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A Arábia Saudita deseja turistas, mas não esperava que os cristãos aparecessem

Mesmo em busca de diversificar a economia dependente de petróleo e apresentar uma nova face ao mundo, país não esperava receber tantos cristãos neste momento

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Por Vivian Nereim
Atualização:

THE NEW YORK TIMES - A caravana de cinco Toyotas Land Cruiser avançava em alta velocidade pelo pedregoso deserto da Arábia Saudita, por uma estrada aberta tão recentemente que ainda nem estava no mapa. Diante do mar que separa o reino do Egito, os veículos pararam numa praia inóspita. Quinze turistas desceram e se reuniram em torno de Joel Richardson, um pastor do Kansas.

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Enquanto o sol mergulhava atrás das montanhas, na Península do Sinai, desaparecendo no horizonte do Egito, Richardson pediu para o grupo imaginar como teria sido estar do outro lado daquelas águas no momento do Êxodo bíblico, fugindo do Exército do faraó ao lado de Moisés, quando o mar se partiu-se em dois.

Richardson abriu uma Bíblia, colocou os óculos e começou a recitar: “Quem entre os deuses é como tu, ó Senhor?”; “Quem é como tu, glorificado em santidade, terrível em louvores, operando maravilhas?”.

Turistas cristãos em Jebel al-Lawz, que alguns acreditam ser o Monte Sinai, na Arábia Saudita, em 17 de fevereiro de 2023. Em uma nova era fluida para o reino islâmico conservador, os evangélicos se tornaram alguns de seus visitantes mais entusiasmados Foto: Iman Al-Dabbagh / NYT

Um casal de aposentados da Flórida, um farmacêutico do Colorado, uma contadora de Idaho e um arqueólogo israelense ouviam atentamente.

Esse não era o tipo de visitante que as autoridades sauditas aguardavam quando abriram as fronteiras do país para o turismo, em 2019, buscando diversificar a economia dependente de petróleo e apresentar uma nova face ao mundo. Primeiro viriam os aventureiros, pensaram os sauditas, exploradores experientes em busca de um destino inusitado, e depois, o mercado de luxo, com donos de iates lotando os resorts que o governo está construindo na costa do Mar Vermelho. Mas ninguém no conservador reino islâmico tinha pensado nos cristãos.

Mesmo assim, cristãos de várias denominações — incluindo batistas, menonitas e outros autoproclamados “filhos de Deus” — figuraram entre os primeiros indivíduos que usaram os novos vistos turísticos para visitar a Arábia Saudita. Desde então, cada vez mais cristãos têm aparecido, atraídos por um rumor e vídeos que viralizaram no YouTube afirmando que a Arábia Saudita, não o Egito, é o local do Monte Sinai, onde segundo escrituras judaicas e cristãs Deus revelou os Dez Mandamentos.

A excursão visitou a montanha Jebel al-Lawz, no noroeste saudita, que alguns cristãos acreditam ser o Monte Sinai.

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Joel Richardson, ministro e autor de Kansas City, fala aos turistas em Jabal Al Lawz, que alguns acreditam ser o Monte Sinai, na Arábia Saudita, em 17 de fevereiro de 2023 Foto: Iman Al-Dabbagh / NYT

Estudiosos proeminentes da Bíblia discordam vigorosamente. Mas isso faz pouco para arrefecer o entusiasmo de peregrinos que embarcam no que muitos deles dizem ser a viagem de suas vidas, caçando evidências do que, acreditam eles, poderiam provar que o Êxodo realmente ocorreu.

“Isso torna tangível algo que nós acreditamos ao longo de toda a nossa vida”, afirmou durante a excursão de Richardson a contadora de Idaho, Kris Gibson, de 53 anos, que nunca tinha visitado nenhum país mais distante que o México antes de embarcar para a Arábia Saudita, em fevereiro.

Meca

Por décadas, quase todos os turistas que entravam no reino árabe eram peregrinos rumando a Meca, o local de nascimento do Islã. Praticar outras religiões abertamente era de fato proibido. Árvores de Natal artificiais eram contrabandeadas e vendidas clandestinamente. Pessoas acusadas de “feitiçaria” eram executadas.

O dogmatismo religioso do país começou a abrandar no início dos anos 2000, quando dezenas de milhares de sauditas foram estudar nos Estados Unidos. Então, em 2015, um novo rei elevou seu filho de 29 anos, o príncipe Mohammed bin Salman, à primeira colocação na linha de sucessão.

O príncipe Mohammed declarou que transformaria seu reino em um polo global de negócios. E lançou uma torrente de mudanças sociais, retirando o poder da polícia religiosa, aliviando códigos de vestimenta e abolindo a proibição às mulheres de dirigir.

Turistas caminham pela região de Tabuk, na Arábia Saudita  Foto: Iman Al-Dabbagh / NYT

Ele também determinou um aumento na repressão política, silenciando quase todas as vozes sauditas que poderiam desafiá-lo. Em 2018, operadores sauditas em Istambul assassinaram e desmembraram Jamal Khashoggi, colunista do Washington Post e dissidente saudita no exílio. Uma análise de inteligência dos EUA determinou que provavelmente o príncipe ordenou o assassinato, uma acusação que ele nega.

