Ao ordenar invasão da Ucrânia, há seis meses, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, prometeu extirpar os “nazistas” de Kiev, e ameaçou levar o conflito às portas da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), caso as potências ocidentais seguissem apoiando o governo de Volodmir Zelenski. Analistas ouvidos pelo Estadão avaliam que o uso do líder russo faz da 2ª Guerra para justificar seus objetivos na Ucrânia refletem a necessidade de Putin de mobilizar sua base de apoio, com um discurso militarista e ultranacionalista para tirar o foco dos russos da crise econômica.
Na ótica de Putin, assim como os soviéticos foram traídos pelos nazistas em 1941, quando Hitler violou o pacto Molotov-Ribbentrop e invadiu o país, a Rússia de hoje foi enganada pelo Ocidente na questão da Ucrânia. Com isso, o líder russo justifica para o público interno o antagonismo do Kremlin com a aliança atlântica, em um momento no qual os países europeus voltam a enxergar Moscou como uma ameaça.
“Quando Putin voltou ao poder em 2012, ele percebeu que a economia não estava indo tão bem. Então ele vinculou sua popularidade a uma espécie de patriotismo militar”, explica o historiador russo-americano Leon Aron, do American Enterprise Institute. “A narrativa de Putin mudou de ‘Estamos na rota para nos integrar à Europa e nos tornarmos um país desenvolvido’ para ‘Estamos cercados de inimigos e vou restaurar a glória da Rússia aos tempos da União Soviética’”, acrescentou.
Desde então, diz Aron, a 2ª Guerra e a Batalha de Stalingrado são interpretadas como “vitórias que precisam ser repetidas”. Um exemplo dessa retórica de Putin é o seu discurso de 24 de fevereiro, quando o líder russo ordenou o início da invasão da Ucrânia.
“Naquela ocasião, Putin comparou a situação da Ucrânia com a invasão nazista da União Soviética em 1941. Ele disse ‘Nós confiamos no inimigo e eu como presidente não posso permitir que isso ocorra de novo’”, disse o historiador. “Eu estou certo de que Putin usará o aniversário de Stalingrado da mesma maneira. De que é uma lição para proteger a Rússia de seus inimigos. Antes o inimigo era Hitler, e agora é a Otan.”
De aliado a rival
Ao contrário do contexto da 2ª Guerra, quando Moscou foi um importante aliado para o bloco ocidental - sendo responsável pelas maiores baixas do Exército nazista -, no contexto atual a situação se inverteu. Apesar de utilizar paralelos históricos da conquista soviética para legitimar a campanha em direção a Kiev, Putin acabou aproximando a Rússia de um contexto mais parecido ao presenciado na Guerra Fria - afastando-se do restante da Europa.
A atuação da Otan deixa isso claro. Além do envio de armas para Kiev, da aplicação de sanções e da constante retórica de condenação à Rússia, a aliança militar apresentou em junho uma nova diretriz de segurança, mudando o status de Moscou de “aliado estratégico” para mais direta e significativa ameaça à paz e à segurança de seus aliados. “A guerra do presidente Vladimir Putin contra a Ucrânia destruiu a paz na Europa e criou a maior crise de segurança na Europa desde a 2ª Guerra”, afirmou o secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg na oportunidade.
“Partindo da visão do interesse nacional da Rússia, a invasão da Ucrânia foi um grande erro estratégico - e um crime - que o país vai pagar por muitos e muitos anos. Mas da perspectiva de Putin, a coisa não está tão clara: Ele conseguiu consolidar a sociedade em seu entorno; Não há espaço para a oposição, que foi praticamente destruída; Há uma separação cada vez maior entre a Rússia e a Europa”, explicou Serguei Radchenko, professor da Escola de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns Hopkins (leia a entrevista completa).
De acordo com o historiador Jussi Hanhimaki, professor de História e Política Internacional do Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais, em Genebra, o novo conceito estratégico que apresenta a Rússia como inimigo número 1 só foi possível a partir da união dos aliados da Otan no contexto da guerra da Ucrânia, mas endereça também outras preocupações do bloco.
