Dois países que possuem armas nucleares estão em rota de colisão, sem uma alternativa óbvia a esse caminho. Um líder russo errático usa linguagem apocalíptica — “se vocês querem nos encontrar no inferno, a escolha é sua”. Em contendas nas Nações Unidas, cada lado acusa o outro de, essencialmente, brincar de Armageddon.
Por seis décadas, a Crise dos Mísseis em Cuba foi considerada o confronto definidor da era moderna, o flerte mais próximo do mundo com a aniquilação nuclear. A guerra na Ucrânia apresenta riscos de magnitude pelo menos similar, particularmente agora que Vladimir Putin recuou para o corner ao declarar que grandes regiões da vizinha Ucrânia pertencem à Rússia “eternamente”.
À medida que dois países sobem os degraus da escalada, equívocos tornam-se cada vez mais prováveis — conforme a Crise dos Mísseis em Cuba deixou evidente. Em uma guerra convencional, é possível que líderes políticos cometam erros significativos e a raça humana sobreviva, combalida mas intacta. Mas em um conflito nuclear, até mesmo um mal entendido ou uma mensagem mal interpretada pode surtir consequências catastróficas.
Em outubro de 1962, foi o presidente John Kennedy que declarou um bloqueio naval, ou quarentena, a Cuba para evitar o reforço da posição militar soviética na ilha. Isso colocou o ônus sobre seu homólogo no Kremlin, Nikita Khrushchev, no sentido de aceitar a clara condição sinalizada pelos americanos para pôr fim à crise (a retirada completa dos mísseis soviéticos de Cuba) ou arriscar uma guerra nuclear.
Desta vez, os papéis foram invertidos: Putin busca estabelecer um limite insistindo que usará “todos os meios disponíveis”, incluindo seu arsenal nuclear, para defender as fronteiras recém-expandidas, unilateralmente, da Mãe Rússia. O presidente Joe Biden prometeu apoiar as tentativas da Ucrânia de se defender. Não está claro como Putin reagirá se esse limite for ignorado.
Mesmo se assumirmos que Putin é um jogador racional, que deseja evitar a aniquilação nuclear, isso não é necessariamente tranquilizador. Ao contrário da crença popular, o maior risco de guerra nuclear em 1962 não decorreu da chamada confrontação olho no olho entre Khrushchev e Kennedy, mas de sua incapacidade de controlar eventos que eles próprios haviam desencadeado.
Conforme descobri quando elaborei uma cronologia minuto a minuto da fase mais perigosa da crise, houve momentos em que nenhum dos líderes estava ciente dos desdobramentos no campo de batalha, que assumiram lógica e motivação própria.
Para Entender
Khrushchev não autorizou a derrubada de um avião-espião U-2 dos EUA sobre Cuba por um míssil soviético em 27 de outubro de 1962, o dia mais perigoso da crise. E Kennedy não soube que outro U-2 entrou no espaço aéreo da União Soviética naquele mesmo dia, acionando defesas antiaéreas. “Sempre tem um desgraçado que não entende a mensagem”, definiu ele posteriormente.
Ainda que a guerra na Ucrânia seja obviamente diferente da Crise dos Mísseis em Cuba, não é difícil imaginar falhas e erros de cálculo comparáveis. Um projétil desgarrado, de qualquer lado, pode causar um acidente em alguma usina nuclear, contaminando com radioatividade boa parte da Europa. Uma tentativa malfadada da Rússia de interromper fornecimentos militares do Ocidente para a Ucrânia poderia atingir países da Otan, como a Polônia, acionando uma resposta automática dos EUA. Uma decisão da Rússia de usar armas nucleares táticas contra formações de tropas ucranianas poderia escalar para uma troca total de fogo atômico com os americanos.
Ainda que a comunidade de inteligência dos EUA tenha obtido sucessos impressionantes na Ucrânia, mais notavelmente na acurada previsão da invasão russa, iniciada em 24 de fevereiro, a crise de 1962 deveria servir como um lembrete a respeito dos limites da coleta de dados de inteligência. Kennedy foi informado tardiamente sobre o envio de mísseis soviéticos de médio alcance para Cuba e foi deixado totalmente no escuro em relação a outros assuntos igualmente importantes. Ele não foi avisado, por exemplo, sobre a presença de aproximadamente 100 mísseis nucleares táticos da União Soviética apontados para a base naval de Guantánamo, nem sobre uma potencial força de invasão dos EUA. A CIA subestimou os efetivos militares soviéticos na ilha e não foi capaz de rastrear o movimento de nenhuma ogiva nuclear.
O que tanto Kennedy quanto Khrushchev possuíam era um entendimento intuitivo do risco diante não apenas de seus países, mas de todo o planeta, se fosse permitido à crise escalar. Por este motivo, eles mantinham nos bastidores um canal para comunicar-se privadamente (por meio do irmão do presidente, o então procurador-geral dos EUA, Robert Kennedy, e do então embaixador soviético em Washington, Anatoli Dobrinin) mesmo que trocassem acusações publicamente. Foi por isso, também, que eles atuaram com agilidade para alcançar um acordo (mantido em segredo por décadas) que implicou em concessões, envolvendo desativação de mísseis de médio alcance dos EUA estacionados na Turquia em troca da retirada nuclear dos soviéticos de Cuba.
Como Kennedy, Khrushchev havia testemunhado o horror da 2.ª Guerra. Ele sabia que uma guerra nuclear seria muito mais destrutiva. Arquivos do Kremlin mostram que, apesar de toda sua retórica amedrontadora, Khrushchev estava determinado a encontrar uma solução pacífica assim que ficou claro que sua aposta nuclear havia fracassado. Putin, em contraste, escolheu aumentar a ameaça em todos os pontos críticos. A escalada se tornou sua tática predileta.
Tudo isso ocorre com o pano de fundo de uma revolução nas comunicações que acelerou o ritmo da guerra e da diplomacia, resolvendo algumas das dificuldades tecnológicas enfrentadas por Kennedy e Khrushchev mas criando novos problemas em seu lugar. Não demora mais 12 horas para transmitir um telegrama codificado de Washington para Moscou. Atualmente, as notícias do campo de batalha circulam quase instantaneamente, pressionando líderes políticos a tomar decisões precipitadas. Um presidente americano não pode ser dar ao mesmo luxo de Kennedy, que em outubro de 1962 pôde levar seis dias considerando sua resposta para a descoberta de mísseis nucleares soviéticos em Cuba.
Ainda não chegamos nem perto dos níveis de alerta nuclear que caracterizaram a Crise dos Mísseis em Cuba. Mesmo que Putin tenha falado em colocar suas forças nucleares em alerta elevado, parece não haver nenhuma confirmação de movimentos incomuns nessa direção. A fase mais perigosa da Crise dos Mísseis em Cuba durou apenas 13 dias; já estamos no oitavo mês da guerra na Ucrânia — e sem perspectiva de resolução. Quanto mais o conflito se arrastar, maior será o risco de um erro de cálculo terrível. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
* Michael Dobbs foi correspondente estrangeiro, cobriu o colapso do comunismo e é autor de “Um Minuto para a Meia-Noite: Kennedy, Khruchev e Castro à beira da guerra nuclear” (Editora Rocco)
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