‘Bolsonaro cometeu um estelionato eleitoral’

José Fucs

20 de fevereiro de 2020 | 11h00

Uma das figuras mais controvertidas e provocadoras da arena cultural do País, o músico Lobão ganhou os holofotes também fora dos palcos, com seu ativismo político. Depois de se afastar do PT anos atrás, lutar pelo impeachment de Dilma e apoiar Bolsonaro nas eleições, Lobão, de 62 anos, tornou-se um antibolsonarista radical e virou vidraça do escritor Olavo de Carvalho e de seus pupilos, conhecidos como olavetes, nas redes sociais.

Em seu novo livro, Lobão: 60 anos a mil, que deve ser lançado em meados de março e ao qual o Estado teve acesso em primeira mão, ele conta por que se afastou de Bolsonaro e solta o verbo contra o guru do presidente e de sua prole, em meio a histórias envolventes sobre o seu trabalho musical e a sua trajetória pessoal nos últimos dez anos.

Nesta entrevista, realizada em sua casa no bairro do Sumaré, em São Paulo, Lobão diz que Bolsonaro cometeu um “estelionato eleitoral”, ao trair promessas de campanha, como o combate à corrupção, e deve ser afastado do cargo, embora afirme não se arrepender de seu voto. “O PT precisava levar esse safanão”, diz. Segundo ele, Olavo de Carvalho, que inspirou sua música Valkiria Queen, lançada recentemente, “é o cérebro e a alma” do governo e o grande líder dos ataques promovidos pelas legiões bolsonaristas contra adversários e até aliados na internet.

Lobão fala, ainda, sobre a “guerra cultural” empreendida por Olavo e encampada por Bolsonaro, comenta a ida da atriz Regina Duarte para a Secretaria de Cultura, e critica a “máfia do dendê”, que reúne músicos baianos como Caetano Veloso e Gilberto Gil, e o patrocínio de artistas consagrados pela Lei Rouanet.

Nascido no Rio de Janeiro, onde passou a maior parte de sua vida, ele está de mudança para o interior paulista, depois de morar 11 anos em São Paulo. “Hoje, com a tecnologia, a gente não precisa mais viver nas grandes cidades”, afirma. “Quero levar uma vida mais tranquila.”


'eu me sinto compelido a falar sobre política como cidadão e como artista'

No começo do livro, você diz que acha política “um assunto chatérrimo” e reclama do “baixo nível” dos políticos no Brasil. Mas passa metade do livro falando de política. Boa parte de seus comentários nas redes sociais também é sobre política. Até que ponto esse negócio de não gostar de política é sério?

Eu sou um ser muito sensorial. Quando falo de culinária, levo em conta o lado sensorial. Quando falo de literatura, de cinema, a mesma coisa. Agora, quando entro na política, a sensação é de que estou numa sala de espera de almoxarifado com luzes fluorescentes ou numa delegacia de polícia, algo absolutamente sem graça. O fato de me deter tanto em política é porque, independentemente de ser chata ou não, é fundamental para os nossos desígnios. Nós somos animais políticos. A política que faz parte da nossa vida, do nosso dia a dia, é legítima e até suportável. Quando digo que ela é chata, estou me referindo à política institucional, no sentido de cargos públicos. Uso esses adjetivos mais ásperos também como uma espécie de antídoto para mim mesmo, para afastar qualquer tipo de hipótese de me tornar um político. Sou um músico, um artista. Como vou me tornar um burocrata, um servidor público, mesmo que de alta patente? Agora, eventualmente, eu me sinto compelido a falar sobre política como cidadão e como artista, por poder magnificar aquilo que penso. Mas, realmente, se pudesse falar sobre ornitologia, cavernas, física quântica ou poesia, seria muito melhor.

Nas eleições, você apoiou o presidente Jair Bolsonaro. Agora, você se afastou dele, tornou-se um antibolsonarista radical. O que houve?

Nós temos que estabelecer uma fronteira muito precisa aqui. Eu só comecei realmente a apoiar o Bolsonaro, com os pés e as mãos para trás, no último momento, na segunda semana de setembro, quando a eleição se tornou plebiscitária, quando ficou definido que só havia dois candidatos com chance de vitória. Tem gente que era animada em votar no Bolsonaro. Eu, não. Optei pelo Bolsonaro, porque achava uma imoralidade, uma obscenidade, o PT se eleger novamente sem nenhuma transição após o impeachment da Dilma. Em termos morais, para a história do povo brasileiro, isso seria muito mais maligno do que entrar numa aventura com o Bolsonaro. As pessoas falam: “Como você votou no Bolsonaro?”. Eu digo: “Mas votei no Lula também”. Apoiei o Bolsonaro da mesma maneira que apoiei o Lula, inclusive cometendo crime eleitoral, ao declarar o meu apoio no programa do Faustão. Parecia um tarado. Abri a camisa do Lula, cheio de voto. A emissora quase saiu do ar. Passei onze anos sem poder entrar na Globo. Quando estou num barco eu vou fundo, porque acho que sou obrigado moralmente a dar tudo de mim.

Por que esse desencanto com o Bolsonaro? Você se arrependeu de ter votado nele?

Não, não me arrependi, não. Não havia alternativa. Não poderia ficar mudo, porque fui um dos primeiros a ficar na oposição ao PT. Fui um dos primeiros a levar pedra do PT, em 2004, 2005. Então, depois de tanta luta, não podia lavar as mãos e deixar a coisa rolar solta. Agora, não houve desencanto com o Bolsonaro. Meu tempo de tolerância é que foi muito mais curto (do que com o PT), mesmo porque os descalabros agora aconteceram numa intensidade e rapidez fora do comum.

TV/Estadão

No livro, você chama o presidente Bolsonaro de “demente”, “delirante” e diz que ele “não tem capacidade de administrar o Brasil”. Por que essa ira contra o Bolsonaro?

Não é ira. Não tenho nem tempo nem espaço emocional para ter ira do Bolsonaro. É um diagnóstico. Sem nenhum tipo de destempero, posso dizer que ele não tem realmente condições de administrar o Brasil. Nem morais nem emocionais e nem intelectuais. Eu o conheço pessoalmente. Quando falo que ele tem desequilíbrio moral, é só ver as milícias, as rachadinhas, o nepotismo, o estelionato eleitoral em que o governo se transformou, a forma como ele engana as pessoas. Emocionalmente, você o vê dando uma banana, xingando todos os presidentes do mundo. A cada semana ele faz uma desfeita grave, típica. Intelectualmente, nem se fala. Um cara que não consegue ler três linhas de um livro já mostra que nunca teve apetite intelectual. Então, não se trata aqui de ira nenhuma. São fatos que ele nos mostra e que estou, friamente, localizando nas áreas emocional, moral e intelectual.

