Na América do Sul somos o “país más grande do mundo”. Nossa diplomacia era conhecida pelo infalível slogan “Itamaraty no improvisa”. Várias vezes, ao dizer que era brasileiro, ouvi essa frase de nossos vizinhos. “O Brasil não é um país. É um continente, uma civilização”. Nossa música, a mais sedutora (a bossa nova) e a mais alegre (o samba). Nossa agroindústria é uma das maiores e mais competitivas. Somos a 9ª economia do mundo. Um país com esse perfil tem tudo para ser uma grande potência. O que falta para atingir esse almejado status? Na avaliação do ex-chanceler Celso Amorim, falta apenas superar o “complexo de vira-lata” (marca por ele atribuída à Política Externa Brasileira (PEB) de Fernando Henrique Cardoso) e projetar para o mundo uma “diplomacia ativa e altiva” (atributos da PEB de Lula e Dilma). Será verdade?
O Brasil tem uma história singular e a política externa foi um dos pilares fundamentais dessa construção: no século 19 fomos a única monarquia do continente; aquela ilha de estabilidade num mar de rebeliões que dilacerava a América Latina; uma extensa unidade territorial conquistada não nos campos de batalha, mas sim nas mesas de negociação. A grande figura da diplomacia – o Barão do Rio Branco – suplanta em popularidade o patrono do Exército – Duque de Caxias. Sua morte levou multidões às ruas, causou comoção nacional e fato inédito naquele ano de 1912 – o adiamento do carnaval.
Essas verdades inegáveis construíram o mito da grandeza do Brasil. Mas também esconderam as verdades de nossas fragilidades: o último a abolir a escravidão; o país que mais recebeu escravizados nas Américas; dezenas de rebeliões reprimidas na Regência e na República; o fim da monarquia proclamado por um golpe militar; uma longa república oligárquica; sete golpes de Estado militares; os maiores índices de desigualdade no mundo; um sistema político disfuncional; e, finalmente, uma democracia – mas tutelada pelos militares.
Esses traços de nossa história estão na origem de uma política externa pautada por destacada projeção regional e por considerável influência junto aos países em desenvolvimento. Essas duas vertentes foram preservadas graças a uma diplomacia profissional, orientada pelos paradigmas da autonomia e do desenvolvimento, e, com raras exceções, distanciada de partidos políticos e de alinhamento com as superpotências.
Distorções na diplomacia
O governo de Jair Bolsonaro, além das comprovadas ameaças à democracia, provocou a demolição dos princípios básicos de nossa diplomacia. Diante desse desastre, a vitória de Lula foi saudada, nacional e internacionalmente, com visível alívio e esperança. Entretanto, a política externa do atual governo tem provocado ampla frustração de expectativas, ao romper tanto com a tradição de distanciamento em relação às superpotências, como com o pragmatismo apartidário.
Essas duas distorções ficam particularmente visíveis no foco central da atual política externa: a aspiração de alcançar o status de grande potência e, em consequência, o abandono da condição de potência média, regional, com interesses globais.
Para parte importante da literatura especializada, um país que ambiciona atingir o status de grande potência é naturalmente levado a escolher lados. No caso brasileiro, isso se traduz no abandono do padrão histórico de distanciamento e na identificação com uma das superpotências – a China.
O Brasil tem inegáveis vantagens comparativas em termos de soft power. Entretanto, como lembra Buarque, embora o soft power seja ingrediente importante na política das grandes potências, nenhum país atingiu tal condição apenas com esse atributo e destituído de hard power.
Diplomacia brasileira
Busca por protagonismo
A política externa brasileira nos governos Lula e Dilma, seja nos momentos de visível êxito, seja nos casos de marcantes fracassos, sempre preservou um padrão paradigmático que assumiu centralidade ainda maior na atual gestão de Lula III – a busca de protagonismo e projeção internacional, destinada a assegurar ao país o status de grande potência.
O propósito deste artigo é examinar seis temas concretos em que a política externa dos citados governos assumiu posições com resultados relevantes para o país. Dois temas aqui focalizados tiveram, em nossa avaliação, resultados positivos, e quatro outros, negativos. A parte final do artigo examina a posição da política externa em relação a duas instituições – Brics e OCDE. Essa postura é considerada reveladora da aderência ao paradigma da busca do status de grande potência, no primeiro caso, e do abandono do paradigma do desenvolvimento, no segundo.
