeiras se transformam num flutuante, onde o cearense, de 52 anos, vive e passa os dias à procura de comida e também de companhia. É a sua morada. “Nessa brincadeira, já são mais de nove anos aqui, mas não estou gostando, não. O sofrimento é grande. Agora chegaram vocês para me animar”, diz à reportagem.

Ele migrou para a região aos 16 anos e afastou-se da família de Jaguaruana, município do Vale do Jaguaribe, no Ceará, mais conhecido como a “terra da rede”. Local de dormir na casa da infância, a rede também está presente no flutuante-geladeira. “O problema da gente é comer. Se tiver comida, a gente deita na rede e espera ela se rasgar. Se não tiver comida, a barriga ronca e, aí, dá trabalho.”

Eu agora estou trabalhando só comendo.”

Raimundo Silva, desempregado, construiu casa com geladeiras

A Marinha alertou Raimundo para os riscos de acidentes com outras embarcações, mas ao fim o deixou morando ali. Ele trabalhou em fazendas, consertou ventiladores. Fez de tudo um pouco. Foi um homem de bicos. Hoje, não tem emprego, nem família, nem bico para ganhar um trocado. Seu trabalho é buscar comida. À pergunta sobre onde trabalha, a resposta é rápida: “Eu agora mesmo estou trabalhando só comendo”. Raimundo diz ser o inventor da sua moradia. “Essa casa eu fiz, porque não tinha onde morar. Para não ficar muito jogado, em cima do papelão, os outros chutando. E, aí, eu inventei. Botei uma geladeira, botei outra e outra”, conta.

Desempregado, sonha com a promessa de um amigo, de que ganharia uma canoa com motor. A morada ideal é uma embarcação capaz de entrar mais no Rio Negro, para poder parar e comer um “peixinho até bom”. “Eu gosto de morar no rio”, diz. Na despedida, ele pega um instrumento tão improvisado quanto a sua casa e canta para a reportagem o sucesso de Zezé Di Camargo & Luciano, No dia em que eu saí de casa.

Na pandemia, Raimundo continua resistindo. Um vizinho que passou de barco por lá enviou à reportagem uma foto recente da casa de geladeiras - agora com um segundo andar. Com a chegada da covid-19, ele e boa parte dos brasileiros se voltaram ainda mais para dentro de suas residências.


Sonho interditado pela pandemia

Quando a covid-19 chegou à comunidade de São João do Tupé, a vida da ribeirinha Kelly Ferreira já tinha se transformado. Oito meses antes da pandemia, ela mostrava com orgulho para a reportagem do Estadão a casa de dois andares, quatro quartos, que estava construindo com o marido em Tupé, uma das praias próximas de Manaus, com acesso somente fluvial, de areias brancas às margens do Rio Negro e muito frequentada nos fins de semana.

Casa de Kelly: sonho de terminar construção adiado por acidente e pela pandemiaGabriela Biló / Estadão

Como em muitas casas ali, o quarto principal do casal é o cômodo central. Espaçoso, colorido, uma cama grande, as crianças em torno da televisão. A porta de entrada de madeira entalhada, vibrante, chama a atenção com o desenho de um pássaro da região. A varanda está voltada para a rua principal da comunidade, uma espécie de balneário turístico na porta de entrada da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Tupé. A construção de madeira estava sendo feita aos poucos pelo marido com o dinheiro da vendinha ao lado da casa e da pesca fora dos meses do defeso. Líder comunitária da associação de moradores, Kelly se destacava pelo discurso direto, a vontade de fazer as coisas acontecerem em Tupé e pelo desejo de fazer faculdade de Pedagogia.

Um mês antes de a covid-19 se alastrar pelo Brasil e chegar feroz à Região Norte, tudo mudou para a família. Vítima de um atropelamento numa das vias mais movimentadas de Manaus, onde trabalhava como gari da prefeitura, Kelly ficou 15 dias na UTI e outros 15 no quarto do hospital. A volta para casa depois do acidente coincidiu com o início da pandemia.

8 mil pessoas vivem em cortiços em Manaus

Em maio, quando a reportagem do Estadão a procurou para saber como a família estava enfrentando os efeitos do coronavírus, Raimundo, o marido, foi o porta-voz. A mulher estava na cadeira de rodas, com dificuldade para falar e perda parcial de memória. O casal, que estava brigado antes do atropelamento, se juntou novamente para enfrentar as dificuldades ampliadas pelo acidente e pela paralisação do turismo em Tupé.

Beneficiário do seguro-defeso, Raimundo não pôde receber o auxílio emergencial de R$ 600 do governo. E Kelly, desempregada da empresa terceirizada de limpeza urbana, não passou no cruzamento de dados defasados do governo para a concessão do benefício. Uma realidade que atingiu milhares de brasileiros que perderam o emprego pouco antes da pandemia e ficaram sem o auxílio. “Não chegou a trabalhar 15 dias e sofreu o acidente”, conta Raimundo.

Depois da alta do hospital, Kelly foi para a casa da tia, mas quis voltar para Tupé. O atropelador, que deu assistência depois do acidente, avisou que não tinha mais condições de ajudar. A colônia de pescadores conseguiu consultas médicas pela metade do preço.

Vamos acabar a casa, se Deus quiser, quando passar esse negócio aí.”

Raimundo Ferreira, sobre os planos pós-pandemia

Sem dinheiro e com a comunidade isolada pela pandemia, a família parou a obra. A cozinha, os quartos e o banheiro ficaram incompletos. “Vamos acabar a casa, se Deus quiser, quando passar esse negócio aí”, diz Raimundo.

Dois meses depois do primeiro contato durante a pandemia, a reportagem voltou a procurar Kelly, que já estava falando melhor e andando de muleta. O auxílio foi liberado para ela. O projeto de terminar a casa e o sonho de fazer uma faculdade não morreram.