Você não acha os termos “demente” e “delirante” um exagero?

Não acho exagero, porque ele é um cara paranoico. Não vai até a piscina, tem medo de levar tiro, dorme com o revólver do lado da cama. Tudo para ele é teoria da conspiração, da terra plana ao John Lennon. São todos paranoicos: ele, o (escritor) Olavo de Carvalho (guru do presidente), o (Abraham) Weintraub (ministro da Educação). Todos têm o mesmo discurso, desconfiam de deus e o mundo. Para eles, todos são comunistas. Quem não é olavista é comunista. Então, acho o delírio uma coisa bastante evidente. Todas as bolas que ele dá são milimetricamente fora. Não batem nem na trave. Nem na testa ele consegue botar o sorvete, porque ele erra o alvo. Passa ao rés das têmporas.

Você diz que o Bolsonaro promoveu um “estelionato eleitoral”. Ele não está cumprindo as promessas de campanha?

Houve traições desabusadas das promessas feitas na campanha eleitoral. Todo mundo sabe. Ele prometeu não concorrer à reeleição, mas só fala nisso desde antes da posse. Ele esvaziou a luta contra a corrupção, retirou o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) do Ministério da Justiça. Transformou o Moro num eunuco da Justiça. Ficou amigo do (José Antônio Dias) Toffoli (presidente do Supremo) e com todas as falcatruas familiares sujou ainda mais as mãos. Disse que iria acabar com a corrupção, mas o que estamos vivendo hoje é uma lambança moral. Outra coisa são os efeitos colaterais. A agressividade e as condutas autoritárias estão à flor da pele. A milícia gerou uma metástase no Brasil, depois da entrada do Bolsonaro. O Partido Integralista ressuscitou, a homofobia cresceu a níveis assustadores. O feminicídio e as agressões à mulher, também. Há duas semanas houve queima de arquivo com a morte do capitão Adriano (Magalhães da Nóbrega, acusado de liderar as milícias no Rio). Eu já tinha pensado: “Se esse cara for pego, acaba com o governo”. Todos na família Bolsonaro seriam presos, até a mulher dele. Todos estão envolvidos. Todo mundo sabe disso.

Agora, em termos de promessas de campanha mesmo, o que mais o Bolsonaro teria descumprido além do combate à corrupção?

É tanta coisa que só com uma cola para a gente enumerar de maneira precisa todas as traições que o sujeito empreendeu nesses 13 meses de governo. Ele prometeu extinguir a EBC (Empresa Brasileira de Comunicação), que agora virou um antro de olavetes. A TV Brasil deixou de ser a TV do Lula para ser a TV do Bolsonaro. Na economia, ele também fez uma série de desvios do que prometeu. Só com o cartão corporativo já gastou mais de R$ 1 milhão. Os olavetes estão se estapeando por cargos governamentais. A máquina governamental está cheia de churrasqueiro, milicianos, delegados, caras da baixa caserna, tipo sargento, capitão, tenente. Isso sem falar nas deformidades esdrúxulas na educação e nas relações internacionais, no nepotismo escancarado e obsceno, na volta da censura, na perseguição cultural, no revanchismo, no assassinato de reputações. No campo dos costumes, o que dá o tom é um diapasão bizarro composto por terraplanismo cultural, anti-intelectualismo, anticiência, antiarte. O governo cultiva uma pseudorreligiosidade fundamentalista, com os piores elementos do que se pode chamar de segmento evangélico, que certamente será a fachada característica deste período lamentável e sombrio em que o Brasil se meteu.

Na sua visão, há alguma área no governo que se salva?

O ministro Tarcísio (Gomes de Freitas, da Infraestrutura) está fazendo uma excelente gestão. É a única área do governo que a gente pode dizer que realmente está fazendo um bom trabalho. Se tivesse que trocar de governo, o Tarcísio seria o único ministro que valeria a pena manter. A área econômica não sei se está tão boa assim, não. Há muito destempero, muito desequilíbrio, muita falta de entrosamento da própria equipe, na maneira de eles resolverem as coisas. Não é raro também o Paulo Guedes adotar a cartilha de costumes do Bolsonaro. Aí, ele perde totalmente a razão.

Leia em primeira mão um trecho do novo livro do Lobão em que ele fala
sobre a posse do presidente Jair Bolsonaro

A posse de um demente

O ano de 2019 foi inaugurado com a posse do Bolsonaro, com um Brasil marejado de esperança e júbilo cívico. Contudo, não houve muito tempo para prosseguir com as comemorações.

Logo na primeira semana de mandato, começou a delinear-se um macabro processo de linchamentos virtuais, desencadeando um clima de tensão, ameaça e descontrole, que seriam a marca registrada deste governo.

O primeiro personagem, o pole position a se destacar nessa balbúrdia tenebrosa, como não poderia deixar de ser, foi o anti-Olavo (de Carvalho), que, numa ação padrão “Olavo a Jato”, num gesto olímpico de precipitação mercurial (pelo menos era o que imaginávamos), pôs-se a vociferar contra a comitiva de deputados do partido do presidente (que, óbvio, necessitava desesperadamente de quórum para sustentar suas medidas), achincalhando-os em aparições nas redes sociais, a defenestrá-los sempre aos palavrões, invectivas humilhantes e uma monomania mórbida de aplicar apelidos derivados de deformações grosseiras dos nomes próprios de seus alvos. Pronto! Já tínhamos uma crise instaurada em tempo recorde. A Nova Era do linchamento virtual, dos seguidores anônimos da direita pronta para ameaçar, denegrir e difamar quem quer que se interpusesse nos desígnios da seita.

Com metade da base aliada desmoralizada na primeira semana de governo, aqueles outrora campeões de votos, aliados de primeira hora, estavam reduzidos a deslumbrados entreguistas, a marionetes do regime chinês, a vendilhões oportunistas que se dispuseram a abrir as pernas para o serviço de espionagem vermelho, jogados, dessa forma, ao exército de asseclas que, sem transição temporal, iniciou crudelíssimo linchamento submetido aos desavisados parlamentares, causando um profundo mal-estar na população, além de uma nuvem negra a pairar ameaçadora sobre o Planalto, numa amostra sinistra do que estava por vir.

