Quando Donald Trump se elegeu, em 2016, uma onda de incentivo ao populismo varreu o mundo. Autocratas e líderes com tendência autoritária sentiram uma lufada favorável para continuar suas tentativas de sedimentar o poder e minar opositores com a ascensão de ideólogos conservadores ao posto de conselheiros do presidente da maior democracia do mundo. A vitória de Joe Biden na eleição americana não arrefeceu a marcha da erosão democrática no mundo, e nem deve fazê-lo em um futuro próximo, segundo especialistas no assunto ouvidos pelo Estadão.
“Em todo o mundo, as democracias estabelecidas enfrentam um processo de ‘erosão’: estão muito menos estáveis e ainda menos democráticas do que décadas atrás”, afirma Steven Levitsky, professor de Ciência Política da Universidade Harvard e coautor de 'Como as Democracias Morrrem'. “Nenhuma democracia é inquebrantável, e a maior ameaça à democracia é acreditar que ela é permanente e não precisa ser defendida.”
As causas dessa erosão democrática incluem o descontentamento crescente das populações provocado pelo aumento da desigualdade. Essa raiva levou ao crescimento do populismo, com suas soluções fáceis para problemas complexos, e o consequente enfraquecimento das normas democráticas, além do acirramento das tensões ideológicas do radicalismo e a expansão das notícias falsas e fragmentação da mídia. Políticos populistas responderam a esses sentimentos de raiva e frustração insuflando o radicalismo para mostrar aos eleitores que suas queixas são importantes.
A confiança no sistema democrático foi estabelecida no mundo pós-1989, após a queda da União Soviética. No entanto, estudos indicam que essa confiança diminuiu no último quarto de século, à medida que os regimes democráticos lutam para enfrentar um mundo em rápida globalização. Com o passar do tempo, os sistemas democráticos parecem menos propensos a se universalizar e mais propensos a retroceder.
Uma pesquisa realizada pelo Pew Research, centro de estudos com sede em Washington, nos Estados Unidos, mostrou que 52% da população está insatisfeita com o funcionamento de sua democracia, em comparação com 44% que estão satisfeitos.A pesquisa, feita em 34 países desenvolvidos e em desenvolvimento, com 38.426 pessoas, tentou entender a importância de valores democráticos.
A satisfação dos cidadãos com a democracia está diretamente relacionada ao desempenho econômico de seus países, à escolaridade e a presença ou ausência do partido que apoiam no governo. Cerca de dois terços estão satisfeitos com a forma como a democracia está funcionando na Suécia, Holanda, e Alemanha, mas cerca de dois terços ou mais têm opinião oposta na Espanha, Itália, Reino Unido, Estados Unidos e Grécia. A maioria está insatisfeita nas três nações latino-americanas pesquisadas: Brasil, Argentina e México.
Os jovens também estão mais insatisfeitos com a democracia. Mais preocupante, eles estão mais insatisfeitos com a democracia do que as gerações anteriores estavam na mesma idade. Isso os torna inclinados a políticas extremas de esquerda ou direita - o que pode, por sua vez, ameaçar ativamente a democracia no futuro. Esta evidência sobre atitudes vem de um novo estudo, Juventude e Satisfação com a Democracia, do Centro para o Futuro da Democracia da Universidade de Cambridge.
O estudo, feito em 160 países com 4,8 milhões de entrevistados,mostra que 55% dos jovens de 18 a 34 anos em quase todas as regiões do mundo tem pouca fé ou satisfação com a democracia, e 57% deles têm visões positivas sobre líderes populistas de esquerda ou direita. Entre os chamados ‘millennials’: aqueles que atingiram a maioridade no século 21, nascidos entre 1981 e 1996, é um aumento de 16% em relação à desconfiança com populistas da chamada ‘Geração X’: que atingiu a maioridade na década de 1990, e nasceram entre 1965 e 1980.
As ideias autoritárias se alimentam da insatisfação e a revolta das pessoas com as dramáticas mudanças sociais e demográficas das últimas décadas. Esse mal-estar não vai desaparecer”
As duas pesquisas indicam que as ideias no cerne da democracia liberal permanecem populares entre os públicos globais, mas o compromisso com a democracia enfraqueceu. A insatisfação com a democracia e sua capacidade de lidar com os problemas enfrentados pela maioria da população é o cerne do problema.