Com a pandemia, as bases frágeis da política de habitação voltaram a ficar expostas, agora por um drama mais longo do que o provocado pelas enxurradas de verão e mais repentino do que o déficit crônico de moradia. É uma política que se sustenta em realidades e dados ultrapassados. As novas visões de meio ambiente e sustentabilidade, as modificações urbanas e as alterações das economias regionais não são levadas em conta na definição de valores e na distribuição de investimentos em moradias populares.


A casa fica longe do centro do debate

No Brasil de 2020, após um histórico de programas habitacionais e até “booms” no mercado imobiliário, ainda há casas sem banheiro, palafitas construídas de forma improvisada sobre a água e cômodos abrigando muito mais gente do que a dignidade colocaria como limite. São deficiências encravadas em grandes capitais ou em rincões e que nem sempre ganham visibilidade, uma vez que rastrear essas carências tem seus próprios obstáculos. O mapa mais recente do déficit habitacional já tem cinco anos. Daí em diante, uma sequência de temporadas de enchentes, incêndios, crises no mercado de trabalho e na saúde causou impactos na vida brasileira.

A Fundação João Pinheiro fez neste ano um levantamento preliminar sobre a situação dos domicílios brasileiros e concluiu que um terço deles é inadequado. São 24,5 milhões de habitações impróprias para moradia no País, segundo dados de 2019. A maior parte (14,1 milhões) sofre com falta de infraestrutura urbana. Outro grupo, de 10,8 milhões, acumula inadequações em sua própria construção (como é o caso de ausência de um banheiro). Há ainda 3,6 milhões com problemas fundiários - os domicílios podem ter mais de um tipo de inadequação. A simples existência de um banheiro é fator de dignidade que falta em 1,6 milhão de domicílios, a maior parte (1,5 milhão) no Norte e Nordeste, segundo o IBGE. No Norte, um em cada 10 domicílios não tem banheiro exclusivo para seus moradores.

1,6 milhão de moradias não têm banheiro no Brasil

Dar a essas habitações já existentes um banheiro, um piso adequado, um reboco que contenha a umidade ou simplesmente condições dignas de moradia demanda um investimento médio de R$ 10 mil, nas contas do próprio governo federal. Considerando as 10,8 milhões de casas com estrutura inadequada, seriam necessários R$ 108 bilhões apenas para melhorar o que já está de pé. Sem dinheiro, o governo pretende apostar em soluções de acesso a crédito mais barato para atacar o problema.

Pelo menos 24,5 milhões de habitações no País são impróprias para moradiaGabriela Biló / Estadão

Apesar do cenário de atraso, os brasileiros renovam interesses de ampliar uma casa ou se mudar, forçando outros significados para o verbo “morar”. A palavra se traduz de forma livre e adquire sentido particular em cada um dos 72,4 milhões de domicílios espalhados nas cinco regiões do País. Seu significado tem a ver não só com a casa, mas com conforto, trabalho, independência, classe social, higiene e até a comida que se põe à mesa. Cada um tem sua visão particular sobre o que é morar bem, que vai, muitas vezes, além da realização do sonho da casa própria.

De 2015 para cá, a população brasileira passou de 204 milhões para 211 milhões de pessoas. Não se sabe o que isso representou em termos de ocupação irregular nas cidades e no campo. O fato é que, desde a redemocratização, todos os programas habitacionais ignoraram os centros urbanos, espaços onde já existem estruturas de mobilidade, saúde e educação. Os governos optaram por construir conjuntos habitacionais em regiões afastadas do emprego e da renda. Os mesmos formatos de casas foram construídos para ribeirinhos na Amazônia, pescadores no Nordeste e operários no Sudeste. Isoladas de outras ações de Estado, as políticas de moradia também ignoram mudanças no comportamento e nos desejos das famílias, formadas com cada vez mais idosos, pessoas com necessidades especiais, menores e sem renda.

3,6 milhões de casas têm problemas fundiários

Se a falta de moradia sempre foi um desafio nacional, a atual situação econômica e a crise fiscal de União, Estados e municípios conferem contornos dramáticos à questão diante da falta de recursos para novos investimentos nessa frente. Pessoas expulsas de onde vivem por causa do alto valor do aluguel e o adensamento excessivo estão entre os problemas. O total de 7,3 milhões de desempregados de 2014 passou para 13,8 milhões no trimestre encerrado em agosto deste ano. É uma legião na informalidade ou alijada do mercado de trabalho e, consequentemente, das linhas de financiamento dos bancos oficiais.

O último grande programa habitacional, o Minha Casa, Minha Vida, definhou. Para 2020, o orçamento é de R$ 2,8 bilhões, o menor valor para esse tipo de ação em uma década, longe do pico de mais de R$ 20 bilhões atingido em 2015. Seu sucessor, o Casa Verde e Amarela, chegou com foco na concessão de financiamentos subsidiados para quem consegue crédito na praça e tem renda para bancar os pagamentos. Outra vertente de alcance ainda incerto, por causa da restrição de recursos na União, está voltada à regularização de casas ainda imperfeitas, mas que existem e têm dono. A fase de construção de unidades para famílias carentes é página quase virada na política habitacional do País.


Expediente

Editor executivo multimídia: Fabio Sales / Editora de infografia multimídia: Regina Elisabeth Silva / Editores assistentes multimídia: Adriano Araujo, Carlos Marin, Glauco Lara e William Mariotto / Designer multimídia: Vitor Fontes / Coordenação em Brasília: Leonêncio Nossa / Foto de abertura: Gabriela Biló / Estadão 

Mais conteúdo sobre:

O Estadão deixou de dar suporte ao Internet Explorer 9 ou anterior. Clique aqui e saiba mais.