Assento permanente no Conselho de Segurança
Uma vertente importante dessa busca de status e reconhecimento como grande potência é a aspiração a um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU). Essa pretensão é justa, legítima e histórica – remonta à nossa aspiração, nos anos 1920, de ingressar no Conselho Executivo da Liga das Nações (semelhante ao CSNU).
O argumento central para uma cadeira permanente no CSNU é plenamente justificável – seu atual formato reflete a realidade de poder do pós-guerra, e não a atual. Dele estão ausentes a terceira maior economia – o Japão, o país mais populoso do mundo – a Índia, a grande potência europeia – a Alemanha, e a maior economia da América Latina – o Brasil.
Entretanto, uma aspiração legítima nem sempre é uma política correta. Esse é o caso da prioridade excessivamente alta ao ingresso como membro permanente do CSNU. Excessiva porque, embora legítima, é uma pretensão inalcançável no curto e médio prazos. A razão mais óbvia é que todos os pretendentes acima citados, contam com a contundente oposição de vizinhos também aspirantes a integrar o CSNU ou de seus atuais membros. Excessiva também porque essa aspiração tem determinado distorções em temas relevantes. Por exemplo, na política brasileira de direitos humanos. Embora de forma velada, no Conselho de Direitos Humanos (CDH) da ONU, o Brasil evita votar de forma divergente de Índia, Rússia e China, ou seja, um alinhamento com os países do Brics.
Além dos argumentos anteriores, obter um assento permanente no CSNU depende do reconhecimento atribuído ao Brasil pelos países com status mais elevado na comunidade internacional.
A percepção externa sobre o Brasil, entretanto, indica que o país está longe de ser aceito como grande potência, e que deu passos para trás nesse processo nos últimos anos
A ascensão econômica do Brasil
Em lugar de priorizar a busca de status e reconhecimento internacional por meio do protagonismo e do reconhecimento internacional, o caminho mais recomendável consiste em medidas destinadas a promover reformas na economia e no sistema político que possam contribuir para o hard power do país.
A percepção da comunidade de política externa (CPE) das grandes potências é que a melhor forma de um Estado como o Brasil (que não tem muito poder militar) atingir o nível de prestígio equivalente ao delas seria focar no desenvolvimento econômico
Em grande medida, esse foi o padrão do primeiro mandato de Lula e da metade do segundo, que deu continuidade à política econômica de Fernando Henrique, ao aprofundar, ampliar as políticas sociais e se beneficiar do boom das commodities, tendo como corolário expressivo crescimento econômico e efetivas políticas sociais.
Nesse contexto, a busca de projeção internacional do país – consistente com a transformação interna e um quadro externo favorável – teve sólidos resultados concretos. O país se projetou como uma das grandes economias emergentes, teve relevante papel na recuperação da economia internacional pós crise financeira de 2008, juntamente com China e Índia, reconhecido na cúpula de presidentes do G-20, que reuniu, entre outros, Obama e Lula.
O Brasil e as missões de paz da ONU
A crescente participação nas Operações de Manutenção de Paz da ONU trouxe relevante contribuição. Sobretudo a liderança brasileira da missão de paz no Haiti (Minustah), entre 2004 e 2017, foi reconhecida como um êxito diplomático para o país.
O país tem longo histórico nessas operações, que remonta à distante crise do Canal de Suez, em 1956, quando participou da Força de Emergência das Nações Unidas (UNEF). O Brasil já participou de cerca de 50 missões da ONU, seja missões de manutenção da paz, seja missões políticas especiais, com o envolvimento de aproximadamente 60 mil militares e policiais. Por ocasião do trágico terremoto de 2010 no Haiti, com o terrível saldo de 230 mil mortos, 18 brasileiros integrantes da missão brasileira naquele país perderam a vida, inclusive Zilda Arns, coordenadora da Pastoral da Criança.
Conforme ressaltado por Miguel Mikelli Ribeiro:
“Dentre os países do Sul Global, o Brasil tem um histórico importante de envolvimento em CMTs (Conflict Management Tools). O país é um exemplo de contribuidor frequente em operações de paz, inclusive liderando por mais de dez anos a missão de paz no Haiti.” “Mesmo que o Brasil não tenha uma capacidade militar expressiva, em comparação com as potências ocidentais, ele busca construir credenciais na agenda de paz e segurança”
O Brasil e o acordo nuclear fracassado no Irã
Em contraste com essas duas histórias de sucesso, a iniciativa turco-brasileira, objeto da Declaração de Teerã de 2010, firmada por Lula, Ahmadinejad e Erdogan, foi um exemplo claro de busca de protagonismo destituída de cálculo realista da política de poder.