“Na base da erosão democrática estão as atitudes dos cidadãos. Em números cada vez maiores, as populações de nações democráticas estão se tornando mais abertas a alternativas autoritárias-populistas à democracia”, disse ao Estadão Yascha Mounk, cientista político alemão e autor do livro 'O Povo Contra a Democracia'.
Vários fatores contribuem para essa falta de compromisso, mas principalmente a percepção do quão bem a democracia está funcionando. “A maioria acredita que as eleições trazem poucas mudanças, que os políticos são corruptos e estão fora de contato e que os tribunais não tratam as pessoas com justiça”, diz Mounk.
Em muitas democracias, instituições de controle não conseguiram se antecipar e prevenir a ascensão de candidatos extremistas nos últimos anos, que usaram suas ideologias para insuflar o radicalismo. Isso acabou afetando a elite política, com a diminuição da adesão às normas democráticas. À medida que a polarização política aumenta, os líderes dos partidos oponentes abandonam as práticas de tolerância mútua. Consequentemente, esses políticos descartam a mediação e o diálogo, recorrendo a medidas extremas para derrotar seus adversários políticos.
A era dos golpes militares histriônicos ficou para trás, e a maior ameaça à democracia vem de governos no poder. Com o tempo, líderes sem escrúpulos conseguem esvaziar completamente a democracia. “As instituições eram fechadas ou eliminadas, havia tomada de palácio. Ainda temos golpes, como no Egito e na Tailândia, mas eles estão desaparecendo. Hoje líderes eleitos matam a democracia devagar, usando força popular, como os referendos. Muitas vezes é difícil perceber que com esses processos as democracias estão morrendo”, diz Levitsky. “Duas décadas atrás, a Venezuela era uma democracia vibrante, mas hoje a oposição mal existe.”
Nos próximos domingos, o Estadão retratará momentos em que instituições de diferentes países começaram a erodir, às vezes sem que a população percebesse.
Na Nicarágua, o processo está em fase final. O líder populista Daniel Ortega, político de esquerda, hoje com 72 anos, chegou à presidência pela primeira vez em 1985, lá ficando até 1990. Em 2006 voltou ao cargo, em que permaneceu em 2011 e 2016 após duas reeleições seguidas. Graças às alterações constitucionais que ele levou a cabo em 2014, o país permite sucessivas e ilimitadas reeleições. O processo enfraqueceu as instituições e permitiu que Ortega perseguisse e prendesse opositores .
Mesmo em países onde a democracia parece sólida e inabalável, há riscos. Os Estados Unidos são o melhor exemplo. Antes de Trump assumir, havia a certeza inabalável de que a democracia americana estaria livre de qualquer tentativa de golpe. As eleições de 2020 e as seguidas alegações infundadas de Trump de que houve fraude culminaram com a invasão do Capitólio e um risco concreto para a democracia americana.
Para garantir a longevidade da democracia, instituições de controle são essenciais. Órgãos do judiciário livres de influência política, partidos políticos livres e organizações de mídia estabelecidas são os melhores mecanismos para preservar a democracia. Mas a derrota de líderes autoritários em eleições recentes, como Donald Trump, não pode ser visto como uma vitória.
“A eleição de Trump, em 2016, refletiu uma insatisfação latente com muitas coisas, inclusive com a democracia e o sistema político. O desapontamento com a democracia ainda está vivo nos Estados Unidos e em muitos outros países com eleições livres”, afirma Anne Applebaum, historiadora, ex-editora da revista The Economist e colunista do Washington Post, e autora do livro ‘O Crepúsculo da Democracia’. “As ideias autoritárias se alimentam da insatisfação e a revolta das pessoas com as dramáticas mudanças sociais e demográficas das últimas décadas. Esse mal-estar não vai desaparecer.”
