Saúde

Deserto da vacina

Surgimento da variante Ômicron expõe o risco de termos cerca de 90% de não vacinados na África

Texto e dados: Mariana Hallal / Infografia: Mariana Hallal e Bruno Ponceano

01 de dezembro de 2021 | 05h00

A descoberta da variante Ômicron expõe o risco de a África ter cerca de 90% de não vacinados - o que eleva as chances de surgirem novas versões do vírus, alertam especialistas. Uma cepa diferente pode ser mais transmissível ou driblar a proteção oferecida pelos imunizantes já desenvolvidos. Algumas iniciativas, como o consórcio Covax Facility, liderado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), tentaram reduzir a desigualdade no acesso aos imunizantes, mas ainda há bolsões sem ter recebido nenhuma dose ao redor do mundo.

Os países da África, continente onde foi identificada originalmente a nova cepa, são os que menos tiveram acesso às vacinas. Oito em cada dez nações africanas não conseguiram imunizar nem 20% da sua população. Essa é a taxa considerada mínima pelo Covax Facility para proteger a população mais vulnerável, como idosos e profissionais da saúde.






Na Europa, por outro lado, a disponibilidade de vacinas é tão grande que os países já estão aplicando injeções de reforço. Dados da plataforma Our World In Data, ligada à Universidade de Oxford (Reino Unido), mostram que 8% dos europeus já tomaram a dose extra da vacina.

TERCEIRA DOSE
Mais de 60 milhões de pessoas já receberam a dose extra da vacina contra a covid-19 na Europa. Isso equivale a 8% da população.
DESIGUALDADE
Na África, apenas 10,6% da população tomou a primeira dose do imunizante. No centro do continente, há um verdadeiro apagão de vacinas.
OUTRO CENÁRIO
Se as doses de reforço aplicadas na Europa fossem distribuídas para a África, seriam suficientes para imunizar completamente as populações do Chade e Sudão do Sul.

O diretor de Envolvimento de Países do Covax Facility, Santiago Cornejo, criticou em entrevista ao Estadão em setembro a má distribuição das vacinas. Na época ele já alertava sobre o risco de concentrar esforços na aplicação de doses de reforço enquanto outros países não conseguiam o suficiente nem para a primeira dose.

Ao todo, 224,6 milhões de doses de reforço foram aplicadas no mundo todo. A Ásia é o continente que mais aplicou doses extras na população em termos absolutos. Proporcionalmente, a Europa lidera esse ranking, seguida pela América do Norte. No Brasil, as injeções de reforço serão aplicadas em todos os adultos, cinco meses após a 2ª dose.






O infectologista Julio Croda, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), afirma que se o objetivo do mundo for acabar com a pandemia e salvar vidas, a prioridade é garantir que todos os países consigam aplicar a primeira e a segunda dose em toda a sua população vacinável. Ele explica que vacinar com equidade é importante para evitar as mutações do coronavírus.

Quanto mais elevada é a taxa de transmissão do vírus, há mais chances de novas cepas surgirem. Até o momento, as vacinas protegem contra as variantes conhecidas do coronavírus, mas pode surgir alguma mutação que escape dessa proteção. “Todo o esforço pode ser perdido se a gente mantiver parte do globo com transmissão elevada da doença”, afirma.

DUAS DOSES
O objetivo da OMS era imunizar 10% da população de todos os países até setembro. Dois meses depois, 49 nações não conseguiram bater a meta. Destas, 73% estão na África – só 7% da população do continente está imunizada.
CINCO PAÍSES
As vacinas aplicadas como dose extra no mundo seriam suficientes para imunizar as populações de Benin, Eritreia, Madagascar, Níger e Sudão. Em todos esses países, menos de 2% da população recebeu as duas doses da vacina.

Um problema geopolítico

A distribuição desigual das vacinas entre os países é uma questão geopolítica, afirma Oliver Stuenkel, professor associado de Relações Internacionais na Fundação Getulio Vargas (FGV). Os países ricos financiaram as pesquisas para desenvolvimento dos imunizantes e compraram a maior quantidade possível de vacinas. A OMS e o Covax Facility contavam com doações desses países para abastecer nações mais pobres, mas isso aconteceu em uma escala menor do que a esperada.

Stuenkel diz que muitos fabricantes de vacinas preferem fechar acordos bilaterais diretamente com os países do que passar pelo intermédio da OMS ou do Covax. “É por isso que os países em desenvolvimento acabam não recebendo as quantidades que precisam”, fala.

A incerteza é outro ponto que atrapalha a logística de doação de vacinas. Mesmo tendo muito mais doses que o necessário, Stuenkel diz que países de alta renda preferem estocar os imunizantes porque podem precisar deles no futuro. “Com a incerteza generalizada, o risco político de doar doses cresceu”, fala.

Além disso, a maior parte dos países africanos não são considerados aliados cruciais dos grandes produtores de vacinas. Em um mundo cada vez mais politizado, esses países ficam com poder de barganha pequeno, diz Stuenkel.

“Os anos dourados do multilateralismo passaram”, afirma Stuenkel. “Isso faz com que nações de pouca relevância política recebam menos vacinas do que deveriam se fôssemos olhar para as necessidades de cada país.”

Em nota divulgada nesta segunda-feira, 29, a OMS chamou a atenção da comunidade internacional para a qualidade das doações de vacinas feitas aos países que integram o Covax e, em especial, às nações africanas. “As doações de doses têm sido uma fonte importante de suprimento, mas a qualidade dessa ação precisa melhorar”, diz o texto.

A organização afirma que as doses doadas, em geral, têm prazo de validade curto. Também não há aviso sobre as doações com antecedência suficiente para que os países organizem a logística de armazenamento e aplicação das vacinas. “Os países precisam ter estoques previsíveis e confiáveis”, diz a nota da OMS.

Nesta segunda, o presidente da China, Xi Jinping, anunciou que vai providenciar um bilhão de doses de vacina aos países africanos. Destas, 600 milhões serão doadas e 400 milhões serão fornecidas por outros meios, como a produção conjunta entre empresas chinesas e nações africanas. O país já havia fornecido 200 milhões de doses ao continente.

Para Julio Croda, o Brasil também está na posição de doar vacinas a países com menos acesso aos imunizantes. O País, que já vacinou com as duas doses 62% da sua população, fechou mais um contrato com a farmacêutica Pfizer para a comprar 100 milhões de doses no ano que vem. O infectologista diz que, se for do interesse do governo, o Brasil poderia comprar vacinas do Instituto Butantan e da Fiocruz e doá-las a outros países.

O diretor do Butantan, Dimas Covas, disse em entrevista à Folha de S. Paulo que estuda doar doses da Coronavac para a África. A assessoria do instituto confirmou a intenção ao Estadão, mas disse que as tratativas ainda estão na fase inicial e não há detalhes sobre a doação. Outra possibilidade, segundo o instituto paulista, é vender os imunizantes a países de baixa renda.


Expediente

Editor executivo multimídia: Fabio Sales / Editora de infografia multimídia: Regina Elisabeth Silva / Editores assistentes multimídia: Adriano Araujo, Carlos Marin e William Mariotto / Designer multimídia: Bruno Ponceano /  Editor de Metrópole Victor Vieira / Editores assistentes Metrópole Marco Antônio Carvalho e Raphael Ramos / Reportagem: Mariana Hallal

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