Era compreensível o envolvimento da Turquia – país com significativo peso político no Oriente Médio e com interesse em ser admitido na União Europeia. Muito incompreensível era a participação do Brasil, sem importância expressiva na região, o que levou muitos países a interpretá-la apenas como uma irrefletida busca de protagonismo a qualquer preço.
A rapidez da rejeição dos P5+1( membros permanentes do CSNU mais a Alemanha) à Declaração de Teerã reflete o óbvio – as grandes potências não querem perder seu monopólio de decisão em questões de segurança e estratégia. O previsível fracasso ficou claro na contundente derrota de Brasil e Turquia na votação da questão no Conselho de Segurança da ONU. Mais óbvio ainda ficou o malogro em virtude do longo processo negociador do Acordo sobre o Programa Nuclear Iraniano, concluído, com a liderança de Obama, apenas em 2015.
Três anos depois, o Acordo – passo muito importante para reduzir a tensão regional – foi revogado por Trump, com consequências desoladoras para o Oriente Médio e para o Irã. Esses acontecimentos deixam claro o que era óbvio já em 2010 – dois países médios e desnuclearizados, Brasil e Turquia, nunca poderiam resolver a complexa questão do programa nuclear iraniano. As utopias têm um preço alto na história.
Essa avaliação negativa da Iniciativa turco-brasileira sobre o Programa Nuclear Iraniano é compartilhada por Mikelli Ribeiro.
“Os dois primeiros mandatos do presidente Lula foram marcados por uma busca de elevação do status brasileiro por diversos meios. …Dois exemplos, inclusive por resultados diversos, são ilustrativos nesse sentido: a participação na Minustah e a tentativa de um acordo nuclear entre Irã e o Ocidente. No primeiro caso, o Brasil liderou a missão de paz no Haiti por 13 anos (2004-20017). O saldo da participação brasileira é visto como positivo pela própria diplomacia. … Por outro lado, o governo Lula também procurou costurar um acordo com o Irã e o Ocidente para resolver o impasse sobre o programa nuclear daquele país. O resultado desse acordo foi a Declaração de Teerã. … Nesse caso, contudo, o resultado foi diverso. As grandes potências rejeitaram o acordo final, culminando com um saldo diplomático negativo para o país”.
A guerra na Ucrânia e a ambiguidade de Lula
Essa retrospectiva de sucessos e fracassos de nossa política externa criou expectativas de aprendizado com os erros do passado e, assim, de uma diplomacia esclarecida no atual governo Lula. Infelizmente esse não foi o caso.
As ambiguidades em nosso posicionamento com relação à guerra da Ucrânia, com as declarações do presidente agravando esse quadro, deixam claro que a busca de protagonismo está acima da defesa do interesse nacional. Essa atitude refletiu uma sobrevalorização da capacidade de uma potência média como o Brasil influenciar o rumo de uma guerra que pode selar o destino da segurança na Europa e no mundo. Ao se posicionar em diversos momentos mais favorável à potência invasora e mais crítico do Ocidente, Lula não contribuiu para elevar a credibilidade do Brasil junto à União Europeia e aos EUA, mas sim para consolidar seus laços com o Brics.
A diplomacia brasileira diante da guerra na Ucrânia reedita o desafio encarado pelo país 80 anos antes, na Segunda Guerra Mundial. Entretanto, ao contrário dos expressivos êxitos colhidos pela equidistância pragmática de Vargas, a atual reviravolta na PEB – ao abandonar o princípio da não intervenção e se inclinar em favor do invasor – tem o potencial de comprometer a exitosa trajetória diplomática brasileira.
Essa visão encontra respaldo na análise de Mikelli Ribeiro:
“Lula propôs a formação de um grupo de países pela paz … O presidente, no entanto, passou a oscilar entre posicionamentos que sugeriam neutralidade e outros que tendiam a ser vistos como mais condescendentes com a Rússia, indicando uma suposta responsabilidade compartilhada entre russos e ucranianos pelo conflito. Esse tipo de fala teve forte repercussão negativa no mundo ocidental, fazendo com que, por vezes, o presidente tivesse que reajustar os posicionamentos”(6).
