Confira a seguir os trechos da entrevista do Lobão ao Estado, em que ele fala “guerra cultural” empreendida pelo governo Bolsonaro, a nova secretária de Cultura, Regina Duarte, a Lei Rouanet e a Semana de 22.
Qual a sua opinião sobre as ações do governo Bolsonaro na área cultural?
São um verdadeiro desastre. Antes da posse, estive com o Osmar Terra (ex-ministro da Cidadania), que ficou com a área de Cultura, numa reunião. A primeira coisa que ele falou foi: “Olha, de cultura só entendo de berimbau, porque jogo capoeira e toco berimbau. Do resto, não entendo nada.” Já achei aquilo um péssimo sinal. Eu disse a ele que tinha uma agenda e jamais ocuparia qualquer cargo, mas tinha alguns nomes que poderia indicar. Falei que a gente tinha de fazer uma pacificação na área cultural e não entrar numa revanche contra quem se beneficiou da Lei Rouanet, sair por aí caçando as bruxas. Não porque a gente seja benevolente, mas porque acreditava que isso levaria a um ciclo interminável de ação e reação e o Bolsonaro, que já tem fama de autoritário, não poderia carregar nessa tinta. A gente tem de insuflar as pessoas a voltar a conviver. Numa biografia que eu li do (escritor Franz) Kafka, tinha uma passagem que tratava de um conflito entre os judeus e o pessoal de língua alemã na República Tcheca. No meio de uma briga danada, o primeiro-ministro da época disse, de forma muito pragmática: “Não estou pedindo que vocês se amem, apenas que vocês se aturem”. A cultura é o único lugar em que é possível aliviar essa polarização que a gente observa hoje no País.
Você fez alguma sugestão para o Osmar Terra? Fez alguma proposta para ele adotar no ministério?
O que eu falei foi: “Vamos valorizar o show business, reduzir os impostos, aumentar o empreendedorismo na área”. O Sesc, por exemplo, que tem preços baratíssimos, acabou com as casas de shows de pequeno e médio portes no País. Nas zonas em que o Sesc se instalou, havia três, quatro casas que foram fechando ao longo do tempo. Hoje em dia, você tem os grandes halls, para duas, três, dez mil pessoas, e microcasas. Além disso, dentro do Sesc tem uma “panelinha” braba. Se você não faz parte dela, não é chamado para dar show. Eu não toco há sete anos no Sesc. Como não tem concorrência, só os grandes artistas tocam lá. Então, eu falei para o Osmar Terra que a gente tinha de reverter esse tipo de assistencialismo praticado pelo Sesc e fomentar uma classe média musical. Eu não tinha só uma pequena expectativa do governo. Eu havia bolado todo um chassi que estava oferecendo para ele.
O que aconteceu? Ele seguiu as suas sugestões?
Quando eles assumiram o governo, aconteceu exatamente o contrário. Começaram a falar em guerra cultural, em acabar com os comunistas. Isso é muito nocivo, muito tóxico. Evangelizaram tudo. Colocaram um pastor na Ancine (Agência Nacional de Cinema). A número 2 da secretaria, exonerada agora pela (atriz) Regina Duarte (nova secretária de Cultura), é pastora também. O cara da Funarte (Fundação Nacional das Artes) falou que não vai subvencionar o rock porque é coisa de satanás. É um obscurantismo total. Quando eles não são pastores, são terraplanistas, olavistas. O Olavo disse que os Beatles eram analfabetos musicais e que quem escreveu as músicas deles foi o Theodor Adorno (filósofo, sociólogo e musicólogo alemão morto em 1969). Depois, eles começaram a censurar os velhos medalhões. Censuraram o Chico Buarque. Estão dando palco exatamente para artistas que estavam superdesgastados, erodidos pelos anos e anos de beneplácito chapa branca nos governos do PT. No final do livro, eu falo que tive de defender o Caetano (Veloso) daquela acusação execrável de pedofilia que ele sofreu dos bolsonaristas. É essa dicotomia na área de cultura cultivada por esse governo que é indesculpável.
O que você pensa sobre a ida da Regina Duarte para a Secretaria de Cultura? Você acredita que essa situação pode ser revertida de alguma forma?
Isso é péssimo. É um tremendo cinismo, porque a agenda cultural não vai mudar. Fica essa cortina de fumaça cor de rosa, porque ela muito fofa, muito terna, mas já está sendo atacada pelos bolsolavistas, porque demitiu uma pastora. Ela não vai ter a liberdade de fazer o que deseja. Mesmo que tenha, ela está no lugar errado na hora errada. Agora, está na hora de derrubar o governo democraticamente. Não dá para remendar um governo “irremendável”.
