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‘Healthtechs’ ganham espaço e mostram que estão saudáveis

Ao ampliar acesso e melhorar a experiência dos pacientes por meio da tecnologia, startups do setor querem repetir o que as fintechs fizeram no mercado financeiro

Textos: Bruna Arimathea, Bruno Romani, Giovanna Wolf e Guilherme Guerra / Foto: Daniel Teixeira/Estadão

14 de julho de 2021 | 09h50



A pandemia impulsionou startups de todos os segmentos no Brasil – evidentemente aquelas que atuam na saúde, conhecidas como “healthtechs”, também ganharam musculatura. Com o uso esperto de tecnologia, inteligência artificial e dados, elas vêm encontrando soluções para resolver alguns dos principais gargalos do segmento do País, como acesso limitado, baixa eficiência e experiência de atendimento ruim. É um movimento que lembra o que as fintechs causaram no setor financeiro.

Era, porém, uma onda que estava destinada a acontecer. Startups costumam gostar de desafios que trazem oportunidades proporcionalmente grandes. É o caso da saúde no Brasil. O País está entre os 10 principais mercados de saúde no mundo – segundo o dado mais recente do IBGE, o gasto com saúde é equivalente a 9,2% do PIB. O desembolso das famílias com o segmento é equivalente a 5,4% do PIB.

Tanto a quantidade de healthtechs quanto o volume de investimentos cresceram em 2021. Segundo relatório da empresa de inovação Distrito, obtido com exclusividade pelo Estadão, já existem 900 healthtechs no País, que receberam no primeiro semestre US$ 183,9 milhões em investimentos. A marca é maior do que a soma dos cheques de 2019 (US$ 68,1 milhões) e 2020 (US$ 109,5 milhões). Muitos no mercado garantem que o Brasil terá um “unicórnio” (startup avaliada em mais de US$ 1 bilhão) da saúde nos próximos anos. A Distrito aponta três nomes em potencial: Alice, Dr. Consulta e Memed.

“Existe um ‘gap’ entre quem usa o SUS e quem usa o setor privado. As startups têm papel fundamental para mudar o mercado e oferecer uma nova via”, explica Raphael Augusto, sócio diretor de inteligência de mercado da aceleradora Liga Ventures. “O preço cai com o uso da tecnologia e do software. Isso seria impossível há alguns anos”, diz Igor Piquet, diretor de aceleração da Endeavor.

Com dinheiro na mesa e oportunidades no horizonte, porém, essas empresas ainda têm alguns desafios de curto prazo. “O poder de execução será fundamental para transformar a promessa em realidade. A taxa de mortalidade de startups ainda é alta”, diz Gustavo Araújo, presidente e fundador da Distrito.

Existe um ‘gap’ entre quem usa o SUS e quem usa o setor privado. As startups têm papel fundamental para mudar o mercado e oferecer uma nova via”

Raphael Augusto, sócio diretor de inteligência de mercado da aceleradora Liga Ventures

Outro fator citado por startups, investidores, gigantes do setor e especialistas é a regulação. Faz sentido: a saúde das pessoas não pode ser alvo de experimentos. Todos, porém, apontam que os órgãos responsáveis, como Agência Nacional de Saúde (ANS), Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), conselhos de medicina e Ministério da Saúde, terão papel em fomentar a inovação – muitos comparam com o papel que o Banco Central teve ao preparar o terreno das fintechs.

Com 14 segmentos diferentes, o setor de startups de saúde é gigante e complexo. A palavra “healthtech” é um guarda-chuva grande, que coloca junto nomes que oferecem software de gestão hospitalar, apps de bem-estar, pesquisas em biotecnologia e hardware de monitoramento. Neste especial, vamos mostrar casos promissores de uso de tecnologia em setores que impactam diretamente a vida das pessoas: atendimento e diagnóstico, planos de saúde e telemedicina. Falamos também do futuro do setor, que passa pela relação de grandes hospitais com startups e pelo surgimento de fundos de investimento dedicados ao setor.

Saúde!


Diagnóstico

Nichos estão na mira de atendimento e diagnóstico

Consultas e exames de diagnóstico são os principais meios pelos quais as pessoas têm contato com o setor de saúde – é o caminho pelo qual elas podem evitar problemas mais sérios. Mas ainda há baixa eficiência, o que torna tudo mais caro. Por meio de sistemas inteligentes, as startups estão tentando mudar isso.

