Ministros de tribunais superiores abrem seus escritórios em casa para mostrar como está sendo o período de quarentena
Pertencentes à faixa etária mais vulnerável ao novo coronavírus, ministros dos tribunais superiores - a maioria acima dos 60 anos - se desdobram para manter uma rotina no esquema home office. O uso das roupas ficou mais flexível, os alongamentos em casa ganharam atenção, mas as frases contundentes e as reflexões que pautam os julgamentos tradicionais se mantêm – agora focadas na pandemia. “Estou em prisão domiciliar”, compara Og Fernandes, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), com bom humor.
Além dos julgamentos virtuais, lives e videoconferências passaram a fazer parte do cotidiano dos magistrados mais influentes de Brasília. Leituras e filmes viraram distração nas horas de descanso, em contraponto à aridez do noticiário.
O Estado conversou com Og Fernandes e Luís Roberto Barroso e os colegas deles Gilmar Mendes e Marco Aurélio Mello, do STF, e com Maria Elizabeth Rocha, do Superior Tribunal Militar (STM), para falar da experiência de ser juiz sem poder sair de casa. Eles abriram seus escritórios, salas e bibliotecas particulares, por videoconferência e fotos, claro, para contar como é a rotina na quarentena.
Nesta quarta-feira, o Supremo se prepara para a primeira sessão plenária por videoconferência. É uma quebra de tradição em quase 130 anos de história. Saiba como a pandemia da covid-19 impactou a vida das principais autoridades do Poder Judiciário.
LUÍS ROBERTO BARROSO
62 anos, ministro do STF e do TSE
O novo coronavírus impôs ao menos três mudanças profundas na vida do ministro Luís Roberto Barroso. Por enquanto, não há mais sessões presenciais no Supremo Tribunal Federal (STF) nem no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Nas duas Cortes em que o ministro atua, a tecnologia arrumou um jeito de driblar a pandemia: os julgamentos são por videoconferência ou no plenário virtual, uma ferramenta online à la Black Mirror que permite que os magistrados naveguem na internet para votar com apenas um clique. Barroso também cancelou a participação em eventos em Harvard, Londres e Kyoto, onde apresentaria um trabalho sobre a Amazônia em evento da ONU. E, por último, deixou de usar terno.
“Eu já tinha o hábito de trabalhar em casa de manhã, só estendi isso para a tarde. Divido o meu dia entre estudar coisas novas, elaborar os votos que eu faço artesanalmente e despachar com meus assessores. Tenho trabalhado direto por videoconferência”, relata o ministro ao Estado, enquanto cumpre o distanciamento social em sua casa em Brasília.
Para Barroso, os dias ficaram mais longos e produtivos. “Embora a participação em sessões seja importante e tenha visibilidade, o trabalho pesado mesmo é feito longe da TV Justiça”, afirma.
Ele vê com preocupação e esperança o atual cenário de enfrentamento da pandemia. “Num mundo que se tornava cada vez mais individualista e indiferente, subitamente a solidariedade passou a ser uma questão de vida ou morte. Espero que seja uma mudança de paradigma, e não um surto passageiro”, diz.
“As últimas obras que li foram Escravidão, do Laurentino Gomes, Amazônia, do Ricardo Abramovay, e acabei a autobiografia do Shimon Peres, No room for small dreams. Peres foi um dos grandes líderes de Israel: estruturou o seu sistema de defesa e, ao mesmo tempo, foi incansável em busca da paz. Um humanista e um pragmático, uma das grandes figuras do nosso tempo. Um bom exemplo a seguir.”
OG FERNANDES
68 anos, ministro do STJ e do TSE
“Estou em prisão domiciliar”, resume o ministro Og Fernandes, relator no TSE de ações que pedem a cassação do presidente Jair Bolsonaro e do vice-presidente, Hamilton Mourão. Ex-jornalista, sereno e de espírito leve, Og tem ficado recluso em casa. Lá, conta com uma espécie de "minigabinete", onde analisa os casos que não param de chegar. A sensação de isolamento é quebrada pelas conversas com parentes e auxiliares pelo WhatsApp e e-mail.
Ele avalia que o momento é inédito na história. “A minha geração é pós-Segunda Guerra, não assistiu a nenhum fato que mexesse de uma maneira geral com a humanidade como esse. Tivemos vários episódios lamentáveis, mas não tinham esse caráter universal. Estamos todos no mesmo passo: tentando sobreviver”, diz.
Og destaca que as primeiras sanções impostas na história da humanidade envolviam justamente o exílio, o distanciamento social, algo que não é próprio da natureza humana. “Essa sensação não é pior porque temos essa possibilidade do contato telefônico, mas às vezes há situações em que nada substitui o contato.”
O ministro acorda diariamente às 9h, trabalha e à tarde arruma tempo para uma esteira dentro de casa. Gosta de filmes e seriados, mas está fugindo de duas sugestões impertinentes da Netflix - Epidemia e Pandemia. “Esses dois não vou assistir. Acho que a realidade supera a ficção, estamos vivendo num momento em que obras dessa natureza parecem não contribuem com nada.”