Quem é a favor de ‘Lula livre’, não tem a menor moral para falar do governo Bolsonaro”
Por que você diz que, na área cultural, o governo é “irremendável”?
O Roberto Alvim (ex-secretário de Cultura, exonerado depois de fazer um discurso em que usou as mesmas palavras de Joseph Goebbels, ministro da Propaganda de Hitler) não mostrou só o que ele é, mas o fulcro do governo. Na véspera daquele discurso, o Bolsonaro disse numa live, ladeado pelo próprio Alvim e pelo (Abraham) Weintraub (ministro da Educação): “Agora temos um secretário de cultura de verdade”. O Alvim estava à margem da sociedade e reclamava que estava sem emprego. Foi recolhido pelo (deputado federal) Eduardo Bolsonaro e em dois meses foi alçado a secretário de Cultura, sob o beneplácito do (escritor) Olavo de Carvalho. Então, você acha que, nesse contexto, a Regina Duarte vai conseguir alguma coisa? Ela vai ser aquela inocente útil, porque vai ser exposta e não vai conseguir o “armistício” entre artistas que ela pretende levar adiante. O leite já foi muito derramado e seria uma imoralidade qualquer tipo de aproximação com esse governo agora.
No começo de fevereiro, um grupo de intelectuais e artistas do Brasil e do exterior fez uma Carta Aberta, publicada no site do Guardian, na Inglaterra, com críticas ao governo e ao presidente Bolsonaro. Você concorda com as críticas que eles fizeram ou elas são diferentes das suas?
No geral, sim. Agora, eles são oportunistas. Os artistas aqui do Brasil estavam superdesgastados, porque cometeram atrocidades durante o governo do PT, locupletaram-se com milhões e milhões da Lei Rouanet e fizeram o que eu chamo de “Carandiru intelectual”. Trata-se de um coronelato cultural que já dura 50 anos e prosperou durante a ditadura militar. Aí, vem um cara que tem saudade do (general Augusto) Pinochet (ex-presidente do Chile), tem saudade do (coronel Carlos Alberto Brilhante) Ustra, quer calar todo mundo através de censura ou intimidar as pessoas por meio de linchamento virtual, é óbvio que eles enxergaram aí uma oportunidade. Mas quem é a favor de “Lula livre” não tem a menor moral para falar do governo Bolsonaro. O Lula errou, a Dilma errou, o PT foi um desastre. Mas, por uma questão de verniz, o que eles disseram no manifesto é o que está acontecendo com o governo em relação à Amazônia, ao clima, à censura, à teocratização da cultura, ao autoritarismo explícito. É o que eu falei para o Osmar Terra e o que falei durante muitos anos nos meus hangouts com o Olavo de Carvalho: não pode agir assim, porque dá combustível à esquerda. A esquerda está voltando à ribalta, fazendo shows contra a censura. Eles não teriam essa moral, mas qualquer pessoa tem o direito de reclamar de arbitrariedade.
Agora, se a gente abstrair a ligação de quem assinou o manifesto com o Lula e o PT, quem diria, Lobão, você ficou ombro a ombro com a esquerda nas críticas ao Bolsonaro.
Não estou ombro a ombro com ninguém. Eu sou um homem solitário. Prezo pela minha solidão. Agora, não vou me constranger de dizer “você está certo” para o meu pior inimigo. Eu não defendi o Chico da censura? Não fui defender o Caetano? Da mesma forma, posso defender o Bolsonaro ou o Olavo de Carvalho a qualquer momento. Isso não significa que estou do lado deles. Não tenho lado nenhum. Sou justo e livre.
Qual a sua opinião sobre o filme Democracia em Vertigem, da cineasta Petra Costa, que acabou não levando o Oscar?
Não assisti. Não assisto esse tipo de filme, não assisto jogo de futebol, não assisto o Oscar. Soube que o filme era assim e assado, mas não tive o menor interesse de assistir e não vou assistir. Se ganhasse o Oscar, não teria nenhuma repercussão para mim.
No filme, ela apoia a narrativa de que o impeachment da Dilma foi um golpe.
Aí, é desonestidade intelectual, canalhice pura e simples. Defender a ideia de que houve golpe atualmente é nada mais, nada menos que uma canalhice. Você não pode nem ter o direito de ser imbecil num momento desses.