“O novo conceito estratégico define a Rússia como a ameaça número um (à Otan), mudando o conceito anterior que definia o país como um parceiro estratégico da aliança. Essa mudança vem no contexto da guerra na Ucrânia, mas leva em consideração também outras preocupações dos países-membro, como o uso de capacidades cibernéticas em vários países para influenciar eleições”, afirmou
Idas e vindas
Em diferentes contextos geopolíticos, Moscou esteve mais tempo sob olhares cautelosos do que sob olhares despreocupados do Ocidente - antes e depois da 2ª Guerra.
“Em princípio, os aliados estavam em lados diferentes. Eles estavam em “conflito” antes da 2ª Guerra. Você tinha o socialismo - ou seja lá o que aquilo fosse - na União Soviética, um capitalismo democrático nos EUA, Reino Unido e França, e um capitalismo fascista, com Alemanha e a Itália. O jogo jogado na década de 1930 era descobrir com quem cada um desses lados iria se aliar. Qual seria a aliança mais natural? O capitalismo democrático com o capitalismo fascista contra o rival socialista? O capitalismo democrático com o socialismo contra o capitalismo fascista, não democrático?”, explica o professor de história contemporânea da USP e especialista em Rússia Angelo Segrillo.
Antes da aliança por conveniência entre socialistas e capitalistas democráticos que derrotou o nazismo em 1945, outras alianças foram estudadas. Britânicos e franceses negociaram a partilha da Checoslováquia com o Terceiro Reich em 1938. Em 1939, nazistas e comunistas assinaram o Pacto Ribbentrop-Molotov, que previa a não agressão entre Adolf Hitler e Josef Stalin.
“A União Soviética justificava que teve que fazer o pacto Ribbentrop-Molotov com Hitler, porque Inglaterra e França haviam negado antes um pacto de defesa coletiva proposto pelos soviéticos, para no caso de ataque da Alemanha, todos responderem conjuntamente. Isso deixou Stalin desconfiado de que Churchill queria que Hitler levasse a cabo o que prometeu no Mein Kampf, e avançasse contra a União Soviética”, disse Segrillo.
Na virada de 1941 para 1942, quando os EUA entram na guerra após Pearl Harbour e a Alemanha ataca a União Soviética, a súbita mudança no alinhamento dos campos exigiu um esforço de propaganda de cada lado para explicar as novas alianças, como explica o professor da USP.
Foi uma coisa tão súbita e estranha dentro dos EUA - eles eram inimigos antes e a propaganda apresentava os comunistas como “comedores de criancinha” - que para a população aceitar a União Soviética como aliada, foram chamados cineastas de Hollywood para fazer filmes americanos mostrando uma imagem positiva da URSS.
Angelo Segrillo, professor de História Contemporânea da USP
Da vitória aliada à Guerra Fria
Embora tropas soviéticas e ocidentais tenham dividido alguns campos de batalha durante a 2ª Guerra e a propaganda ajudar a viabilizar a cooperação, o desfecho vencedor na guerra não resultou em um aprofundamento das relações. Pelo contrário, a 2ª Guerra foi imediatamente sucedida por décadas de Guerra Fria.
Uma série de especulações teóricas foram feitas sobre se a aliança - ou o casamento por conveniência - entre os blocos adversários poderia ter se estendido para além da 2ª Guerra. Alguns defendem que caso Franklin Roosevelt, presidente dos EUA, tivesse continuado vivo, por seu perfil diplomático, algum nível de relação poderia ter perdurado - o que ficou inviável com a chegada ao poder de Harry Truman - que tinha um traço mais anticomunista - ficou inviável. Especulações à parte, a disputa ideológica se mostrou mais forte do que os laços construídos durante a guerra.
No ano seguinte ao fim do conflito, o premiê britânico, Winston Churchill, faz o famoso discurso no qual lança o termo “cortina de ferro”, expressão considerada o marco inicial da Guerra Fria: “De Estetino, no Báltico, até Trieste, no Adriático, uma cortina de ferro desceu sobre o continente”, disse Churchill, que também foi o primeiro a falar em “esfera soviética” de influência, ao se referir ao Leste Europeu.
A própria Otan, que neste ano definiu Moscou como ameaça número 1, é produto da disputa ideológica que se seguiu à luta contra o nazismo. E seu avanço rumo à Cortina de Ferro, depois da Queda do Muro de Berlim, motiva até hoje o discurso belicoso de Putin.
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