Internacional

Martin Bernetti / AFP

Nas Américas, o embate entre democráticos e autoritários

A polarização entre os que acreditam na democracia e os que defendem regimes autocráticos se intensificou

Texto: Fernanda Simas

07 de janeiro de 2021 | 05h00




EUA: A mudança pós-Trump

Partidário do presidente Trump (esquerda) enfrenta manifestante do Black Lives Matter perto da Casa Branca
Partidário do presidente Trump (esquerda) enfrenta manifestante do Black Lives Matter perto da Casa BrancaOlivier Douliery / AFP

“De alguma forma, a eleição nos EUA é uma espécie de esperança. Trump perdeu e acho que deixará o poder. A democracia estará mais fraca, mas vai sobreviver”. A frase de Adam Przeworski, autor de Crises da democracia, sintetiza o que muitos analistas falavam desde a eleição de Donald Trump e o que ocorreu com as instituições democráticas no país.

O ano de 2020 foi um ano de tensões e divisões nos EUA, marcado por protestos contra a violência racial e policial, uma campanha eleitoral cheia de ofensas e a negação do presidente com relação à pandemia do novo coronavírus. A vitória de Joe Biden representa agora uma nova mudança de estilo na Casa Branca.

“Vencer, vencer, vencer”: esse era o lema do presidente republicano. E depois das eleições de novembro, Trump não reconheceu a derrota e insistiu nas acusações de fraude eleitoral. Em tuítes escritos com letras maiúsculas e pontos de exclamação, mas sem provas das acusações, o presidente republicano denunciou o que chamou de “eleição mais corrupta da história”.

Joe Biden e sua vice, Kamala Harris, comemoram eleição nos EUA
Joe Biden e sua vice, Kamala Harris, comemoram eleição nos EUAJim Watson / AFP

Mesmo com a insistência de Trump, as instituições democráticas americanas se mostraram fortalecidas. Os juízes responsáveis pelos casos rejeitaram a avalanche de recursos judiciais apresentados pela equipe jurídica do presidente contra os resultados eleitorais. “Agora sabemos que nada, nem sequer uma pandemia ou o abuso de poder, pode apagar a chama da democracia”, declarou Biden no começo de dezembro.

Para Przeworski, o sistema eleitoral contribui para os questionamentos daqueles que apoiam Trump.  “O sistema eleitoral favorece muito os Estados menos povoados. Mas além disso, e só percebi nesta eleição, os EUA são o único país de sistema presidencial com eleições indiretas, cujas regras para a eleição nacional mudam de um Estado para outro e o único (país) sem regras claras sobre como decidir o vencedor. Funcionava no passado, mas estamos descobrindo que não é uma coisa clara e por isso Trump continua dizendo que é o vencedor. Se você tem um jogo sem regras claras, ocorre um pênalti e você não sabe se valeu, como se decide? Não temos juízes”.

Na tarde do dia 6 de janeiro de 2021, as instituições democráticas americanas foram colocadas em novo teste após extremistas pró-Trump invadirem o Capitólio, onde ocorria uma sessão do Senado para confirmar a vitória de Biden como novo presidente do país, e tentarem um golpe. Os extremistas carregavam bandeiras pró-Trump e interromperam a sessão - retomada mais de seis horas depois.

Explosão causada por uma munição policial é vista enquanto extremistas pró-Donald Trump se reúnem em frente ao Capitólio dos EUA
Explosão causada por uma munição policial é vista enquanto extremistas pró-Donald Trump se reúnem em frente ao Capitólio dos EUALeah Millis/ Reuters

“Países tradicionalmente democráticos tendem a manter a democracia mesmo em épocas de conflito e tensões, independente de ser um governo de esquerda ou direita. Outros (países) tendem a virar para uma linha mais autoritária”, afirma o coordenador do curso de relações internacionais da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESP-SP), Moisés Marques.