No meio artístico e cultural, você é um dos poucos a criticar abertamente a Lei Rouanet. Qual a razão de suas críticas?
Acho imoral um artista consagrado conseguir patrocínio pela Lei Rouanet. Eu tenho um público, ando pelas minhas pernas, sou adulto, sou independente. Aí, saio das gravadoras para cair no colo do assistencialismo governamental e não consigo viver mais sem a Lei Rouanet? Que negócio é esse? Você tem nome, vende disco, tem um público e ainda tem a pachorra de viver às expensas da Lei Rouanet? Isso é o fim da picada. O Luan Santana viver da Lei Rouanet, a Maria Betânia viver da Lei Rouanet, isso é imoral. Eu já usei a Lei Rouanet muito incipientemente, quando fiz a (revista) Outra Coisa no início dos anos 2000, com CDs de artistas que estavam começando. Aí, sim. Eles precisam de apoio para conseguir seu espaço. Mas é muito difícil medir até que ponto um cara é popular ou impopular. Do jeito que está a coisa, não deveria ter Lei Rouanet nem nesses casos. Não deveria ter nem Ministério da Cultura nem Secretaria da Cultura. Deveria ter o show business funcionando, facilidade burocrática, de impostos, várias áreas entrando e bombando, para a gente ter um País em que a cultura funcionasse. Agora, não é imoral a Lei Rouanet existir para ajudar artistas que estão começando, museus, coretos, livrarias.
Em suas críticas à Lei Rouanet, você concentra boa parte de sua artilharia no Gilberto Gil, no Caetano Veloso e no Chico Buarque e diz que eles fazem parte do “coronelato” da MPB. Se não me engano, no caso dos baianos, foi você que criou aquele termo “máfia do dendê”, para se referir a eles.
Não, quem criou o termo “máfia do dendê” foi o (jornalista) Cláudio Tognolli. Não posso usurpar essa autoria. Agora, o que acontece é o seguinte: o Brasil é um país patrimonialista. Tem coronéis em todas as áreas. Então, na música, como não poderia deixar de ser, você também tem um grupo que canta e decanta. Essa sigla MPB foi fabricada, é ideológica, o filé mignon. No governo Lula, você tinha esses medalhões movimentando esse carrossel, com dinheiro do Ministério da Cultura, com os contatos que eles tinham lá fora e o prestígio que tinham aqui dentro, principalmente com as prefeituras: um com o ministério da Cultura, o Gil, o Caetano e a Paula Lavigne com o (grupo de artistas) Procure Saber e a mulher do Gil com os shows internacionais. Hoje, você só faz show internacional se passar pela Flora Gil. O Nando Reis queria fazer um show no exterior e teve de fazer uma turnê com o Gil e com a Gal para ganhar um passe para ir para fora. O Chico Buarque ganhou um prêmio antes mesmo de lançar seu livro. É um gênio da raça mesmo sem fazer nada. Outra coisa: quem demonstrar a menor insatisfação ou tiver uma pequena discordância em relação a esses caras é massacrado. Você não pode tocar neles. Então, é um coronelato, um Carandiru intelectual.
Mudando de assunto, em seu livro Manifesto do Nada na Terra do Nunca (Ed. Harper Collins Brasil, 2013), você aborda a Semana de 22 e faz uma crítica contundente ao movimento e aos efeitos que ele teve ao longo do tempo na cultura do País. O que você tem contra a Semana de 22?
Eu comecei a ouvir sobre a Semana de 22 nas aulas de português. Diziam sempre que era um movimento contra a rima, contra o parnasianismo, contra Olavo Bilac. Acho que todo mundo ouviu isso. Na verdade, acredito que, nesses últimos 100 anos, nós tivemos uma hegemonia da estrutura ideológica ultranacionalista da Semana de 22, com uma peculiaridade: a conservação dos nossos piores defeitos, através da apologia deles. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, é um exemplo emblemático, apesar de o (escritor) Mário (de Andrade) ter escrito aquilo em tom de crítica. Mas não pegou. Nós nos jactamos dos nossos piores defeitos. A Ópera do Malandro é outro exemplo. O malandro do Chico Buarque é o malandro do Zé Carioca, um malandro disneylândico. Pô, chega de malandragem! Aí o Caetano fala: “É a preguiça, a sonolência, a precariedade. a insuficiência, a trambicagem, a propina. Tudo é motivo de envaidecimento. Esse é o jeitinho brasileiro. Em outro lugar do mundo, qualquer pessoa teria uma crise de ressaca moral, de ir para o psiquiatra, por um milésimo desse pavilhão de merdas. Só que o brasileiro coloca isso numa vitrine e vende isso para o mundo. A Terra do Nunca é isso: você perpetua seus defeitos pela impossibilidade de entrar em crise. Sem autocrítica, você não vai crescer nunca. A empáfia desse ultranacionalismo altamente jéquico, provinciano, bifurca-se em duas vertentes, de esquerda e direita, com (os escritores) Oswald (de Andrade) de um lado e Plínio Salgado de outro. O Oswald preponderou dentro da agenda cultural, porque o Plínio era extremamente caricato, mas estão ambos vivíssimos ainda hoje.