Por mais que pudesse esperar dessa facção reacionária um comportamento vulgar e beligerante, jamais passou pela minha cabeça, nem pela de mais ninguém, acontecer de maneira tão rápida e tão magnificada aquela destrambelhada tomada de dianteira.
Não conseguia concatenar quais os benefícios ou interesses que teriam esses caras em empreender ação tão predatória, autodestrutiva e desestabilizadora como aquela. Mas, apesar desse intrigante enigma, uma coisa estava clara: havia método naquilo tudo. Como numa maratona ensandecida, o anti-Olavo pôs-se à frente desse exército de bolsolavetes e passou, em ação conjunta com o Carluxo Bolsonaro, a linchar o Gustavo Bebianno (presidente do partido do Bolsonaro, responsável pela candidatura dele), que foi ejaculado do cargo, carregando com ele a reputação do jornalista Felipe Moura Brasil, que, nada mais nada menos, foi o compilador do livro de maior vendagem do Olavo original, um dos maiores responsáveis pela divulgação e pelo agigantamento de seu nome.

Em menos de vinte minutos, Moura Brasil, de herói da direita e arauto de Olavo, despencou das nuvens para se tornar um joão-ninguém, um traidor, um isentão. Quem era Felipe Moura Brasil? O que ele tinha feito na vida? Nada! Um mero oportunista ladeado de outro jornalista histórico, Augusto Nunes, que concedera a Bolsonaro a primeira relevante entrevista de sua campanha.

Contudo, a partir do momento em que convidaram o Bebianno para dar um depoimento no programa Os Pingos nos is, passaram ambos a párias em questão de um átimo. Inacreditável constatar que a reputação e a glória de Augusto Nunes, com uma vida inteira dedicada ao jornalismo, estavam reduzidas a pó.

O clima nas redes era (e prossegue) desagradabilíssimo, com manifestações de descalabro, desprezo, desconfiança, paranoia e tremeliques, com aquele indelével toque de histeria, de psicopatia coletiva, num festim malcheiroso no qual a empatia era o defunto a ser violado naquele arraial de horrores… ufa. Parecia que estávamos reencenando a Revolução Francesa no período do Grande Terror, só que, no Arraial nos Cafundós da Terra Plana, a guilhotina é virtual. Cabeças virtuais rolavam aos borbotões entre uma postagem e outra, numa sanha sanguinolenta e boçal. Assim foi o Bebianno, o Felipe Moura Brasil, o Augusto Nunes e, em seguida, o anti-Olavo passaria a mirar nos militares que ocupavam cargos no governo! E foi aquela débâcle de confianças, amizades, alianças e estabilidade. Algo nunca visto em governo anterior algum. O torque do influxo de destruição, ou melhor, de autodestruição, era formidável.

E o presidente, o que tinha a dizer sobre o desmantelamento obliterante de sua base e de sua estrutura de governo, debaixo de seu nariz? Nada. Seus filhos faziam o trabalho sujo debaixo de suas barbas. Se consentia, um frouxo; se incentivava, um canalha. Em suma, um demente. Um frouxo acanalhado, recalcado por se saber um medíocre, de curta inteligência e de pavio curto. Pronto para se vingar do que considera superior a ele, ou seja, tudo e todos.

Com a prole incendiária e promíscua colocando gasolina na fogueira com tuíteres idiotas, ora despentelhando um militar, ora a grasnar contra a atuação da tal “extrema imprensa”, assistíamos pasmos, atônitos, paralisados de repulsa e horror, a uma exibição vulgar de autovitimização e de incitação ao ódio de fazer inveja a qualquer petista. Estávamos vivendo o paroxismo da hidrofobia, o apogeu da imbecilidade autodestrutiva, como um bando de piranhas famintas a se devorar numa bacia. Meu embaraço era absoluto.

Até aquele exato momento, sempre havia salvaguardado o Olavo (original) de qualquer reprimenda pública, aturando em silêncio todas as besteiras e as crueldades gratuitas (ou não) proferidas por seu suposto simbionte ao longo desses últimos três anos, quando testemunhei perplexo o afloramento e o recrudescimento de seus traços mais beligerantes reacionários, e descontrolados, com a súbita abdução pelo perverso Olavinho Noves Fora, O Anãozinho da Subtração afogando numa vasilha de vinagre o lado terno, cálido e bonachão de seu surrupiado hospedeiro. E, em detrimento a uma amizade de quase quatro anos, e ao carinho genuíno que nutria por ele, permaneci, ainda por um tempo, tumular. Mas aquela algazarra dantesca me impeliria a colocar a boca no trombone.

Você tem defendido até a remoção do Bolsonaro do cargo, ainda que por vias democráticas. Não é uma solução muito radical?

Eu defendo o afastamento não só pela incompetência, porque é um perigo ter ali uma pessoa do nível do Bolsonaro, que fala o que ele fala. Ele é uma pessoa absolutamente horrorosa, um desserviço e um insulto para a Nação, que não tem o mínimo de dignidade para ocupar o cargo que ocupa. Nem o Lula nem a Dilma foram presenças tão insultuosas para o Brasil. O PT criou uma época de animosidade no País. Todo mundo perdeu parentes, amigos, ninguém se falava. Ou você era PT ou era contra o PT. A única salvação para a lavoura era ter outro governo que fosse de aglutinação e de apaziguamento. Mas não. Nós temos um governo que começou furiosamente, detonando a própria base, os chamados “isentões”, que não eram considerados puros dentro da receita bolsonarista. Isso tudo é um coquetel molotov para uma distopia social muito grave.

Você acredita que há clima no País para mais um impeachment? Do ponto de vista legal, qual seria a justificativa para um impeachment?

Vamos falar claramente: a Dilma só foi impedida porque jogou o País na pior recessão da história. Com o (ex-presidente Fernando) Collor, aconteceu algo parecido. O Bolsonaro ainda está no vácuo da simpatia econômica do (ex-presidente) Michel Temer, que deu uma ajeitadinha na economia. O acordo do Mercosul com a União Europeia quem alinhavou foi o Temer. Mas o Bolsonaro xingou todo mundo e agora a gente provavelmente não vai conseguir nada. A mudança da embaixada em Israel de Tel Aviv para Jerusalém vai criar animosidades com todo o Oriente Médio, com o Irã, os Emirados Árabes e a Arábia Saudita, que compram frango, milho, trigo, do Brasil. Tem essa antipatia que a União Europeia nutre pelo Bolsonaro. O pessoal da Argentina, também.

Você diz que, quando a economia vai muito mal, o cerco se fecha sobre o presidente. Mas a economia não está melhorando no governo Bolsonaro?

Não vejo porque essa euforia toda, tipo “ah, até que enfim agora vai dar certo”. Pela primeira vez na história, o investimento interno suplantou o externo. Está havendo uma evasão de investimento estrangeiro. O dólar está batendo recorde. Ainda por cima, tem a falta de habilidade do próprio Paulo Guedes, que é um cara de pavio curto. A reforma da Previdência só foi aprovada porque o Congresso deu uma maquiada, fez praticamente outra reforma. Tem pessoas já aventando possibilidades de pedaladas fiscais. Então, com suas ações diplomáticas e suas medidas econômicas capengas, o governo Bolsonaro é um desastre. Temos quebra de decoro do cargo a três por quatro. Falta apenas vontade política. É só ficar esperando a próxima cagada do presidente, enumerar tudo, colocar num dossiê e botá-lo no pau.