Não é à toa que uma das principais healthtechs do Brasil tem um pé em atendimento e outro em diagnóstico. Fundado em 2011, o Dr. Consulta mordeu o maior cheque já recebido entre as startups de saúde do País – um aporte de R$ 300 milhões em 2017. A empresa oferece consultas médicas, exames e também serviços de saúde como fisioterapia, acupuntura e cirurgias simples.

Isso não significa que o seu passado recente tenha sido fácil. No início da pandemia, a empresa viu o número de atendimentos cair 65%. “Tivemos de arrumar a companhia. Uma das coisas que lançamos foi a telemedicina, que colocamos no ar em nove dias”, conta Renato Velloso, presidente executivo do Dr. Consulta, ao Estadão.

Dr. Consulta, de Renato Velloso, já superou os níveis de receita pré-pandemia
Dr. Consulta, de Renato Velloso, já superou os níveis de receita pré-pandemiaWerther Santana/Estadão

O número de clínicas da empresa diminuiu: eram 55 no pré-pandemia e agora viraram 35 – as unidades estão espalhadas por São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Velloso, porém, diz que o enxugamento da operação não foi apenas uma reação à crise: “Entendemos que a oferta não necessitava de tantas clínicas presenciais e o arranjo ideal era distribuir os serviços de forma inteligente. A pandemia nos pegou no meio desse processo.”

Entendemos que a oferta não necessitava de tantas clínicas presenciais e o arranjo ideal era distribuir os serviços de forma inteligente.”

Renato Velloso, presidente executivo do Dr. Consulta

Segundo Velloso, o Dr. Consulta já superou os níveis de receita pré-pandemia – de 2020 para este ano houve um crescimento de 32%. A empresa, que tem 800 funcionários, está com 40 vagas abertas e também procura outras 40 pessoas para a rede de médicos parceiros, que soma hoje 1,2 mil profissionais. “Temos muito ainda a calibrar na eficiência”, diz o presidente executivo da empresa. “Quando voltarmos a crescer em novas localidades, precisaremos de mais investimento. Não é o momento agora, mas, quando acontecer, será em um ritmo acelerado”.

Startup Theia, de Paula (E) e Flávia, foca na saúde feminina
Startup Theia, de Paula (E) e Flávia, foca na saúde femininaWerther Santana/Estadão

Nichos

O principal público do Dr. Consulta não tem plano de saúde: o preço de um atendimento de clínica geral varia hoje entre R$ 95 e R$ 110. Olhar para nichos específicos parece ser a estratégia de quem atua com atendimento. É algo comum entre startups: fortalecer-se em um segmento antes de avançar sobre o próximo.

A Clínica Sim tem serviço similar ao Dr. Consulta, mas seu foco sai do eixo Rio-São Paulo. Ela atua no Norte e Nordeste com consultórios e atendimento em telemedicina. O modelo – que inclui consultas avulsas e um cartão que dá direito a descontos e atendimento online – já olha para a expansão em outras cidades, num momento em que registra mais de 50 mil consultas presenciais por mês, afirma Ivan Cordeiro, diretor financeiro da startup.

Já a Theia mira um mercado grande e cheio de lacunas: saúde da mulher. A empresa, fundada por Paula Crespi e Flávia Deutsch, tem uma rede de 38 especialistas para atendimentos em pré-natal, parto e pós parto – além de ginecologistas, há profissionais como psicólogos, nutricionistas e pediatras. A Theia mantém uma operação presencial em São Paulo e atende remotamente em todo o Brasil. “É um serviço de saúde que coloca a mulher no centro. O atendimento na gestação é o começo de uma revolução que queremos fazer em toda a saúde da mulher”, conta Flávia.

Outra lógica

Outros nomes focados em diagnóstico querem ir além da clínica tradicional. A carioca Beep Saúde ganhou mercado com um serviço de aplicação de vacinas em domicílio. No ano passado, passou a realizar também coleta de exames laboratoriais. A empresa vem crescendo em ritmo acelerado: em abril, levantou um investimento de R$ 110 milhões e, desde então, sua equipe saltou de 500 para 800 funcionários.

Beep Saúde, de Vander Corteze (D), ficou conhecida como “Uber dos exames”
Beep Saúde, de Vander Corteze (D), ficou conhecida como “Uber dos exames”Wilton Junior/Estadão

A empresa está concentrada em expandir o alcance de sua operação, que hoje abrange os Estados de Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e também o Distrito Federal. “Estamos começando a olhar para novos negócios. Um deles é o serviço de troca de óculos: a Beep iria até a casa das pessoas para realizar os exames de prescrição e depois faria a conexão com um e-commerce”, revela Vander Corteze, presidente executivo da Beep Saúde.

a curitibana Hilab se propõe a fornecer aparelhos de análises clínicas – os hilabs – para estabelecimentos de saúde, o que pode aumentar o acesso a exames laboratoriais. Nos aparelhos, é possível fazer mais de 35 tipos de exames diferentes, incluindo para covid-19, a partir do sangue e de fluidos.

