Opinião | A briga de Trump é contra os tribunais, e a coisa não vai acabar bem para o presidente

Republicano desafia e obstrui o Judiciário ao mesmo tempo que busca consolidar seu poder, mas as cortes não devem abrir mão do seu papel de interpretar a Constituição

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Por J. Michael Luttig (The New York Times)

O presidente Donald Trump não tardou em seu segundo mandato em declarar guerra ao Judiciário Federal dos Estados Unidos, à profissão jurídica no país e ao estado de direito. Trump provocou uma crise constitucional com seu estarrecedor ataque frontal contra o Terceiro Poder do governo e o sistema de Justiça americano. A vítima pode muito bem ser a democracia constitucional pela qual os americanos lutaram em sua Guerra de Independência contra a monarquia britânica há 250 anos.

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Trump anseia por essa guerra contra o Judiciário Federal e o estado de direito desde seu primeiro mandato. Ele prometeu se vingar do sistema de Justiça americano pelo que ele erroneamente acredita há muito tempo ser um uso como arma partidária do governo federal contra ele.

Não é segredo que Trump sustenta um ódio especial pelo sistema de Justiça porque as cortes o processaram legitimamente pelo que, segundo acusações do governo, constituiu os crimes de tentativa de anular a eleição presidencial de 2020 e de furto de documentos confidenciais da Casa Branca, que ele escondeu em Mar-a-Lago, obstruindo esforços do governo para recuperá-los. Trump escapou dos processos ao conquistar um segundo mandato, interrompendo seu caminho.

Donald Trump discursa no Salão Oval da Casa Branca. Presidente tem desafiado a Justiça e os limites do próprio poder.  Foto: Associated Press

Mas a menos que se faça de desentendido imediatamente e recue bem rápido, Trump não apenas mergulhará a nação mais profundamente numa crise constitucional, o que ele parece totalmente disposto a fazer, como também se verá cada vez mais prejudicado antes mesmo de sua já desvanecida lua de mel política acabar.

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A lista de particularidades contra Trump é longa e agourenta. Durante anos, Trump atacou violentamente juízes e ameaçou sua segurança. Recentemente, pediu o impeachment de um juiz federal que decidiu contra seu governo. Trump emitiu ordens patentemente inconstitucionais para prejudicar escritórios de advocacia e advogados que representam clientes que ele considera inimigos. Ele prometeu usar o Departamento de Justiça como arma contra seus oponentes políticos. E ignorou risonhamente ordens judiciais que é obrigado pela Constituição a seguir e aplicar.

Tem havido muita conversa nas semanas recentes sobre essa crise constitucional, na qual o presidente desafia e obstrui o Judiciário Federal ao mesmo tempo que busca consolidar seu poder. Os republicanos que controlam o Congresso já demonstraram sua fidelidade a Trump. Tudo o que resta para conter seus impulsos é o Judiciário independente dos EUA, que Alexander Hamilton definiu como “essencial” para a governança constitucional do nosso país. Uma nação sem Judiciário independente não é um lugar em que nenhum de nós deveria desejar viver, exceto talvez por Trump enquanto ele reside na Casa Branca.

Este mês, Trump jogou mais gasolina na fogueira que vem atiçando há muito contra o estado de direito.

Na semana retrasada, ele pediu o impeachment do juiz-chefe do Tribunal Distrital dos EUA para o Distrito de Columbia, James Boasberg, depois que o magistrado ordenou uma pausa na deportação de mais de 200 imigrantes venezuelanos, supostamente membros de gangues, para El Salvador.

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Para completar, Trump chamou Boasberg de “Juiz Lunático da Esquerda Radical, encrenqueiro e agitador”. Tudo isso porque o magistrado decidiu primeiramente determinar se o governo agiu corretamente ao invocar a Lei dos Inimigos Estrangeiros, de 1798, para deportar os imigrantes venezuelanos sem audiência judicial. Isso se chama devido processo, que é previsto pela Constituição para garantir que nenhuma pessoa seja privada de vida, liberdade ou propriedade sem um devido processo legal.