Logo depois das eleições, você participou de uma encenação do enterro do PT com o apresentador Danilo Gentili, que também apoiou o Bolsonaro nas eleições e depois se afastou dele. Você não se sente um pouco responsável pela eleição do Bolsonaro?

Claro. Ainda bem. Poxa, imagina só eu fazer aquele esforço todo e ser totalmente debalde. Fiz questão de votar. Queria tirar os votos do PT – e eu ganhei essa. Por isso aquele velório era totalmente pertinente. A vitória foi ter tirado o pão da boca do PT. Ponto. O PT estava todo disseminado no poder. Tinha que levar esse safanão. A gente tinha que destruir aquela estrutura, colocar outra, mesmo que muito deformada e xexelenta, no lugar. Se o PT entrasse com o (Fernando) Haddad, eles iriam sedimentar todo aquele plano bolivarianista. Sabe-se lá qual iria ser a parada com o Maduro, porque eles são unha e carne. Com o povo levando no lombo desde 2003, se o Haddad fosse eleito seria algo mais imoral do que a obscenidade do Bolsonaro. Nós demos um pequeno prazo de tolerância, para ver se o Bolsonaro pegava no tranco, mas não pegou. Ou melhor, pegou no tranco de marcha à ré, a 180 km/h na curva. Então vai levar trolha, vai mesmo.

Como você vê a libertação do Lula e a sua volta ao cenário político?

Pífia. Não aconteceu nada. Foi um anticlímax. Não houve nenhuma guerra civil, nenhuma luta, nenhuma efusividade maior. Ele está no oblívio total. Agora o PT está muito preocupado, querendo fazer autocrítica, porque não tem ninguém para colocar no lugar do Lula. Nesses anos todos não houve a eclosão de nenhum estadista, um nome que pudesse substitui-lo. Ele está muito desgastado também, porque por mais que o brasileiro seja otário não chega ao ponto de voltar a engolir o Lula. Acho que o Lula, por mais que esteja aí, é um peso morto. Acredito, se deus quiser, que a gente irá para um outro tipo de mal. Que seja um mal, mas outro tipo de mal.

TV/Estadão

Em sua atuação política você já deu vários cavalos de pau, que é uma expressão que você mesmo usa para falar de suas mudanças. Você já foi petista...

Eu nunca fui petista, como nunca fui Bolsonaro. Detesto o PT. Em 1989, passei um ano fora. Quando voltei, optei pelo Roberto Freire (então candidato à presidência pelo antigo PCB), porque achava que era aquele psicanalista reicheano. Aí encontrei com o Freire, vi que era outro Roberto Freire, mas eu o adorei, fiquei com ele. Como achava que o comunismo estava acabando, virei assessor especial dele, para a gente viajar pelo Brasil inteiro. O PT era a MPB, aquela coisa de “Lula, lá”. Achava aquilo uma babaquice. Mas, na época, entre o Collor e o Lula, votei no Lula no segundo turno. Agora, entre o Haddad e o Bolsonaro, votei no Bolsonaro. Infelizmente, o cardápio que nós temos é da pior espécie. Mas não posso me considerar um petista, muito menos um bolsonarista. Fui uma pessoa que apoiou o PT e o Bolsonaro, em determinados momentos.

Você chegou a tirar uma foto com a camiseta do MST que ficou famosa. O que foi aquilo?

Eu já experimentei as drogas mais pesadas. Já cheirei heroína, cocaína, tomei ácido. Você acha que eu vou visitar um acampamento do MST, conhecer as pessoas, fazer um churrasco, e não vou vestir a camiseta do MST? É claro que vou. Eu experimentei todas as possibilidades políticas no Brasil. Entrei no Estado Maior das Forças Armadas de bermuda e de sandália havaiana. Passei em revista às tropas com uma camiseta com os dizeres “peidei, mas não fui eu” e aquele monte de militar bateu continência para mim. Acho que sou isso, sabe? Sou uma pessoa que não tem prurido nenhum em experimentar as coisas. Você vê também pela minha música. Faço choro, música clássica espanhola, toco harpa paraguaia, rock pesado, faço música eletrônica, toco viola caipira, componho em violão de sete cordas. Agora, não tenho time nenhum. Não tenho time nem de futebol. Eu não sou agremiável. Eu vou, frequento, dou apoio, tiro foto, bato continência, faço o que quiser. Mas isso não significa, de forma nenhuma, que esteja agremiado àquele grupo, àquela entidade ou àquele partido.

Outro dia o jornalista José Roberto Guzzo, colunista do “Estado” escreveu que o Bolsonaro provavelmente não é o presidente que o Brasil precisa, mas é o que a esquerda brasileira merece. Você concorda com ele?

Acho isso uma desinteligência. Isso é tudo o que a esquerda queria. Tudo que o Chico Buarque queria era ser censurado. Há dois ou três meses, o Itamaraty proibiu a exibição de um filme sobre a vida e a obra do Chico Buarque num festival de cinema no Uruguai. Isso é maravilhoso para eles, uma dádiva. O próprio Chico falou: “Ser censurado pelo governo é muito melhor do que ganhar o prêmio”. Eles não se lembram, mas essas pessoas se tornaram o que são muito em função da vitimização da censura, tiveram que sair do Brasil. Eles se valeram muito disso, com toda a razão. É como chamar o rock de coisa de satã. Então, essa história de que a esquerda merece é muito obtusa. É óbvio que você vai dar asa para cobra. Você vai criar Petras (referência a Petra Costa, diretora do filme Democracia em Vertigem), pessoas cheias de razão. Pela primeira vez em 50 anos, a esquerda estava erodida, desgastada, ridicularizada. Pela primeira vez na vida o Chico, o Caetano, o Gil deixaram de ser uma unanimidade nacional, tornaram-se alvos de apupos por aí. O grande pecado da doutrina do Bolsonaro é querer fazer guerra cultural e pagar esse mico. Isso automaticamente vai nutrir toda a esquerda. Esse era o meu maior medo. A esquerda não merecia tanta moleza quanto um governo tão pífio, tão óbvio e tão obtuso.

O que você pensa da polarização que a gente vive hoje no País?