“Criamos um equipamento que utiliza internet das coisas e inteligência artificial para fazer exames de sangue. Eu diria que a nossa tecnologia está para o laboratório normal assim como a Nespresso está para o Starbucks”, explica Marcus Vinícius Figueiredo, fundador da Hilab. Hoje, a healthtech atende cerca de mil cidades no País e tem como objetivo expandir a operação no Brasil e na Europa, onde entrou recentemente no mercado de Portugal.



Confira empresas de atendimento e diagnóstico

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Planos de Saúde

No caminho das ‘fintechs’, planos querem ampliar acesso

O Sistema Único de Saúde (SUS) não consegue dar conta de todas as demandas dos pacientes, e o acesso do brasileiro a planos de saúde tradicionais é baixa: em março de 2021, apenas 22% da população tinha plano de saúde, segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Assim como as fintechs ganharam espaço dos “bancões” ao ampliar o acesso ao sistema financeiro e melhorar a experiência dos serviços, as healthtechs planejam uma trajetória semelhante oferecendo planos de saúde.

Uma dessas empresas é a Alice, que tem apenas um ano de operação e já soma US$ 47,8 milhões em investimentos. A healthtech se define como uma “gestora de saúde”: é dona de uma clínica e um time de saúde próprios – o plano também dá acesso a hospitais e laboratórios parceiros.

Sala de consulta da Alice; startup quer disputar espaço com planos de saúde
Sala de consulta da Alice; startup quer disputar espaço com planos de saúdeDaniel Teixeira/Estadão

Cerca de 70% do total de consultas e sessões de preparação física conduzidas pelo time de saúde da startup são remotos – já foram realizados aproximadamente 10 mil atendimentos a distância. A empresa tem como diferencial a organização dos dados dos pacientes para históricos em consultas e a criação de planos de ação para cada necessidade do paciente: se o usuário relata uma dor de cabeça, por exemplo, é criado um canal dentro do app para o time de saúde acompanhar o problema.

Com a parte da experiência bastante avançada, falta à startup melhorar o acesso: o plano de saúde para uma pessoa de 30 anos custa a partir de R$ 600 – mais caro do que a média de um plano de saúde tradicional em São Paulo para usuários da mesma idade, cujo preço mensal é de cerca de R$ 500. É uma aposta de longo prazo, diz André Florence, presidente executivo da Alice: “Nosso objetivo é provar que, com o nosso modelo, somos capazes de deixar as pessoas mais saudáveis – e assim controlar o custo. Controlando o custo, conseguimos reduzir o preço do sistema como um todo em um segundo momento.”

Quase dois terços dos nossos clientes não tinham plano de saúde”

Vitor Asseituno, fundador da Sami

Alguns nomes, porém, já têm atingido preços mais acessíveis. A Sami, por exemplo, oferece um plano de saúde voltado a pequenas e médias empresasque custa entre R$ 200 e R$ 400 por mês – hoje, são quase 2 mil empresas atendidas. “Quase dois terços dos nossos clientes não tinham plano de saúde”, afirma Vitor Asseituno, fundador da Sami. Além do acesso a hospitais e laboratórios, o plano inclui acompanhamento de médicos de família, serviço de telemedicina, sistema com análise de dados para direcionar melhor os atendimentos, acesso à plataforma de academias Gympass e também viagens gratuitas de Uber para o deslocamento até o médico.

A Clude segue um caminho parecido. A empresa tem planos individual e familiar por R$ 40 e R$ 50, respectivamente – para empresas, o valor é de R$ 35 por colaborador. A ideia é oferecer sobretudo um serviço de telemedicina. As consultas presenciais são cobradas à parte, a partir de R$ 35, e há também descontos em exames e cirurgias. “Estamos crescendo na ordem de mais ou menos 22% todo mês e temos visto uma procura muito grande principalmente pela área de saúde emocional”, comenta Márcio Mantovani, presidente executivo da Clude.