Em poucas horas, placas tectônicas da ordem constitucional se moveram sob os pés de Trump. O presidente do Supremo Tribunal dos EUA, John Roberts Jr. — chefe do Terceiro Poder do governo — repreendeu o presidente em uma rara mensagem. “Por mais de dois séculos tem-se estabelecido que o impeachment não é uma resposta apropriada à discordância sobre uma decisão judicial”, instruiu o magistrado.

Sem se curvar, Trump atacou o juiz Boasberg no dia seguinte em sua plataforma, Truth Social: “Se um Presidente não tem o direito de expulsar assassinos e outros criminosos do nosso País porque um Juiz Lunático da Esquerda Radical quer assumir o papel de Presidente, então nosso País está em apuros e destinado ao fracasso!”.

Ninguém quer que assassinos ou outros criminosos tenham permissão para permanecer neste país, mas para livrar-nos deles o presidente primeiro tem de seguir a Constituição. O juiz Boasberg não deseja assumir o papel de presidente; o presidente que deseja assumir o papel de juiz.

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Em audiência, num desdobramento posterior desse confronto entre o presidente e o Judiciário, o juiz Boasberg expressou ceticismo em relação ao governo usar um estatuto de guerra para deportar imigrantes sem o devido processo no qual eles tenham podido contestar se são membros de gangues, conforme o governo afirmou. “As ramificações políticas disso são incrivelmente problemáticas e preocupantes”, afirmou ele.

O juiz Boasberg também disse que planejava “chegar ao fundo” da questão para saber se o governo Trump violou sua ordem temporária contra as deportações.

Trump parece extremamente confiante, embora ilusoriamente, em relação a ser capaz de vencer essa guerra contra o Judiciário Federal, assim como esteve ilusoriamente confiante sobre ser capaz de vencer a guerra que ele mesmo instigou contra a democracia americana após a eleição de 2020.

Suprema Corte dos Estados Unidos, em Washington D.C. Em rara manifestação, a mais alta corte americana repreendeu Trump por pedir impeachment de juiz.  Foto: Eric Lee/The New York Times

A ideia em si de ter que se submeter ao seu inimigo, o Judiciário Federal, deve ser angustiante para Trump, que no mês passado proclamou: “Aquele que salva seu país não viola nenhuma lei”. Mas o Judiciário nunca abrirá mão de seu papel constitucional de interpretar a Constituição, não importa quantas vezes Trump e seus aliados peçam o impeachment de juízes que decidam contra ele. Conforme explicou o ex-presidente do Supremo Tribunal John Marshall, há quase 225 anos, no caso seminal Marbury versus Madison, “É enfaticamente campo e dever do departamento judicial dizer o que é lei”.

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Se Trump continuar tentando usurpar a autoridade dos tribunais, haverá luta, e caberá à Suprema Corte, ao Congresso e ao povo americano se apresentar e dizer basta. Conforme afirmou a Declaração de Independência, referindo-se ao rei britânico George III, “Um príncipe cujo caráter é de tal forma marcado por todos os atos que podem definir um tirano é inadequado para ser o governante de um povo livre”.

Trump parece ter esquecido que os americanos lutaram na Guerra da Independência para garantir sua autonomia em relação à monarquia britânica e estabelecer um governo de leis, não de homens, para que os americanos nunca mais fossem sujeitos a caprichos de um rei tirânico. Conforme escreveu Thomas Paine no panfleto “Senso Comum”, em 1776, “nos EUA a lei é o rei. Pois da mesma forma que em governos absolutistas o rei é a lei, em países livres a lei deve reinar; e ninguém mais”.

Se o presidente extrapolar sua autoridade em sua disputa com o juiz Boasberg, a Suprema Corte intervirá e afirmará seu poder constitucional indiscutível “de dizer o que é a lei”. Uma repreensão da mais alta corte do país em sua desejada guerra contra os tribunais federais poderá muito bem prejudicar a presidência de Trump e manchar seu legado.

E a declaração do ex-presidente do Supremo Tribunal John Marshall, de que é dever dos tribunais dizer o que é a lei, será a palavra final. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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Opinião por J. Michael Luttig

J. Michael Luttig foi nomeado pelo ex-presidente George H.W. Bush e serviu no Tribunal de Apelações dos EUA para o Quarto Circuito de 1991 a 2006

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