Desde então, Mohammed desafiou tentativas de isolá-lo, empregando a riqueza do petróleo de novas maneiras para cimentar a influência do país, incluindo o surpreendente contrato celebrado este mês entre a liga de golfe financiada pelo governo saudita e a PGA Tour.

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Conforme a Arábia Saudita navega esta fluida nova era, acontecimentos anteriormente impensáveis tornaram-se lugar-comum, conferindo à vida real a tessitura de um sonho surrealista.

O presidente da França,Emmanuel Macron, conversa com o príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman, em Paris  Foto: Ludovic Marin/ EFE

Liberdade

Os poucos sauditas que se atreveriam a falar a respeito de liberdade religiosa plena, ateus e até muçulmanos que questionem princípios do Islã podem ser mandados para a cadeia. Mas os tabus religiosos estão mudando rapidamente. Monges budistas compareceram a um festival inter-religioso no reino no ano passado, e turistas judeus recentemente plantaram tamareiras em Medina, a segunda cidade mais sagrada do Islã. Um americano-israelense apareceu na capital, Riad, divulgando um website em que se proclamava “rabino-chefe da Arábia Saudita”.

O reino está mudando tão rapidamente que as pessoas com frequência não têm certeza a respeito do que tem aprovação ou é acidente. Agências do governo não responderam a pedidos de comentários sobre os tours cristãos. Mas alguns sauditas mostraram-se surpresos, e a expansão do turismo é prioridade à medida que o país diversifica sua economia.

Há ainda um incentivo mais sutil. Os sauditas são descritos há muito tempo na América do Norte e na Europa por narrativas que os qualificam como retrógados e bárbaros. Os sauditas veem o turismo como uma maneira de redefinir essas narrativas e divulgar sua cultura: sua hospitalidade, sua generosidade, seu café com especiarias e seus doces fritos.

“Quando pensamos na Arábia Saudita nos EUA, nós certamente não pensamos nessas coisas”, afirmou Gibson, caminhando em um desfiladeiro crivado de palmeiras.

Kris Gibson, membro de uma turnê cristã do estado americano de Idaho, na casa de uma família beduína na região de Tabuk, na Arábia Saudita, em 17 de fevereiro de 2023 Foto: Iman Al-Dabbagh / NYT

‘Como é lindo’

Quando Gibson contou para um amigo que ia viajar para a Arábia Saudita, ele a chamou de louca. Ela se preocupou com a possibilidade de ofender os sauditas — usando a roupa errada, comendo com a mão errada — mas assim que chegou percebeu que ninguém parece se importar com isso.

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“Estou absolutamente impressionada com a beleza deste lugar”, afirmou ela. “Porque eu achava que ia ver só areia.”

Israel e Egito possuem populações cristãs e dão boas-vindas a turistas cristãos há muito tempo, atraindo milhões de visitantes religiosos anualmente, muitos deles evangélicos americanos. A Arábia Saudita é um mercado nascente, mas várias agências de turismo já oferecem pacotes voltados para os cristãos.

Como a maioria das viagens similares, o pacote de Richardson — a US$ 5.199 por pessoa — leva os turistas ao local escolhido pelo príncipe Mohammed para a construção de uma megaprojeto inspirado na ficção científica: Neom, uma metrópole linear composta inteiramente por dois arranha-céus paralelos.

Petróglifos na região de Tabuk, na Arábia Saudita, que os cristãos acreditam poder representar uma cena de “adoração de bezerro” descrita no Antigo Testamento, em 17 de fevereiro de 2023 Foto: Iman Al-Dabbagh / NYT

Os projetistas de Neom prometem preservar sítios arqueológicos. Ainda assim, alguns turistas cristãos se preocupam.

“Eu queria ver a coisa com sua natureza intocada”, afirmou Michael Marks, de 52 anos, o farmacêutico do Colorado, que apressou seu plano de visita por causa do projeto.

Monte Sinai

Como muitos turistas cristãos, Marks se interessou no reino por meio da história contada por Ron Wyatt, um enfermeiro americano que popularizou a ideia de que o Monte Sinai fica na Arábia Saudita.

Arqueólogos bíblicos comumente localizam o Monte Sinai no Egito, apesar de haver outras teorias. Uma minoria aponta para os escritos do historiador romano Flavius Josephus sugerindo que Jebel al-Lawz, uma montanha no noroeste saudita, é a localidade bíblica. Há também folclore na região de que Moisés passou um tempo por lá. “Nenhuma evidência histórica ou arqueológica sustenta essas histórias”, escreveram arqueólogos sauditas em um artigo de 2002.

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Nos anos 80, Wyatt entrou clandestinamente na Arábia Saudita e acabou preso por isso. Ele fez uma série de afirmações duvidosas, afirmando que havia descoberto os restos de bigas egípcias ancestrais sob o Mar Vermelho.