Outro nome do setor é a 3778, que não oferece planos diretamente. A healthtech trabalha com gestão de dados e inteligência artificial para ajudar operadoras a tomar decisões mais assertivas – no serviço, a startup utiliza as informações para direcionar os pacientes para o melhor local de atendimento ao seu problema médico, por exemplo, além de gerenciar afastamentos e outras demandas da empresa. Em fevereiro, a startup se uniu a investidores, em um acordo de R$ 200 milhões, para criar um grupo de saúde corporativa — estão entre os investidores Randal Zanetti (criador da Odontoprev), a gestora de investimentos UV e a LTS Investments, de Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Beto Sicupira.



Confira empresas de planos de saúde

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Telemedicina

Telemedicina é aposta para depois da pandemia

A telemedicina, modalidade de consulta mediada por um dispositivo eletrônico em chamada de áudio ou vídeo, ganhou impulso durante a pandemia. Ficaram evidentes os benefícios: ele evita deslocamentos de pessoas, oferece preços mais baixos e traz maior cardápio de especialistas. Agora, o desafio é manter o fôlego da expansão depois da pandemia – essa é uma das principais apostas para o setor.

A ViBe Saúde, que oferece consultas avulsas ou em modelo de assinatura para as classes C e D, quer saltar das atuais 65 mil consultas ao mês para até 1 milhão até o fim deste ano – antes da pandemia, esse número era de 100. “Vem caindo o desconhecimento que existia sobre plataformas de telemedicina, que eram poucas e focadas no mundo corporativo”, conta o presidente executivo e fundador da startup, Ian Bonde. “Nos próximos três anos, a penetração do setor de saúde digital na população deve chegar a 15%, saindo do atual 1%.”

Jamil Cade, da W3.Care, conta que adoção da telemedicina deve crescer
Jamil Cade, da W3.Care, conta que adoção da telemedicina deve crescerWerther Santana/Estadão

Já a W3.Care, que provê tecnologia para socorristas de ambulâncias fazerem atendimento de urgência enquanto estão a caminho do hospital, lançou em outubro passado uma nova plataforma para médicos realizarem consultas à distância, com agendamento e meio de pagamento próprios. A ideia é diversificar o serviço, que se tornou mais popular com a pandemia.

“Falta muito caminho a ser trilhado no segmento. Isso é bom: há inúmeras oportunidades de mercado e a adoção pelo usuário vem aumentando. No futuro, o médico vai ter um consultório próprio e também uma plataforma para os pacientes que querem ser atendidos à distância”, explica o CEO da W3.Care, Jamil Cade.

As healthtechs reconhecem que oferecer consultas por chamadas em vídeo é algo básico – e tentam ir além. Empresas como a ViBe Saúde, a W3.Care e o Portal Telemedicina falam no conceito de “saúde digital”, no qual o atendimento à distância é somente uma ferramenta. Sob essa definição, as principais máximas são reunir os dados dos pacientes em uma única plataforma e, tão importante quanto, oferecer em um só lugar diversas etapas de atendimento médico (exames, atendimento e monitoramento, por exemplo). Até aqui, esses serviços eram feitos por empresas diferentes, mas a tendência para o futuro é que tudo seja unificado.

No futuro, o médico vai ter um consultório próprio e também uma plataforma para os pacientes que querem ser atendidos à distância”

Jamil Cade, CEO da W3.Care

Para a Ana Saúde, especializada em oncologia, o segredo está nos profissionais envolvidos, e não na tecnologia. “Não é mais de telemedicina sobre o que devemos falar, e sim qual é a finalidade dela”, afirma o presidente executivo e fundador da startup, Renan Aleluia. A “Ana”, como é chamada a empresa, em homenagem à mãe do CEO, é novata: foi fundada em maio de 2021 e tem como meta fechar o ano com mil clientes assinantes do serviço (com preços de até R$ 390 por mês), o que permite acesso a não só atendimento com oncologistas da plataforma, mas também com nutricionistas, psicólogos, farmacêuticos, enfermeiros e preparadores físicos.

“Nosso maior diferencial não é o nosso aplicativo, e sim cuidar de pacientes com câncer de forma humanizada, mas usando a telemedicina.”



Confira empresas de telemedicina

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 Editor executivo multimídia Fabio Sales / Editora de infografia multimídia Regina Elisabeth Silva / Editores assistentes multimídia Adriano Araujo, Carlos Marin e William Mariotto / Reportagem  Bruna Arimathea, Bruno Romani, Giovanna Wolf e Guilherme Guerra / Edição  Bruno Romani /  Infografista Multimídia Edmilson da Silva /  Designer Multimídia Dennis Fidalgo

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