Entrevista
Steven Levitsky, professor de Ciência Política em Harvard e coautor de 'Como as Democracias Morrrem'
Em entrevista ao Estadão, o cientista político Steven LEvitsky explica como líderes autoritários podem solapar instituições democráticas, como é possível perceber esse processo e o que fazar para evitá-lo
Militares peruanos aposentados protestam em Lima pedindo por um golpe Sebastian Castaneda/REUTERS
Rodrigo Turrer
Às vezes eles fazem de maneira devagar e sutil, então muitos cidadãos sequer percebem o que está acontecendo. A primeira regra de qualquer autocrata ou pretendente de democrata é regular o Judiciário. Ele tenta desmerecer as regulações da Suprema Corte e em seguida controlá-la, usando maioria no Congresso para que a lei fique em suas mãos e ele possa usar isso como uma arma contra seus adversários ou um escudo contra possíveis acusações. Vimos isso na Turquia, na Rússia, na Hungria, na Venezuela. É assim que começa.
Outra maneira comum de começar esse processo é usar referendos para minar outras instituições democráticas. Então usa-se o referendo para alterar a Constituição, mudar o Congresso, estabelecer uma nova composição no Judiciário, minar a oposição. Uma vez que a Corte esteja na mão do autocrata, ele vai usá-la para punir e enfraquecer a oposição. Estamos vendo isso começar em El Salvador. Estamos vendo esse processo bem estabelecido na Nicarágua. E foram todos líderes eleitos, em democracias até então saudáveis.
Às vezes é bem óbvio. Alberto Fujimori fechou o Congresso. Hugo Chávez convocou um referendo para alterar a Constituição. Mas em outros lugares é preciso atentar para a maneira como o presidente trata as instituições democráticas que deveriam salvaguardar a democracia, sejam autoridades eleitas, sejam cortes, tribunais constitucionais, ou agências independentes que tem por obrigação fiscalizar e monitorar o funcionamento do governo.
Quando você percebe que um líder está começando a aparelhar essas agências, está desacreditando seu funcionamento, reduzindo sua independência, ou cortando o financiamento para ela, como está acontecendo em El Salvador neste momento, é um sinal. Às vezes é apenas populismo, uma maneira do líder acenar para as bases, mas em geral é um sinal preocupante do começo de um assalto à democracia. Então é preciso reforçar o funcionamento das instituições democráticas.
É mais difícil. Onde agências reguladoras e mecanismos fiscalizatórios têm independência, caso de Chile, Argentina, Uruguai, Brasil e México, é mais fácil deter os arroubos autoritários de um presidente. No Brasil, por exemplo, apesar do pendor autoritário de Bolsonaro, ele não tem sido capaz de controlar o Judiciário, que é muito independente. Em países em que isso não acontece, caso de El Salvador, é basicamente a comunidade internacional ou a própria política local. No Peru, por exemplo, a política é tão fragmentada que ninguém consegue ser forte o suficiente para impor sua vontade como acontece com Bukele em El Salvador ou Chávez na Venezuela.
Nos últimos 20 anos os líderes eleitos no Peru, por mais corruptos e mais ricos que fossem, eram tão fracos politicamente que nunca tiveram controle do Congresso, nunca foram populares o suficiente para convocar um referendo ou mudar a Constituição e impor sua vontade. Neste caso, foi a fragmentação política que preservou o jogo democrático. Mas a única maneira concreta de preservar e salvaguardar a democracia é que seus atores sejam fortes o suficiente e as instituições independentes para fiscalizar e monitorar o líder eleito.
Em todo o mundo, as democracias estabelecidas enfrentam um processo de ‘erosão’: estão muito menos estáveis e ainda menos democráticas do que décadas atrás. Nenhuma democracia é inquebrantável, e a maior ameaça à democracia é acreditar que ela é permanente e não precisa ser defendida.A democracia sempre é vulnerável à eleição de líderes autoritários. Seja ele Getúlio Vargas, Juan Perón, Hugo Chávez, Donald Trump, Jair Bolsonaro, ou Bukeke. Quando as pessoas estão insatisfeitas, ou com raiva do sistema, elas reagem e elegem líderes populistas que prometem mudar o sistema.