Eu gostaria agora de falar um pouco sobre a questão das drogas. Você já falou aqui que experimentou de tudo.
Eu tive muita sorte porque tomei doses industriais de drogas, que me ajudaram muito, mas realmente nunca me viciei em nada. Estou há 30 anos sem tomar nenhuma substância estupefaciente. Parei de tomar drogas em 1991.
Houve algum fato que o levou a parar com as drogas, até para as pessoas que usam poderem saber como você conseguiu isso?
Eu sempre falo: “Não me tratem como exemplo”. Não sou exemplo para ninguém, porque sou uma pessoa muito diferenciada. Sou muito solitário e as minhas decisões são muito restritas a mim mesmo. Eu sou o xodó de psiquiatras. Sempre vou à Associação Brasileira de Psiquiatras, faço palestras motivacionais para todos eles, com o maior carinho. As pessoas ficam surpresas, falam “como você conseguiu?”. É simples: sou um cara muito resistente, meus avós eram muito parrudos, só tinha ogro na minha família. Eu tive uma nefrose mortífera quando tinha dois anos de idade. Fui o primeiro caso na América Latina a ser salvo. Então, tenho uma fisiologia que me favorece. Quando eu entrei na experimentação de drogas, entrei com tudo, como tudo que faço na vida, como se eu fosse ler um livro do Olavo de Carvalho. Sem medo de intoxicações. Evidentemente, as minhas experiências podem ter custado preços altos, mas eu sou feliz. Sinto-me um ser muito afortunado de ter tido a trajetória de vida que eu tive em todas as instâncias.
Agora, houve um fato específico que o levou a parar com as drogas?
Eu pensei assim: isso está muito divertido, mas eu preciso começar a escrever minha história. Toda a minha história dos anos 80 é um ensaio, uma coisa incipiente e muito circunstancial. Então, eu pensei: “eu preciso voltar para aquela minha velha e boa disciplina”. Eu vesti um personagem, cultivava a ideia de ser um (Charles) Bukovski (escritor americano nascido na Alemanha), um cara podre, do esgoto, essa coisa de enfiar o pé na jaca de todos os tipos, feitios e tamanhos possíveis Tomei drogas de 77 a 91. É um período extenso, pela intensidade com que me dediquei ao caso, mas chegou uma hora em que eu percebi que sou uma pessoa disciplinada. Minha avó era assim, meu avô era assim, meu pai é assim. Tenho que acordar às 4 da manhã, fazer minhas coisas. O chamado do aconchego e da rotina com (minha mulher) Regina também foi muito importante. Cheguei à conclusão de que nunca fiquei nem muito melhor nem muito pior em termos de criatividade com ou sem drogas. Falei para mim mesmo que estava na hora de ver o que eu posso fazer absolutamente careta.
Como foi o resultado?
Comecei a cometer meus melhores discos. Tinha mais tempo livre para me dedicar aos estudos, às leituras, aos instrumentos. Eu me dediquei 14 horas por dia a estudar violão clássico, tocava todas as peças de Bach, Paco de Lucia, músicas flamencas. Em vez de sair para ficar fazendo pagode e cheirando cocaína com o Beto Sem Braço, acordava de manhã e lia clássicos: Ilíada, Odisseia, A Divina Comédia, Dostoievski, Proust, Shakespeare. Eu já lia muito, mas passei a ler 300% a mais do que antes. Esse período de paralisação das atividades boêmias, vamos dizer assim, me levou a um mergulho muito profundo. Comecei a fazer meditação transcendental. Entrei num curso com uma sobrevivente de Aushwitz, a Charlotte, que era uma judia maravilhosa e principal devota do guru dos Beatles, o Maharashi Mahesh. Desde 1993, pratico medidatação transcendental, que eu considero uma espécie de halterofilismo mental. A meditação foi outra coisa muito importante também. Substitui a carapaça de uma personagem pela minha real essência.