Isso é o que há de pior que a gente pode ter para a Nação. Espero que uma parte da população comece a se educar mais e a ter mais coragem, para começar a formar um caldo de tolerância e não ficar refém desses dois extremos. Não gosto, por exemplo, de ver essa gente mais moderada usando o palavriado desse pessoal. As pessoas que estão usando as mesmas terminologias que eles usam, chamando o (blogueiro) Allan dos Santos (do site bolsonarista Terça Livre) de “Alan dos Panos”, “gengivudo”. A gente não pode atacá-los com as mesmas armas. O erro deles não justifica os nossos. A única forma de parar esse looping é ter uma coisa meio zen de falar “não, não vou entrar nessa pilha de insultos, de palavras de baixo calão”. Não estou dizendo para a gente ficar parado, inerte. Mas para utilizar as nossas armas com mais precisão e com o mínimo de elegância e de educação, para poder corrigir essa rota de destempero generalizado que está ocorrendo no Brasil. Não pode ser uma coisa assim, de a gente viver nesses dois terrenos de extremismo despirocrático.

Há algum grupo ou partido hoje no País que possa representar uma alternativa viável de poder entre o PT e o Bolsonaro?

Tem o (apresentador) Luciano Huck e o (governador de São Paulo João) Doria, mas acho isso tudo uma piada. O próprio Moro falou que não tem talho. Também não é uma figura em quem eu teria confiança. A verdade é a seguinte: eu sou do rock. Então, pensei o seguinte: agora eu só vou ser oposição. Não vou mais apoiar nada, mesmo que eu torça para a pessoa ganhar, porque tem de ter uma oposição honesta. Aliás, não precisa nem ser oposição para falar mal do governo, embora muitos bolsonaristas pensem o contrário.

Você afirma que sempre teve uma posição crítica em relação ao intervencionismo militar, ao autoritarismo. Mas, quando participou das manifestações pelo impeachment, teve uma aproximação maior com o Revoltados Online, que defendia a intervenção militar. Se não me engano, quando você tocou o hino nacional numa manifestação pelo impeachment, estava no caminhão do Revoltados Online. Como é que é isso?

Isso não é verdade. Nunca subi no carro do Revoltados Online. Quando toquei o hino nacional estava no carro do MBL. Eu fazia hangouts (plataforma do Google para chats de vídeo, voz e mensagens) e dizia: “Cuidado com isso, não entra nessa”. O que aconteceu com o Marcelo Reis (líder do Revoltados Online) é que eu o encontrei na chapelaria da Câmara, quando a gente foi impedido de entrar no Congresso pelo (senador) Renan (Calheiros, ex-presidente do Congresso), no final de 2014. O Marcelo Reis e a Bia Kicis (hoje deputada federal), que conheci também nesse dia, também estavam lá. Aí uma comissão de deputados, o Bolsonaro, o (Antônio) Imbassahy, o (Ronaldo) Caiado, o ACM Júnior, veio nos encontrar. No meio da confusão, todo mundo queria falar com a gente. Fui dar uma entrevista e o Marcelo Reis estava ao meu lado. Essa foi a proximidade que tive com ele, uma pessoa completamente diferente da minha laia. Ele até me procurou várias vezes por telefone, me chamando para sair, mas jamais dei trela a ele, porque tem esse perfil. Sempre fui muito radical em relação a isso. Não suporto essa coisa de intervenção militar.

Você diz que as manifestações de 2013 serviram para acordar o “segmento adormecido dos autoritários, reacionários e intervencionistas insatisfeitos com o lulopetismo”. Ao apoiar o Bolsonaro você não acabou se unindo a eles?

É só você olhar no Twitter, olhar a minha história, para ver que eu sempre entrei em luta com esse pessoal. Na primeira passeata pelo impeachment, quando me flagraram ao lado de um intervencionista militar, fiz um hangout com todos os movimentos, o Vem para Rua, o MBL, e disse “nós não podemos nos juntar a esses caras”. Nunca permiti intervencionista militar na minha vida. Graças a deus que isso está territorializado ao longo de todos os hangouts que eu fiz com o Olavo, de todos os meus escritos e das minhas manifestações. São essas coisas extremas que acabam estimulando o outro lado a se manifestar. Quando viram aqueles black blocs depredando tudo, aquela coisa na Venezuela, o Maduro, Cuba, aquilo tudo acordou aqueles que estavam no armário com naftalina. O pessoal pegou a bota, saiu todo mundo de penacho. Essa rapaziada cafonérrima e aquela coisa do politicamente incorreto virou um passaporte para começar a praticar racismo, homofobia. O Bolsonaro é o gatilho disso. O Bolsonaro e o Olavo. Eles motivam essa tribo de recalcados, de pessoas que são endemicamente grotescas e que não são em número pequeno.

TV/Estadão

Qual é a sua opinião sobre o Olavo? Como você vê o papel que ele desempenha no governo?

Acho que ele é o cérebro e a alma do governo. Temos um estruturador desse regime todo que está fora do Brasil, o Olavo. Ele está vinculado ao clã Bolsonaro de uma maneira muito mais atávica, visceral, do que eu imaginava. Pensei que fosse uma coisa mais fortuita. Mas não é. O Olavo fica detonando todo mundo e os olavetes ficam promovendo esse espetáculo horroroso de linchamentos virtuais dos mais tóxicos possíveis. Se você pegar os meus vídeos com o Olavo, em 2014, 2015, vai ver que eu já falava que a gente tem que tirar o hype da esquerda, mas para fazer isso tinha de ser gente fina, bacana, não podia usar os mesmos métodos. Naquela época, o Olavo era muito receptivo em relação ao que eu falava, mas depois, quando a gente parou de fazer os hangouts, ele mudou completamente. Virou uma caricatura.

Como se dá essa influência do Olavo no governo?

Se você pegar a atmosfera do governo, o terraplanismo, a coisa evangélica, o anti-intelectualismo, a perseguição paranoica aos comunistas e à esquerda, é tudo Olavo, a cartilha toda do Olavo. O Bolsonaro é uma marionete histérica que está ali. Quem realmente dita a agenda de costumes do governo, a maneira de pensar, de encarar os adversários, é o Olavo. Para o governo, não há adversários, mas inimigos. Tudo isso deriva do Olavo de Carvalho. Você tem também o Filipe Martins (assessor internacional de Bolsonaro), que é o olavete mais antigo e está dentro do Palácio do Planalto. Está com 30 anos, é um cara jovem, e desde os 17 está com o Olavo. É um perigoso psicopata, a consciência, o grilo falante do Bolsonaro. Depois, há todas as pessoas que estão na Secom (Secretaria de Comunicação da Presidência), na Secretaria de Cultura, nas fundações. São todos terraplanistas, todos olavetes. Ele está botando todos os alunos que considera de confiança dentro do governo. Os filhos do Bolsonaro são tietes dele e são três boçais. Se der um empurrão, eles caem de quatro e não conseguem virar bípedes nunca mais.

No livro, você diz que esse quadro tende a se agravar.

