Esportes

Como os jogadores brasileiros viraram superastros e celebridades

Craques em campo e fenômenos midiáticos fora dele que contribuíram para valorização do esporte

João Prata

19 de setembro de 2020 | 16h00

O futebol brasileiro tem um histórico de atletas fenomenais que extrapolaram os campos, tornaram-se ícones nacionais, verdadeiras celebridades. A depender do recorte que for feito, dá para incluir mais de uma dezenas dessas personalidades. O Estadão optou por apontar apenas os fora de série mesmo, aqueles que contribuíram para colocar a modalidade em outro patamar. A ideia é mostrar neste especial como eram vistos esses atletas-celebridades do início do século 20 até os dias atuais.

A escalação desse time é restrita. Começa com Arthur Friedenreich, passa por Leônidas da Silva e chega em Pelé, a grande estrela e ícone mundial. O futebol muda de status, entra para a era da globalização com Ronaldo Fenômeno. Após a internet e as redes sociais, Neymar aparece e é sem dúvidas o craque mais exposto entre todos esses brasileiros.

O jornalista e pesquisador Celso Unzelte escreveu uma tese de mestrado chamada "Futebol em revista no Brasil: dos primeiros títulos à resistente Placar" - publicação esportiva da Editora Abril. Juntamente com o levantamento histórico de publicações, ele realizou extensa e detalhada pesquisa iconográfica, além de entrevistas com jornalistas da área.

Arthur Friedenreich
Arthur FriedenreichReprodução/ Estadão

Arthur Friedenreich jogou bola entre 1909 e 1935. Ídolo do Flamengo e do São Paulo, foi o primeiro jogador de futebol a ocupar a capa de uma revista, em 1917, na edição de número 3 da Cigarra Esportiva. Foi destaque também das capas das quatro edições seguintes. "Era um período em que os ídolos do futebol eram paulistas ou cariocas. Friedenreich transcendeu isso graças à disputa do Sul-Americano de 1919 com a seleção brasileira", conta Unzelte. Logo após a realização do torneio continental, a chuteira de Friedenreich ficou exposta no Mappin, principal loja de departamento da época, no centro da cidade de São Paulo.

“Agora é o momento em que o jogador tem suas próprias redes sociais, onde ele muitas vezes acaba gerando a pauta para o jornalista. As redes sociais são um rastilho de pólvora, é muito mais rápido do que era com o rádio e com a televisão.”

Celso Unzelte, jornalista e pesquisador

A historiadora Diana Mendes fez uma pesquisa de doutorado em jornais e revistas do início do século 20, entre os anos de 1910 e 1942, sobre o assunto. O trabalho dela ficou em cima de dois nomes: Marcos Carneiro de Mendonça, que foi goleiro do Fluminense, e Leônidas da Silva. O primeiro foi um atleta vindo da elite,de uma família que circulava nas colunas sociais. O outro, um negro, de origem humilde, buscando espaço em um esporte até então elitista e preconceituoso.

"As primeiras fotos dos atletas dessa época eram posadas. Não havia quase que foto de jogo. A máquina fotográfica era muito pesada, custava caro, eram poucas as pessoas que tinham. O futebol era um jogo recente. Não havia experiência de se fazer foto em movimento", comentou Diana.

A especialização dos fotógrafos na imagem esportiva consagrou a figura de Leônidas da Silva como a segunda celebridade do futebol. "O período de industrialização no Brasil fortaleceu o campo esportivo e midiático. Ex-escravizados foram se organizando para entrar no mercado de trabalho. Atividades como o futebol e a música estavam se abrindo e não exigiam escolarização", explica Diana

O termo ‘craque’ surgiu nessa época. A palavra vem do inglês, crack, que significa quebra ou rachadura. Assim, o termo ‘craque’ era usado em quase todos os esportes. E Leônidas foi o primeiro no futebol a receber esse adjetivo.

Leônidas da Silva, capa da revista Sport Illustrado, em junho de 1938
Leônidas da Silva, capa da revista Sport Illustrado, em junho de 1938Reprodução/Estadão

Leônidas atuou profissionalmente entre 1929 e 1950 e passou a ser figura requisitada nas propagandas. Tinha um relógio com seu nome, fez comercial de carro e teve até um chocolate da Lacta batizado com seu apelido dos gramados: Diamante Negro. Era um período antes da televisão, onde a força de propagação das notícias vinha do rádio.

Leônidas revelou até certa mágoa por ser considerado menor do que Pelé. Costumava dizer que se tivesse televisão em seu tempo a história seria outra. Mas nem tudo jogou contra ele. A fotografia o colocou como inventor da bicicleta, a jogada mais difícil do futebol, embora ele nunca tenha dito ser o criador do movimento. “Há relatos sobre bicicletas dos anos 30. Mas ninguém conseguiu fotografar. A mais perfeita surgiu só em 1948, quando faltavam dois anos para Leônidas encerrar a carreira. Outros jogadores executavam o movimento. Há também relatos de que pode ter sido inventado por outros três atletas: chileno, uruguaio ou italiano. Mas não havia a cultura da foto como prova”, conta Diana. (veja aqui a reportagem com o obituário de Leônidas).

Friedenreich em destaque no Estadão em 6/11/2011
Friedenreich em destaque no Estadão em 6/11/2011Acervo/Estadão


Obituário de Leônidas da Silva em 25/01/2004
Obituário de Leônidas da Silva em 25/01/2004Acervo/Estadão

Pelé, uma marca do futebol

Pelé e seu tradicional soco no ar
Pelé e seu tradicional soco no arDomício Pinheiro/Estadão

Após Leônidas romper protocolos no futebol e tornar-se o primeiro ídolo negro, Pelé tratou de alçar o futebol a outras proporções, capaz até de parar uma guerra, em 1969, reza a lenda. Na ocasião, o Santos foi para a Nigéria fazer um amistoso e interrompeu a Guerra de Biafra, que já durava dois anos. Pelé tornou-se uma marca, possui um departamento de licenciamento de suas coisas. As exposições e associações ao seu nome são feitas de maneira criteriosa, pois carregam outros patrocinadores. É gigante nesta área como foi dentro de campo. Uma celebridade comparada a presidentes dos EUA e papas.