Uma diplomacia presidencial impulsiva: A guerra Israel x Hamas
O Itamaraty atuou de forma correta na guerra entre Hamas e Israel, com propostas construtivas durante a presidência brasileira do CSNU. Apesar desse perfil, nossa política externa ficou marcada pela ambivalência, em função do recorrente contraste entre uma postura institucional equilibrada e declarações do presidente Lula geradoras de descrédito e desconfiança.
Na retórica presidencial era evidente a assimetria entre, de um lado, o reconhecimento dos bárbaros crimes de guerra israelenses, e, de outro, a falta de condenação, com o devido rigor, das atrocidades cometidas pelo Hamas.
Esse desvirtuamento de pilares da PEB encontrou seu clímax na desproporcional comparação entre a tragédia na Faixa de Gaza e o Holocausto. Essas impertinências verbais do presidente, somadas ao padrão de íntima relação do Brasil com o Irã, mereceram críticas generalizadas e terminaram por dar argumento ao hediondo regime de Netanyahu.
Assim, o gesto de Lula, paradoxalmente, fortaleceu Netanyahu, hostilizado por ampla maioria da população, político autoritário e que tem os dias contados com o fim do conflito. A infeliz declaração de Lula reflete personalismo, busca de protagonismo injustificável e acentua os descaminhos de uma política externa com importante patrimônio de realizações.
A prevalência da ideologia sobre o pragmatismo
Um exame da política externa de Lula III revela a ausência de uma estratégia que permita dar coerência a nossas posições não só no plano global, mas também em nossa região. Esse vácuo se reflete em posturas inexplicáveis da perspectiva do interesse nacional, como a resiliente defesa de regimes autoritários na Venezuela e na Nicarágua. Um corolário desse descaminho de nossa política externa é a incapacidade de contar com apoios regionais para retomar iniciativas anacrônicas como a Unasul e as vigorosas críticas dos mandatários de Uruguai, Paraguai e até mesmo do Chile à proposta brasileira de volta ao passado.
A pretensão de status de grande potência assume diversas outras dimensões e vem condicionando uma busca de protagonismo exagerado, sem prévia estratégia de política externa.
A ruptura de nossa política tradicional de distanciamento em relação às superpotências vem assumindo no governo Lula uma dimensão nova e preocupante – o alinhamento com o Brics e o afastamento da OCDE.
O Brics, nascido como um agrupamento de perfil essencialmente econômico, refletia as aspirações das economias emergentes, onde a influência dos cinco membros se difundia sem grandes disparidades. Entretanto, por seu crescimento exponencial, a China assumiu a hegemonia do Brics. Além disso, a crescente rivalidade com os EUA transformou o agrupamento em vetor muito mais geopolítico do que econômico.
Em contraposição ao Brics, a OCDE é a organização voltada para as melhores práticas, para a boa gestão das políticas públicas e para estratégias de inclusão social. O processo decisório é certamente muito mais horizontal que o do Brics. A expansão da OCDE em direção a novos membros resulta de um longo processo de aprimoramento da governança e de avanço democrático. Em contraste, a recente incorporação de seis membros ao Brics resultou da imposição da China, apesar da relutância inicial de Brasil e Índia. Dos seis novos membros, apenas um tem regime democrático – a Argentina.
Essa opção preferencial do Brasil pelo Brics é mais um ponto de inflexão de nossa política externa em favor de um alinhamento com a China, ou seja, mais uma demonstração de que a busca de status como grande potência exige a escolha de lados – China – e o abandono de nossa tradição de autonomia em relação às superpotências.
Em síntese, a busca por status e prestígio internacional, por meio do envolvimento em numerosas iniciativas e sem uma estratégia definida, tem produzido uma política externa muitas vezes errática, com busca desenfreada por protagonismo e em detrimento do interesse nacional. Nesse sentido, retomando o título desse artigo, a superação do “complexo de vira lata” e a passagem para uma “diplomacia ativa e altiva” não significa evolução de nossa política externa. Ao contrário, talvez represente retrocesso. O primeiro qualificativo – ativa – pode levar ao ativismo, o segundo – altiva – pode conduzir à soberba. Nenhum desses dois padrões são atributos de uma política externa virtuosa.
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