Nos países da América Latina, essa fragilidade ficou bem evidente nestes últimos anos. A sucessão de impeachments no Peru, as mudanças de governo na Bolívia e na Argentina, a crise na Venezuela e a eleição de Jair Bolsonaro mostram que a crise da democracia chegou ao continente e é preciso entender o que está acontecendo.


América Latina: democráticos X autoritários

Após a eleição de Luiz Arce na Bolívia, candidato do partido MAS, de Evo Morales, surgiu a dúvida se a América do Sul viveria uma nova “onda rosa”, uma era que começou em meados dos anos 2000, quando líderes de esquerda – como Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil e Hugo Chávez na Venezuela – ganharam destaque na região como parte de uma reação aos anos de governança neoliberal. Mas as características dos governos atuais, mesmo os de esquerda, sugerem outro movimento.

Venezuelanos carregam mulher inconsciente e tentam cruzar para a Colômbia em meio à pandemia do novo coronavírusSchneyder Mendoza/AFP

“A América Latina vive movimentos pendulares, mas não sempre entre direita e esquerda. Estamos tendo uma renovação, uma transição no processo democrático que ainda não sabemos se para melhor ou pior, mas percebemos uma certa fadiga do modelo tradicional atual. Agora temos uma polarização entre políticos mais tradicionais X políticos menos tradicionais”, explica o professor Marques.

O próprio Arce, ao se apresentar como candidato à eleição na Bolívia, afirmou que não era Evo e fazia parte do MAS 2.0, uma renovação do partido. Marques lembra que na eleição chilena Sebastián Piñera quase foi derrotado por um candidato de fora do universo político tradicional. Na Argentina, o presidente Alberto Fernández foi eleito após quatro anos da presidência de Mauricio Macri, um empresário.

Luis Arce (ao centro) comemora ao lado do vice, David Choquehuanca (de bolsa), a vitória na Bolívia
Luis Arce (ao centro) comemora ao lado do vice, David Choquehuanca (de bolsa), a vitória na BolíviaJuan Karita/AP

O erro da oposição boliviana, segundo Carlos Mesa:

O ex-presidente boliviano e candidato derrotado em 2020 considera que a oposição avaliou mal a vontade popular de seguir o modelo de política da esquerda do país. A constatação foi feita em conversa com Fernando Henrique Cardoso durante um webinar em 02 de dezembro de 2020



O escritor Przeworski ressalta a facilidade de eleger outsiders. “Nos anos 1980, pessoas votavam, governos mudavam e as vidas das pessoas não mudavam, principalmente nas classes mais baixas. As pessoas começaram a se questionar se fazia diferença o governo que escolhessem. Então surgem aqueles que oferecem soluções mágicas, os famosos 'curandeiros'. Esse é o cenário de Trump, do 5 Estrelas na Itália. É isso. Isso justifica o colapso dos tradicionais partidos de centro esquerda e centro direita, eles abriram espaço para os 'outsiders'. Veja o PSDB, está colapsado.”

Outro fator que contribui para a crise democrática em países latino-americanos é a alta polarização. “Estamos vivendo uma nova era na América Latina. E um elemento presente é a polarização. No Brasil, PSDB e PT eram adversários, um ganhava e o outro respeitava. Mas nos últimos 3 ou 4 anos, a polarização acabou com isso. É um sinal da crise da democracia”, afirma Marques.

Estamos vivendo uma nova era na América Latina. E um elemento presente é a polarização

Moisés Marques, coordenador de relações internacionais na FESP-SP
Crianças procuram por sinal de internet no alto de uma montanha para participarem de aulas online na região dos Andes no Peru
Crianças procuram por sinal de internet no alto de uma montanha para participarem de aulas online na região dos Andes no PeruCarlos Mamani / AFP

Segundo o professor, o jogo político de reconhecer ganhos e derrotas está acabando na região, pelo menos momentaneamente. “Não é mais um divisor de águas um candidato se apresentar como alguém de passado democrático. Agora a disputa é entre quem joga o jogo democrático e quem não”.