Mesmo assim, suas ideias — inicialmente caracterizadas como crenças evangélicas extremas — se espalharam. Vários anos atrás, Ryan Mauro, um comentarista da Fox News que se autodescreve com analista de segurança, narrou um vídeo popular no YouTube, intitulado “Encontrando a montanha de Moisés”, no qual afirma: “Os sauditas têm ocultado evidências do Êxodo”.

Uma família beduína hospeda um grupo de turistas cristãos para almoçar na região de Tabuk, na Arábia Saudita, em 17 de fevereiro de 2023 Foto: Iman Al-Dabbagh/ NYT

Tais afirmações conspiratórias são pronunciadas com frequência em meio a narrativas islamofóbicas, mas as autoridades sauditas parecem ver pouca contradição em cortejar cristãos americanos conservadores. Fazem ouvidos moucos, por exemplo, diante do preconceito contra muçulmanos: declarações de Donald Trump como “Eu acho que o Islã nos odeia” não abalaram as relações calorosas do ex-presidente com o príncipe Mohammed durante o mandato do americano.

Mas os vínculos com esses grupos também produzem uma nova fonte de poder brando, cobiçado enquanto alternativa para conectar-se com americanos mesmo quando as relações formais entre EUA e Arábia Saudita estão turbulentas. Em 2018, semanas após o assassinato de Khashoggi, o príncipe recebeu uma delegação de líderes evangélicos dos EUA em Riad.

Evidências no deserto

Richardson organizou sua primeira excursão ao reino em 2019, quando os vistos de turistas começaram a ser emitidos. Homem barbado, com um senso de humor seco, ele foi criado em uma família católica não praticante, em Massachusetts. Como adolescente, Richardson foi um “hedonista bastante bem-sucedido”, brincou ele.

Mas, no início dos anos 90, Richardson se deparou com uma reunião de avivamento sob uma barraca no Tennessee e virou evangélico. “O Espírito Santo simplesmente se dirigiu a mim e disse, ‘Sua vida inteira não passa de uma mentira completa’”, afirmou ele.

Richardson ficou fascinado com as profecias a respeito do fim dos tempos e, em dois livros publicados mais de uma década atrás, argumentou que o Anti-Cristo será muçulmano, descrevendo o Islã como uma “ideologia totalitarista” com “origens satânicas”.

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Questionado a respeito de como concilia seus escritos com o que ele qualifica como um amor pelo Oriente Médio, Richardson afirmou que sua perspectiva mudou, descrevendo a si mesmo como um “conservador libertário” com uma atitude mais “viva e deixe viver”.

Em um dos últimos dias se sua excursão no reino, Richardson levou os turistas a um acampamento beduíno, onde os anfitriões ordenharam uma camela, despejando o líquido espumoso recolhido em um balde prateado em xícaras para os visitantes saborearem. Dentro de uma barraca decorada com tapetes cor de vinho, eles se banquetearam com tâmaras cobertas de manteiga fresca de leite de cabra e carne com arroz servidos sobre travessas grandes como candelabros. “É um enorme privilégio estar na vanguarda disso tudo”, afirmou ele, louvando o intercâmbio cultural.

Esse prazer, em si, não é o que leva Richardson ao reino; nem o lucro com as excursões, que são caras em um país onde turismo ainda é novidade. Como muitos outros turistas, Richardson é motivado por um ímpeto pela descoberta de provas da existência das histórias bíblicas, de caminhar sobre o território onde, acredita ele, esses episódios realmente ocorreram. As cenas do Êxodo lhe provocam assombro. Descobrir sinais de que essas histórias realmente aconteceram “seria o maior passo bíblico-sagrado adiante nos últimos dois mil anos”, afirmou ele. “Na minha opinião, todas as evidências estão aí nesse deserto.”

Conforme Luis Torres, de 54 anos, e sua mulher, Elinette Ramirez, de 55, planejavam sua viagem, eles quiseram marcar a ocasião: mandaram imprimir camisetas com a imagem de uma montanha coroada com as coordenadas de GPS em chamas de Jebel al-Lawz.

Para chegar ao local, o grupo viajou horas de carro e caminhou por um despenhadeiro marrom-dourado. “Eu quero dar a todos tempo de refletir e rezar”, afirmou Richardson.

Quando era criança, Ramirez teve dificuldade para se conectar com as histórias da Bíblia. Agora, ela e o marido viajaram de Porto Rico para ver a montanha onde, acreditam ambos, Deus entregou os Dez Mandamentos a Moisés.

O sol brilhava enviando seus raios até o fundo do vale conforme os turistas levantavam as mãos virando as palmas para o céu. “Aleluia! Cristo está chegando!”, bradaram eles. “A trombeta logo soará, e os céus vão se abrir.”

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Quando chegou a hora de partir, Gibson hesitou. Ela acabou se deixando levar, com o olhar fixo no vale, envolta em pensamentos sobre o divino. “Toda essa majestade”, afirmou ela, com cara lavada de lágrimas, “simplesmente tomou conta de mim”. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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