Então, a primeira regra para proteger a democracia é ter certeza que alguém assim não seja eleito. O partido político, que é uma instituição democrática, precisa impedir que em seus quadros haja alguém com inclinação autoritária e não seja dominado por um populista - o que, na minha opinião, foi o maior erro do Partido Republicano quando Trump participou das primárias. Em seguida, a elite econômica tem que barrar ou deixar de financiar partidos ou candidatos que tenham pendores autoritários, porque se aliar a candidatos que não apoiam a democracia é um erro. A segunda regra é garantir que as instituições democráticas sejam funcionais e preservadas desses que querem agarrar o poder. Mas não existe uma fórmula fechada ou perfeita para prevenir ataques autoritários, porque a democracia é sempre vulnerável.
É terrível. É o pior cenário para uma democracia. A história ainda vai avaliar os efeitos desse processo, mas o exemplo que Trump iniciou e que tem sido copiado por outros líderes derrotados é um comportamento muito perigoso. Primeiro, porque é um ataque direto à credibilidade do sistema eleitoral, e mina a legitimidade de todo o processo, que está no coração da democracia. As instituições eleitorais nos Estados Unidos funcionam. As instituições eleitorais no Peru funcionam. São confiáveis, independentes e têm reconhecimento internacional. Mas os candidatos perdedores saem alardeando que a eleição foi fraudada sem nenhuma evidência, particularmente por causa do papel das mídias sociais. Esses candidatos tem uma base de apoio forte, e estão jogando para sua base de apoio, que passa a ter sua própria interpretação dos fatos, sua ‘verdade pessoal’. Então, 30% a 40% de um país compra imediatamente essa versão de fraude sem nenhuma evidência, e passa a acreditar que o sistema foi fraudado, que foi roubado.
É aí que a legitimidade de todo o sistema eleitoral começa a ruir e a erosão democrática se consolida. Foi o que o Partido Republicano permitiu que Trump fizesse, que Keiko Fujimori fez. Esse é um passo gigante para erodir uma democracia: quando um candidato majoritário rasga as regras do jogo democrático e não aceita o resultado de uma eleição legítima. A democracia só funciona quando o perdedor aceita o resultado de uma eleição. Essa talvez seja a primeira regra do jogo democrático. E quando ela não é seguida, a democracia se torna muito mais vulnerável. É neste ponto que estamos nos Estados Unidos, é assim que a situação está no Peru, e infelizmente, outros países vão ver cenas parecidas em suas eleições.
É sempre possível, mas é difícil. A Rússia, por exemplo, nunca foi uma democracia de fato, ela sempre esteve dominada por líderes autoritários e Putin sempre exerceu controle sobre o processo eleitoral, sobre as instituições e sobre a oposição. Mas em países em que existe uma tradição democrática, caso do Chile, Argentina, Brasil, com histórico eleitoral e de respeito às regras democráticas, as instituições democráticas estão arraigadas e têm mais capacidade de se manter independentes. A sociedade civil teria mais dificuldade em aceitar o fim do jogo dmeocrático.
Mas existem democracias muito instáveis, caso do Equador e da Bolívia. Nesses países, líderes autoritários tentaram dominar todo o sistema eleitoral, como Rafael Corrêa e Evo Morales, mas não perduraram. A democracia foi brevemente sufocada sob seus mandatos, mas a sociedade civil e as instituições reagiram e conseguiram virar o jogo. Mesmo em democracias estabelecidas, como é o caso dos Estados Unidos, existe a chance de uma séria crise eleitoral, e eu acredito que teremos uma em 2024, com alegações de fraude e de roubo. Mas as chances de o processo retornar aos trilhos aumenta se você tiver partidos políticos fortes, uma oposição democrática, agências que fiscalizem o processo eleitoral, um Judiciário independente e uma sociedade civil engajada. Com isso é possível trazer a democracia de volta.
Expediente
Editor executivo multimídia Fabio Sales / Editora de infografia multimídia Regina Elisabeth Silva / Editores assistentes multimídia Adriano Araujo, Carlos Marin e William Mariotto / Editor de Internacional Cristiano Dias / Designer multimídia Vitor Fontes / Edição de texto Fernanda Simas e Rodrigo Turrer