“Há muitas pessoas que estão dispostas a tolerar a erosão das instituições democráticas se gostam das políticas, das ideologias ou da identidade do líder. Se o líder entrega o que as pessoas querem: trabalho, armas, ou o que quer que seja, então as pessoas fecham os olhos para o fato de o governo driblar as instituições democráticas”, diz Przeworski. “Mas quando um número razoável de pessoas decide 'bom, ele pode dizer o que eu quero, pode fazer coisas que concordo, mas está minando nossa capacidade futura de mudar governos e escolher governos que desejamos então vou me virar contra eles, porque são antidemocráticos', essa é a única esperança”.

A mudança política na América Latina, concordam os analistas, passa pela educação política, de conhecer o funcionamento do sistema e exercer a capacidade de escolha. Mas também depende de mobilização. “O problema na maioria dos países é que as oposições estão extremamente divididas. Parte do motivo de ser tão difícil remover alguns líderes é a oposição rachada, como na Venezuela, no Brasil”, afirma Przeworski.


A Venezuela: Maduro e a perpetuação no poder

Para Przeworski, a Venezuela é o oposto dos EUA em relação ao futuro democrático. “Quando eu estava escrevendo um trabalho sobre a situação democrática, olhei para o apoio de líderes populistas que estavam no poder e ou eles ganharam a eleição ou acharam alguma forma de permanecer no poder mesmo que tivessem perdido. Como Maduro. Quando ele perdeu a eleição, ele dissolveu o Legislativo e criou um novo. Quando perdeu de novo, fez um referendo e mudou as regras.”


Entrevista

Juan Guaidó
Engenheiro e político venezuelano

Opositor Juan Guaidó, que se auto declarou presidente interino da Venezuela, recebe ajuda para entrar na Assembleia Nacional em janeiroFederico Parra / AFP

Não há democracia na Venezuela atualmente

● Como o senhor vê a democracia na Venezuela hoje?

Não há democracia na Venezuela atualmente. O país está submetido a um regime que nega aos venezuelanos o direito de eleger livremente seus governantes. Há uma ditadura que persegue, prende, exila e mata por motivos políticos, como mostraram dois informes da Alta Comissária para os Direitos Humanos das Nações Unidas, Michelle Bachelet.

Não há direitos políticos e sociais que Nicolás Maduro e seus colaboradores não tenham violado de maneira sistemática e deliberada dentro da sua estratégia de se perpetuar no poder.

● Quais fatores levaram a isso?

A destruição da democracia venezuelana foi um longo processo. Não ocorreu da noite para o dia. O desprestígio dos partidos políticos, o fortalecimento da antipolítica, a polarização exacerbada foram fatores que facilitaram que o processo iniciado em 1998 terminasse em um regime autoritário, de origem democrática, mas autoritário. Com Maduro, a situação se tornou uma ditadura aberta. Em 2015, Maduro não aceitou que o povo, por meio do voto, o castigou pela falta de atenção e excesso de corrupção, optou por ignorar o resultado das urnas e bloqueou a Assembleia Nacional eleita democraticamente.

Em 2017, Maduro deu novo passo ao fazer ser eleita, de forma fraudulenta, uma Constituinte, na qual escolheu um terço de seus integrantes para bloquear definitivamente o Legislativo. Com isso, Maduro deu vários golpes de estado contra o que restava de democracia no país.

● Como o senhor vê a situação da democracia na América Latina?

Na região (AL) há uma luta pela melhora da democracia e de suas instituições, para combater as desigualdades, a corrupção, e melhorar as oportunidades do povo. Não tem sido fácil para nenhum de nossos países, mas acredito que tivemos avanços importantes que me deixam otimista. Também temos muitos desafios e obstáculos. Um que identifico claramente é o fato de termos políticos que fazem campanha eleitoral com o discurso da justiça social e, uma vez no poder, tentam manipular os sentimentos da população e das instituições para permanecer no poder. Isso é uma ameaça para a democracia que identifico na região por conta da minha experiência como venezuelano.