Pelé é uma lenda viva. Além dos comerciais, participou de filmes, virou nome de estádio. Existe o Museu Pelé, em Santos. Pelé transcende o futebol.

Há um interesse mundial em sua história, em cada passo que dá. Sua vida pessoal é acompanhada e seguida pelos meios de comunicação. Como o extinto Jornal da Tarde, que estampou em sua capa esportiva da primeira edição o casamento do Rei do Futebol.

"Tem de lembrar que eram outros tempos, outros valores. O Pelé foi ganhar dinheiro depois que parou, quando assinou contrato com a Warner para jogar nos Estados Unidos. No Brasil, ele tinha um bom salário. O Leônidas da Silva, a Lacta explorou a marca Diamante Negro por décadas. O livro do André Ribeiro, Os Donos do Espetáculo, conta que o Leônidas trocou o uso da marca por uma caixa de goiabada. O futebol não era um grande negócio de lazer", explica Unzelte.

Casamento de Pelé em destaque na edição de 22/02/1966
Casamento de Pelé em destaque na edição de 22/02/1966Acervo/Estadão

Ronaldo Fenômeno e a globalização

Ronaldo comemora gol contra o Japão na Copa de 2006
Ronaldo comemora gol contra o Japão na Copa de 2006Eduardo Nicolau/Estadão

O fenômeno midiático seguinte foi Ronaldo, apesar de nos anos 80 o futebol brasileiro ter revelado grandes craques que também fizeram comerciais de televisão, como Zico, Sócrates e Falcão. Mas Ronaldo apareceu em um momento de transformação do negócio futebol, de maior profissionalização, de globalização nos anos 90, quando os direitos televisivos do futebol transformaram o esporte num negócio bilionário. "Em 1998, o Ronaldo foi apontado como o rosto mais conhecido do mundo depois do papa, para se ter uma ideia do que ele representava", lembra Unzelte.

Ronaldo revolucionou o marketing esportivo mundial e não é exagero compará-lo a Michael Jordan, ambos astros com contrato vitalício com a Nike. Pode-se dizer que foi o primeiro craque da era digital. O primeiro também a contar com um estafe para cuidar da sua imagem. Era um astro pop amigo de celebridades como o cantor Bono Vox, do U2, namorou atrizes e modelos e virou até personagem de Os Simpsons.

A preocupação com sua carreira ia da comemoração do gol com o indicador em riste, em uma referência ao número 1, slogan da cerveja Brahma, a realizar campanhas humanitárias pelo mundo - tornou-se embaixador da ONU. Era monitorado o tempo inteiro e teve muitos problemas também por isso, como quando foi detido num motel ao lado de três travestis. Não tinha paz. Pagava o preço alto das celebridades, sempre vigiadas pela mídia.

Ronaldo e sua vida pessoal em destaque em 14/05/2005
Ronaldo e sua vida pessoal em destaque em 14/05/2005Acervo/ Estadão

Neymar e a exposição nas redes sociais

Neymar na final olímpica contra a Alemanha, no Maracanã
Neymar na final olímpica contra a Alemanha, no MaracanãAlex Silva/Estadão

A internet e depois as redes sociais começaram a expor muito mais os ídolos esportivos. Ronaldo chegou a vender seu endereço no twitter para uma empresa de telefonia em 2010. Neymar, nos últimos anos, é o principal ícone nessa transformação tecnológica.

“Agora é o momento em que o jogador tem suas próprias redes sociais, onde ele muitas vezes acaba gerando a pauta para o jornalista. As redes sociais são um rastilho de pólvora, é muito mais rápido do que era com o rádio e com a televisão", diz Unzelte.

Neymar coleciona polêmicas dentro e fora de campo. É um ídolo pop, com milhões de seguidores pelo mundo e toda sua manifestação gera polêmica. O craque é o único brasileiro a aparecer na lista das 25 celebridades mais bem pagas do mundo, divulgada em junho deste ano pela Forbes. O atacante do PSG está em sétimo lugar com ganhos de US$ 95,5 milhões (R$ 512 milhões).

Neymar em destaque com Bruna Marquezine em 3/03/2018
Neymar em destaque com Bruna Marquezine em 3/03/2018Acervo/ Estadão

O jornalista e pesquisador exemplificou a transformação do mundo das celebridades esportivas com uma confusão em que Pelé se meteu nos anos 60, que se acontecesse com Neymar atualmente viraria assunto nos jornais por semanas. Na época, ninguém comentou nada. No vestiário do Santos, após uma partida de futebol, um embaixador queria furar fila para pegar autógrafo do Rei. Pelé percebeu e não deixou. O embaixador xingou Pelé, que partiu para cima do cidadão. "Isso aí só viu quem estava lá no vestiário. E foi contado pelo jornalista Armando Nogueira, da Globo, anos mais tarde. Hoje, se acontece algo desse tipo, logo surgiria um vídeo nas redes sociais".

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Editor executivo multimídia Fabio Sales / Editora de infografia multimídia Regina Elisabeth Silva / Editores assistentes multimídia Adriano Araujo, Carlos Marin, Glauco Lara e William Mariotto / Designer Multimídia Lucas Almeida / Editor de Esportes Robson Morelli / Reportagem João Prata

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