Claro que tende a se agravar. A (jornalista) Thaís Oyama revela isso em seu livro (Tormenta - O governo Bolsonaro: Crises, Intrigas e segredos). Há método no que eles fazem. Quando falam as maiores besteiras é a hora em que ganham mais seguidores. Quando o Bolsonaro falou mal das queimadas na Amazônia e disse que não tinha aquecimento global, ganhou 50 mil seguidores num dia. Quando falou que a mulher do (Emmanuel) Macron (presidente da França) era feia, ganhou 60 mil. Ele ganhou milhões de seguidores no primeiro ano de governo. Quando todas as pessoas civilizadas ficam horrorizadas com o que o Bolsonaro fala, é quando ele cresce nas redes. O Olavo sempre falou que o Brasil é 75% conservador. Então, eles fizeram uma agenda, sob os auspícios do próprio Olavo, soi-disant conservadora, mas reacionária. Essa história de agenda conservadora é aquela coisa do (antigo programa) Povo na TV, de que bandido bom é bandido morto. Isso tem um respaldo popular enorme. O que acontece hoje no Brasil parece uma coisa que não é grave, mas dentro do cenário internacional já viramos um pária. O Brasil nunca foi tão falado, mas mal falado. O Bolsonaro fala até do (ator) Leonardo DiCaprio.

Como você vê os ataques virtuais dos bolsonaristas nas redes sociais contra aliados que fazem qualquer crítica ao governo ou ao presidente?

Ela é nociva e deletéria para eles próprios. Eles são autodestrutivos demais. Anseiam pelo purismo. Se você diverge um grau daquele vetor, você é isentão, comunista, não é direita, é esquerda. Com essa coisa de procurar uma pureza, eles se circunscrevem, cada vez mais, a um número cada vez menor de pessoas que ficam aturando aquilo. Desde a primeira semana do governo, quando o Olavo começou criticar a ida de um grupo de parlamentares do PSL para a China, eu comecei a pontuar: “Gente, isso não pode acontecer”. Depois, vieram os linchamentos virtuais do (Gustavo) Bebianno (ex-Secretário-Geral da Presidência da República), do (vice-presidente Hamilton) Mourão, do (general Augusto) Heleno (ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional), do (general Eduardo) Villas Bôas (ex-comandante do Exército), do (general Carlos Alberto dos ) Santos Cruz (ex-ministro-chefe da Secretaria de Governo), da (deputada estadual) Janaína Paschoal. Quando os linchamentos chegaram ao (jornalista) Felipe Moura Brasil (então diretor de Jornalismo da rádio Jovem Pan), que foi o maior arauto do Olavo, fiquei horrorizado. Fiquei com tanta raiva que até saí do Twitter. Depois, entrei no YouTube e desde então passei a criticar o governo, mas ainda sem uma ruptura total. Ainda demorou mais um mês para isso acontecer.

Quando você rompeu de vez com Bolsonaro e com o governo? Qual foi a gota d’água?

Foi no dia 13 de maio do ano passado, logo após o linchamento do general Villas Bôas pelo Olavo, daquela história de dizer que ele era “um doente preso a uma cadeira de rodas”. Depois, ele foi tentar desmentir isso, chamou todo mundo de canalha, foi no jornal do Boris Casoy, na Rede TV, disse que não era nada daquilo. Mas eu já vinha com ressalvas em relação ao Olavo e a esses bolsonaristas-raiz, desde antes da posse. Eu falava nos meus YouTubes: “O que é isso, Olavo, querido, vai falar com o presidente, fala com ele por telefone. Não queima a base do governo em público, autoridades”. Ingenuidade minha. Ele queria exatamente isso. Estava visando a Secom (Secretaria de Comunicação da Presidência), a EBC e o Ministério da Educação, para poder publicar os livros dele como livros didáticos. Os livros didáticos representam 70% da indústria editorial brasileira. São uma mina de ouro.

Na sua visão, qual a relação do presidente e de seus filhos nesses ataques virtuais?

Eles estão dentro dessa onda o tempo todo. São todos uma rede. Inclusive tem o tal “gabinete do ódio” dentro do Palácio do Planalto. É uma coisa obscena, promíscua, incestuosa, imoral. É indesculpável. Isso é o bastante para ter impeachment. É um absurdo a gente pagar para ser linchado, ter três caras recebendo dinheiro público para poder ficar linchando e intimidando as pessoas que não se coadunam com o governo. Isso tudo é muito tóxico para a Nação. A gente vê todo dia eles publicando posts, o Carlos, o Eduardo, o próprio Bolsonaro. O Flávio é o que menos aparece. Quando ainda estava de bem com o governo, eu falei: “Puxa, presidente, acho que a ordem natural das coisas é o senhor dar entrevistas semanais, tipo coletiva, para toda a imprensa, para dar uma explicação para a opinião pública, e se evadir das redes ou usá-las para publicar notas oficiais discretas, suscintas e formais, no Twitter, no Facebook, e pedir para os seus filhos também escreverem coisas circunscritas aos cargos que ocupam -- deputado federal, vereador, senador”. Quando você ocupa um cargo público, você representa uma instituição até deixar de ocupá-lo. Eles não notaram isso e continuam com essa presepada.

Quando você começou a criticar o Olavo, acabou também se tornando alvo dos linchamentos dos bolsonaristas nas redes. Foi chamado de “vendido”, “traíra”, “comunista”, “isentão”. Como isso “pegou” para você?

Eu não fui alvo de linchamentos. Assim como levei lata no Rock in Rio, eu mesmo produzi aquilo. Sou uma pessoa que produzo o meu próprio cavalo de pau. Fui o agente provocador daquilo. Quando fiz isso, eu calculei, falei para a minha mulher: “Vou fazer isso agora”. Eu estava como um fenômeno no YouTube, crescendo rapidamente. Numa semana só ganhei 100 mil seguidores. Eu sou músico. Mas o cara ia lá e falava: “Olha, o Bolsonaro isso, o Bolsonaro aquilo”. Eu dizia: “Você conhece a minha música? Não? Então vai embora, não quero saber de você aqui.” Sou muito seletivo. Deixei de ser vendedor de disco de tocar em rádio, porque eu não queria aquele público. Dei um cavalo de pau naquele público. Virei independente porque não queria mais aquilo. Fui o único artista dos anos 80 que virou um ícone dos anos 90 e dos anos 2000. Por que? Porque dei um cavalo de pau naquilo tudo. Hoje em dia, tenho um público todo misturado. Nos meus shows, tem pessoas de 8 anos a 80 anos por causa disso. Porque eu me desconstruo. Nos anos 90, parei de tocar rock, raspei a cabeça, fiquei gordo e comecei a tocar MPB, chorinho. Então, quando vi que só tinha aqueles caras ali, eu falei: “É agora que eu vou dar um basta nisso e vou dar um cavalo de pau no meu caminhão”.