Religião e polarização

“O que me impressiona é que a religião permeia a política nos EUA e no Brasil atualmente. Os valores tradicionais da família foram ameaçados e alguns partidários de Bolsonaro, por exemplo, defendem a família tradicional. Se você olhar nas pesquisas dos EUA, uma das grandes diferenças na forma de votar está no fato de as pessoas serem casadas ou não. Acho que isso é o que está em jogo. As pessoas se sentem ameaçadas em seu 'jeito tradicional de levar a vida' e a religião é uma espécie de linguagem com a qual esses valores são transmitidos”. A fala do escritor americano Przeworski resume parte da discussão sobre o retorno do discurso religioso em países latino-americanos.

Cemitério Nossa Senhora Aparecida, em Manaus, em junho, tem valas abertas para as vítimas do novo coronavírus
Cemitério Nossa Senhora Aparecida, em Manaus, em junho, tem valas abertas para as vítimas do novo coronavírusMichael Dantas / AFP

No caso da Bolívia, isso ficou evidente após o golpe de 2019, quando a presidente interina Jeanine Áñez, da varanda do palácio presidencial, afirmou, segurando duas bíblias, que “Deus permitiu que a Bíblia volte a entrar no Palácio”.

“Essa é uma nova divisão. As diferenças religiosas sempre existiram, mas nunca foram colocadas à venda na política dessa forma”, diz Przeworski.

Para o ex-presidente boliviano Mesa, a questão religiosa “é menos dramática do que parecia”. Ele afirma que existiu um radicalismo religioso durante o governo de Áñez, “como resposta a uma visão considerada atéia e heterodoxa do mundo andino”, mas que não deve ser uma corrente que possa se instalar de maneira majoritária no país.




Cuba: um caso particular

Ao longo do governo Trump, a relação entre Cuba e os EUA voltou a ser tensa. Havia passado por um período de aberturas durante a gestão de Barack Obama e agora a ilha volta a enfrentar sanções americanas e corte de relações.

O regime Castro acabou com a saída de Raúl do poder, mas ainda não se vê muitas mudanças sob a presidência de Miguel Díaz-Canel. “Cuba está começando a entrar nas mãos de uma geração que não participou da revolução, mas será um processo lento porque os cubanos estão cansados do que vivem, mas não querem o que era antes, ser um prostíbulo dos EUA. A abertura econômica será lenta”, explica o professor Moisés Marques.

Crianças assistem aula em escola de Havana usando máscaras por conta da pandemia
Crianças assistem aula em escola de Havana usando máscaras por conta da pandemiaRamón Espinosa / AP

No dia 1.º de janeiro de 2021, mudanças no sistema econômico cubano entrarão em vigor: o salário mínimo passará de 400 para 2.100 pesos cubanos (de US$ 17 para US$ 87) e ocorrerá a unificação das duas moedas que existem atualmente na ilha. Com isso, desaparece o peso conversível (cuc) - atualmente o equivalente a US$ 1 - e prevalece o peso cubano (cup), até agora usado pelo Estado para pagar salários e cobrar serviços, fixado em 24 unidades por dólar.

“Cuba é um caso muito, muito particular. É uma relíquia do passado, que de alguma forma sobreviveu. Antigos países comunistas ou colapsaram ou passaram por reformas gerais, como a China e Vietnã de forma bem sucedida. Acho que Cuba não tem muita opção. Se eles se abrem, vão ter uma injeção massiva de capitalismo, desigualdade, racismo vindo dos EUA e dos cubanos emigrantes. Então, não acho que eles tenham muita opção”, opina Przeworski.


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