“A rotina implica primeiro em manter o trabalho em dia. Fora isso, as leituras - gosto muito de história. Com esse momento atípico na nossa vida, terminei Primeira Guerra Mundial, da autora canadense Margaret MacMillan. O outro livro, que não acabei, é Uma breve história do Sec. XX, de Geoffrey Blainey.
GILMAR MENDES
64 anos, ministro do STF
Uma das autoridades que mais circulam por Brasília, o ministro Gilmar Mendes tinha, até antes da pandemia, presença cativa em seminários, eventos e conversas reservadas com autoridades de outros poderes. A covid-19, no entanto, o obrigou a trocar as agendas “olho no olho” pela esfera online, como os debates nas redes. Em um deles, mandou um recado ao Palácio do Planalto: o Supremo não vai validar decisões do governo que contrariem a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Apesar do novo coronavírus, Gilmar procura manter a rotina: de camisa social, leciona por videoconferência; tem aulas de alemão, inglês e espanhol (a distância); faz exercícios físicos em casa; e assiste às reprises dos jogos de futebol na TV - é torcedor do Santos. Também busca textos técnicos e científicos para saber mais sobre a doença.
“A vida não pode parar. Eu acho que estamos descobrindo um novo modo de atuar, diante da impossibilidade de viagens. E podemos aproveitar esse cabedal de opções e de pessoas que estão disponíveis”, diz.
Na avaliação de Gilmar, a pandemia vai não só colocar uma outra agenda, como mudar o mundo. “Vamos reenfatizar alguns temas da agenda nacional, como a valorização de instituições, da Fiocruz, do SUS, que está sendo a salvação do Brasil neste momento.”
O ministro, que aproveita o momento para se dedicar a livros técnicos, recomendou o filme brasileiro de humor Minha mãe é uma peça, com Paulo Gustavo.
MARCO AURÉLIO MELLO
73 anos, ministro do STF
Ao garantir que Estados e municípios também podem adotar medidas para combater o novo coronavírus, o ministro Marco Aurélio Mello, do STF, encerrou a decisão assim: “Brasília – residência –, 26 de março de 2020, às 11h”. Frisou que estava trabalhando de casa.
“Eu creio que todos nós sairemos melhores depois desse período, não digo de isolamento, mas um período de ausência de convivência social. Penso que todo mal tem o lado positivo, e precisamos potencializar com muito otimismo esse lado positivo”, diz Marco Aurélio. O ministro vai deixar o STF em julho do ano que vem, quando completa 75 anos.
Marco Aurélio sente falta dos jogos do Flamengo e do futebol (“a festa do povo”, define), mas tem aproveitado o distanciamento social com a presença da família, com quem passou o feriado de Páscoa.
Dos 11 integrantes do STF, é considerado o ministro mais resistente ao uso do plenário virtual, por preferir o debate cara a cara e a troca de ideias - muitas vezes acaloradas - das sessões plenárias, transmitidas ao vivo pela TV Justiça. “Sou um juiz que só vai ao tribunal para as sessões presenciais, que, parece, não estarão em moda tão cedo”, lamenta.
“Estou terminando de ler Pantaleão e as visitadoras (de Mario Vargas Llosa). O período é de reflexão.”
MARIA ELIZABETH ROCHA
60 anos, ministra do STM
A ministra Maria Elizabeth Rocha, do Superior Tribunal Militar (STM), também prefere as coisas à moda antiga - se define uma pessoa “analógica”, do século 20, que gosta de papel e caneta. A covid-19, no entanto, a obrigou a entrar, neste quesito, no século 21.
“Tinha relação de ódio com o computador, agora não tem mais jeito. É um caminho sem volta”, afirma ela, que passou a dar aulas por videoconferência e a participar de sessões virtuais de julgamento. Enquanto ensina a distância e cuida dos processos do gabinete, Maria Elizabeth diz que “assumiu o lado dona de casa”: procurou organizar a biblioteca e reconhece que está “obcecada” com a limpeza da residência. “Estou limpando a casa como nunca”, conta.
Fã de cineastas como Truffaut, os irmãos Coen e Woody Allen, a ministra indica filmes em programa da Rádio Justiça - e tem sentido falta das sessões de cinema, banidas em tempos de contágio, que acabaram substituídas por filmes e seriados das plataformas de streaming. “São tempos muito angustiantes, a arte ajuda a viver, a respirar. Se ainda não tem vacina contra a covid-19, ao menos temos a arte pra nos salvar de alguma maneira, nos redimir como humanidade.”
“Beautiful people é um livro descontraído, leve. Aproveitei essa época para algumas literaturas deliciosas. E como não podemos ir ao cinema, estou colocando as séries em dia. Acabei de ver Sucessão, da HBO, que conta sobre filhos de magnatas que ficam orbitando em volta do poder das corporações. É bárbaro!”
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