Você perdeu muitos seguidores nas redes por causa disso?

O que acontece quando você dá um cavalo de pau e está com a caçamba cheia? A caçamba vira. O cavalo de pau é com esse intuito: ejacular uma população indesejável do seu convívio. Foi basicamente isso que aconteceu. Se uma pessoa que me chamar de patriota, eu vou bloquear. Dou um block, não quero nem saber. Não precisa muito mais que isso. Acho que eu sou o campeão de block no Twitter. Tenho mais de 40 mil blocks. Cheguei a ter quase 700 mil seguidores no Twitter e hoje estou com 560,2 mil. Tirei esse excesso de gordura toda.

Agora, o pessoal foi para cima de você nas redes.

Foi para cima, mas foi inútil. Sou uma pessoa inexpugnável. Essas pessoas são verdadeiros carrapatos existenciais. Simplesmente pulverizei um inseticida neles. Quem impossibilitou a convivência fui eu. Eu disse: “Não quero vocês, não sou da laia de vocês”. Basicamente esse foi o meu statement. E olha que, no início, a minha defecção do governo foi muito educada. Não fui grosseiro nem nada. As pessoas são muito intolerantes com as mínimas discordâncias.

Há um líder nessas ações dos bolsonaristas nas redes? Quem é o comandante dessa legião?

Você tem alguma dúvida? É o Olavo de Carvalho, a nossa Valkíria, e seus asseclas.

Como assim “a nossa Valkiria”? O que você quer dizer com isso?

Dizem as más línguas que, na época em que Olavo de Carvalho ainda era um terrorista maoísta e era companheiro de quarto do (ex-deputado, ex-ministro e ex-presidente do PT) Zé Dirceu, ele era amante passivo do Zé Dirceu e adorava ser chamado de Valkiria.

Que história é essa?

É verdade. Não posso fazer nada. Na música Valkiria Queen, que escrevi em inglês, eu falo he made a fool of everyone (ele fez todo mundo de bobo, em português), citando o (John) Lennon e o Maharishi, que era o guru dos Beatles. No final, eu digo que foi ele que escreveu as músicas dos Beatles e botou a culpa no colo do Ted (Theodor Adorno, filósofo, sociólogo e musicólogo alemão morto em 1969), com a sua vibe frankfurleska. (Em setembro de 2019, Olavo afirmou que quem escreveu as músicas dos Beatles foi Adorno.) Falo que ele fez toda essa porcariada só para casar com Elvis, porque o Olavo é fã de Elvis Presley: The king in secret being, oh sweet valkíria queen dressed all in satin, toda vestida em cetim. Esta música é uma radiografia da esquizofrenia paranoica do Olavo.

Ouça a música VALKIRIA QUEEN, composta por Lobão para Olavo de Carvalho e os bosolavistas


leia a letra original da música VALKIRIA QUEEN em inglês e a tradução em português

VALKIRIA QUEEN (original)

He’s  a  tyrant balls  licker
praising order and control
by contraptions craftingparanoia
the zealots breed their foes
in these times of tacky charlatans...
preachers  of  tampered  fears
they give meaning  and glamour to your bigotry
and reason  to  your  sneer
Selling rusty cages,as holy fire
To helpless foolish minds
The Preposterous feeds the freaks,
The  faithful ones he blinds
A swelling  past to swallow mornings
in the name of a sacred flattened earth
a sleepwalker plays the prophet
for the crowd of baffled  serfs

All the  fraud  he sees and condones
Is the fraud that he became
Just to settle  for a crown of bananas
And a throne  of lies in God’s name
Existencial virgins  are begging
Before  the  dwarf of subtraction
For a land of stillness assured,
Freed from rock and roll, fury and passion

He  made a fool of everyone,
Cause in fact,it was himself
who wrote all Beatles songs,
throwing the blame on poor Teddy's lap,
in his Frankfurtlesque fashion,
All this crazy shit just  to  hide the dream
to marry Elvis,
The  King in secret,
beeing her sweet
Valkiria queen
dressed all in satin.

VALKIRIA QUEEN (tradução em português)

Ele é um lambedor de bolas de tirano
Louvando ordem e controle,
Através de engenhocas produzindo paranoia
Os fanáticos criam seus inimigos
Nesses tempos de charlatães cafonas
Pregadores de medos adulterados
Eles dão significado e brilho aos seus fanatismos
E razão para seu desdém
Vendendo gaiolas enferrujadas como fogo sagrado
Para mentes desamparadas e tolas
O Ridídulo/ Absurdo alimenta suas aberrações
Aqueles mesmo fiéis que ele cega
Um passado se entumecendo , engolindo manhãs,
Em nome de uma sagrada terra aplainada
O sonâmbulo se faz de profeta
Para a multidão de servos pasmos, perplexos

Toda a fraude que ele vê e tolera
É a fraude que ele se tornou
Para apenas se contentar com uma coroa de bananas
E um trono de mentiras em nome de Deus
Virgens existenciais estão implorando
Diante do anão da subtração
Por uma terra de tranquilidade assegurada
Liberta do Rock, de fúria e da paixão

Ele fez todo mundo de bobo
Porque,na verdade, foi ele mesmo
Que escreveu todas as canções dos Beatles
Jogando a culpa no colo do pobre Teddy
Naquela sua atmosfera  frankfurttlesca
Mas toda essa merda engendrada só para esconder
Seu sonho de  se casar com Elvis,
O Rei,em segredo,
Se tornando assim, sua doce
Rainha Valkiria
Toda vestida em cetim

Você acredita, então, que o Olavo é que está à frente dessa turma toda?

Ele é que criou os vaporwaves. Esses caras são todos olavetes, todos os grupos linchadores. Quem foi que começou os linchamentos na primeira semana de governo? Foi o Olavo, ao linchar aquele grupo de deputados do PSL que foram para a China, como falei há pouco. Depois, além daqueles nomes que eu já mencionei, ele foi para cima da (deputada federal) Joice Hasselmann, do (apresentador) Danilo Gentili, do (músico e youtuber) Nando Moura, de mim, e foi indo. Sempre com o mesmo método. Um aspecto interessante nesse método é o seguinte: eles não atacam a esquerda, atacam aliados que manifestam qualquer discordância. Seguem a cartilha dos trostikistas, que pegaram logo os sociais-democratas para atacar. Botaram logo no paredão seus primeiros aliados. Tem essa coisa de traição que não se coaduna com a política. Traidor de quem? Eu vou ser fiel a quem? A uma besta quadrada como o Olavo de Carvalho, que é uma pessoa arrogante, que ultradimensiona o seu valor intelectual? Ele é um cara medíocre, com desejo de ser um poeta. Ele me passou umas letras horrorosas, diga-se de passagem, uma coisa constrangedora. O único livro dele que tem começo, meio e fim e um desencadeamento de eventos plausivelmente belo, com toda uma trama, é o Jardim das Aflições, que foi supervisionado pelo (poeta e intelectual) Bruno Tolentino. Os outros são coletâneas de ensaios, coisas esparsas. O Olavo tem uma superdimensão de si mesmo e uma plêiade de idiotas, carentes emocionais, vai atrás, achando que ele é realmente um gênio.

No livro você chama essa direita de “brega”, “vulgar”, “marombeira” e de “seita obscurantista”. Que direita é essa que reúne esses predicados todos?

Eu viajo muito pelo Brasil. Você encontra o padrão bolsonarista por todo lado. Por incrível que pareça, temos um elemento sexista nesta rapaziada. Tem os marombeiros, que fazem arminha, tem umas peruas todas gostosonas, cafonérrimas, evangélicas, católicas, tatuadas com a figura de Cristo. São todas ninfomaníacas. Tenho informantes no Palácio do Planalto que dizem que aquilo ali é uma suruba. No meio da semana, é gente transando em gabinete, todo mundo sabe que isso acontece. É a ressurreição do papa hóstia. O cara come, dá a bunda e depois vai lá para a igreja rezar em nome de Jesus. Tem todo esse perfil psicopata em nome de Jesus. E aquelas dancinhas de aeróbica, esses caras que se vestem de verde amarelo e fazem coreografia pró-Bolsonaro? Aquilo é a cara do governo, aquelas músicas sertanejas, aqueles evangélicos histéricos, ungindo as pessoas. Da mesma maneira, são agressivos, dizem impropérios, assassinam reputações. Depois, dizem que são conservadores. O (filósofo e escritor inglês) Roger Scruton, que morreu agora em janeiro, de quem eu li praticamente todos os livros, era um conservador de verdade, um cara elegante, chiquérrimo, que você não consegue colocar nesse perfil neocon que está aí, cafajeste, brega, grotesco. O que é realmente ser conservador? É uma pergunta que fica no ar. Agora, esse tipo de gente é um tipo asqueroso de quem quero distância e faço questão de evitar.

O que você acha da visão que eles têm da ciência?

Segundo o Olavo de Carvalho, cientistas são pseudocientistas, Einstein é pseudocientista, Isaac Newton e Galileu Galilei são pseudocientistas, o Carl Sagan é pseudocientista, o Neil deGrasse é um falso cientista. Eles dizem que os intelectuais brasileiros são todos uns merdas, que a ciência não existe, é uma trama, que o aquecimento global não existe. São todos terraplanistas. Para eles, a teoria da relatividade não existe. Não tem telescópio, não, porque o céu é apenas uma abóboda, como se fosse um planetário. Os caras falaram isso. Proíbem a vacina, dizem que você pode fumar muito que não vai ter câncer, que se você tocar uma punheta cresce cabelo na mão e seu Q.I. baixa. Se existe Pepsi, é porque tem feto dentro da Pepsi. Isso é uma seita obscurantista.

Como você explica todas essas reviravoltas todas na sua vida? Você tem uma visão num determinado momento, depois dá uma guinada radical para o outro lado. O que acontece?

A minha visão é a mesma. Não mudei nada. O que eu penso sobre a vida continua a mesma coisa. Quero um país honesto, que não tenha corrupção, com livre iniciativa, um mercado afluente, que tenha um meio cultural e musical honesto e independente. Esta pauta estava com o PT e depois ficou com o Bolsonaro. O que aconteceu não foi que eu mudei de opinião. Foram as pessoas e as instituições que prometiam isso que mudaram. O PT também era contra a corrupção, a mesma bandeira do Bolsonaro. Naquela época, em 1989, não havia o menor risco de esquerda. Eu só votei no PT porque 1989 foi o ano da morte do comunismo e da esquerda no mundo todo, com a queda do Muro de Berlim. Então, o fato de eu ter votado no PT, no segundo turno, foi porque eu pensava, “bom, como eles não podem ir para a esquerda, vão ter de inventar outra agenda”. Por isso mesmo, é que durante os 10, 11 anos eu apoiei o PT, ficava fustigando para saber onde estavam, para onde eles estavam indo.

Tenho informantes no Palácio do Planalto que dizem que aquilo ali é uma suruba’

Tem gente que diz, lembrando o Raul Seixas, que você é uma “metamorfose ambulante”.

Não, não tenho nada a ver com isso. Sou uma pessoa muito centrada, muito metódica, disciplinada. Acordo de madrugada. Durmo 3 horas por noite, medito. Faço isso há quarenta anos. Então, não posso dizer que eu seja uma pessoa nômade de mim mesma. Estou centrado e muito focado naquilo que eu quero. Fui aumentando de tamanho, não fui mudando. Eu me inventei como empresário, como apresentador de televisão, como escritor. Hoje em dia vendo mais livro do que disco. Fui mascote do Comando Vermelho, aprendi a atirar, vi muitas pessoas serem executadas na minha frente, pessoas sendo jogadas no triturador de lixo, cortadas ao meio. Já salvei pessoas de sequestro. Então, minha vida fecha a corrente bacana. Dizer “você é isso, você é aquilo” para um cara com o meu background é querer me reduzir ao máximo. Você consegue ver a retilineidade da minha proposição na minha trajetória como pessoa independente. Fui saindo gradativamente das gravadoras. Em 1997, fundei o Universo Paralelo, fui um dos primeiros artistas a fazer um site na internet. Depois comecei a vender coisas em bancas de jornal, fui aprendendo a mexer em computador, a fazer produção musical. Aprendi outros instrumentos, aprendi a ler e escrever, para poder ser meu próprio letrista. Para você ser um bom letrista, tem que ter assunto. Tem que ser curioso, conhecer de Eça de Queirós até física quântica, passando pela filosofia e pela política, evidentemente. Sempre gostei de filosofia, sempre li muita filosofia. Tudo isso não é uma carrapeta a esmo.

No final do livro você fala que este momento da sua vida representa o fechamento de um ciclo. Que ciclo é esse que está se fechando?

É verdade. Tanto é que cortei meu cabelo. Para mim esse ciclo começou quando fui tocar o hino nacional naquela manifestação pelo impeachment que decidiu o destino da Dilma. Talvez sejam esses 10 anos de que eu falo no livro. Foi a primeira vez que botei o rabo de cavalo, que ainda estava pequenininho. Foi o período em que mais produzi na minha vida, que coincidiu com a minha mudança para São Paulo 11 anos atrás; Agora, vindo outra década, penso que é hora de contabilizar o que aconteceu no passado e começar uma nova fase.


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