WASHINGTON — Conforme o líder máximo da China, Xi Jinping, preparava-se para encontrar com o presidente russo, Vladimir Putin, em Moscou, autoridades chinesas classificaram sua viagem como uma missão de paz, em que o chinês buscaria “desempenhar um papel na promoção de negociações” entre Rússia e Ucrânia, segundo colocou um porta-voz do governo de Pequim. Mas autoridades americanas e europeias estão atentas a algo completamente diferente: se Xi jogará gasolina na guerra em escala total que Putin iniciou mais de um ano atrás.
Autoridades americanas afirmam que a China considera fornecer armas — principalmente projéteis de artilharia — para a Rússia usar na Ucrânia. E mesmo um pedido de Xi por um cessar-fogo significaria um esforço para fortalecer a posição de Putin no campo de batalha, afirmam eles, deixando a Rússia em controle de mais território do que quando a invasão começou.
Um cessar-fogo agora seria “efetivamente a ratificação da conquista russa”, afirmou o porta-voz da Casa Branca, John Kirby, na sexta-feira. “Isso de fato daria reconhecimento aos ganhos russos e sua tentativa de conquistar território de seu vizinho à força, permitindo às tropas russas continuarem ocupando território soberano da Ucrânia”.
“Seria um episódio clássico da cartilha da China”, acrescentou ele, se as autoridades chinesas saírem dessa reunião alegando que “só nós estamos pedindo um fim para os combates enquanto ninguém mais está”.
Em um artigo publicado em um jornal russo, no domingo, Xi declarou que a China tem perseguido “esforços para promover reconciliação e negociações de paz”.
O ceticismo em relação a um dos objetivos declarados de Xi é disseminado em Washington e algumas capitais europeias. Agências de inteligência americanas concluíram que as relações entre China e Rússia se aprofundaram durante a guerra, mesmo enquanto a Rússia se isolou em relação a muitos outros países.
Chineses e russos continuam a realizar exercícios militares conjuntos, e Pequim se uniu a Moscou em suas denúncias constantes à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). A China continua uma das maiores importadoras do petróleo russo, o que tem ajudado a Rússia a financiar sua invasão.
Mais sobre a guerra na Ucrânia
Autoridades chinesas não condenaram a invasão em nenhum momento. Em vez disso, afirmaram ambiguamente que todas as nações devem respeitar a soberania e a integridade territorial das demais — e trabalharam com diplomatas russos para bloquear declarações internacionais condenando a guerra, incluindo nas cúpulas do Grupo dos 20, na Índia, em fevereiro e março.
Ainda que algumas autoridades chinesas considerem a guerra de Putin um elemento desestabilizador, elas reconhecem uma prioridade maior em política externa: a necessidade de escorar a Rússia para que os dois países possam apresentar uma frente unida contra seu adversário percebido, os Estados Unidos.
Xi evidenciou suas visões quando afirmou anteriormente este mês, em uma reunião política anual em Pequim, que “os países ocidentais liderados pelos EUA implementaram ampla contenção, cerco e supressão da China, que ocasionaram desafios severos para o desenvolvimento do nosso país”.
Mas a China permanece firmemente ancorada na economia global, e Xi e seu alto-escalão não querem ser vistos como atores malignos na arena global, especialmente aos olhos da Europa, que é uma importante parceira comercial. Alguns analistas afirmam que Xi vestiu o manto do pacificador, afirmando que sua missão é pôr fim à guerra, para dar cobertura aos esforços de fortalecer sua parceria com Putin, que na sexta-feira foi acusado de crimes de guerra formalmente pelo Tribunal Penal Internacional, que emitiu um mandado de prisão contra o líder russo.
Xi e Putin têm uma forte afinidade pessoal e se encontraram 39 vezes desde que Xi ascendeu à posição máxima de liderança na China, em 2012. Putin chamou Xi de “querido e velho amigo” em um artigo publicado em um jornal chinês, no domingo, afirmando que ambos desfrutam da “mais cálida das relações”.
Alguns analistas afirmam que a China ter publicado, no mês passado, uma declaração de 12 pontos expressando princípios amplos sobre a guerra foi uma tentativa de criar uma aparência de neutralidade durante o planejamento da viagem de Xi.
“Acho que a China está tentando enevoar o panorama ao dizer que não estamos lá para apoiar a Rússia, mas para apoiar a paz”, afirmou a acadêmica Yun Sun, especialista em China do Centro Stimson, em Washington.
“Há uma necessidade intrínseca da China de manter ou proteger a saúde de sua relação com a Rússia”, afirmou ela, acrescentando que uma graduada autoridade lhe disse que a geopolítica e a intransigência dos EUA estão motivando o posicionamento de Pequim — não amor pela Rússia.
Sun afirmou que a recente mediação de Pequim em uma reaproximação diplomática inicial entre Arábia Saudita e Irã impulsionou as impressões da China como pacificadora. Mas aquela situação foi completamente diferente da guerra na Ucrânia — as duas nações do Oriente Médio já empreendiam negociações havia anos para tentar reiniciar diplomacia formal, e a China entrou quando ambos os lados já buscavam um acordo. A China não é parceira próxima de nenhum dos países, mas possui um interesse econômico muito específico para evitar que as hostilidades entre eles escalem: os chineses compram grandes quantidades de petróleo de ambos.
Parceria ‘sem limites’
Quando Putin visitou Xi em Pequim pouco antes do início da guerra na Ucrânia, em fevereiro de 2022, seus governos proclamaram uma parceria “sem limites”, em um comunicado de 5 mil palavras. Eles se encontraram novamente em setembro em uma conferência de segurança em Samarcanda, Usbequistão. Xi não conversou com o presidente da Ucrânia, Volodmir Zelenski, desde que a guerra começou e não solicitou sua posição em relação a negociações de paz.
Zelenski afirmou que só aceita negociar paz se Putin retirar suas tropas do território ucraniano. Isso inclui a Península da Crimeia, que o Exército russo tomou em 2014, e a região do Donbas, onde, naquele mesmo ano, tropas russas atiçaram uma insurgência separatista pró-Moscou.
Zelenski afirmou que responderia positivamente a uma oportunidade de conversar com Xi, e algumas autoridades ucranianas têm esperança de que a China eventualmente exercite sua influência para convencer Putin a retirar suas tropas. Mas a China não indicou que pretende agir nesse sentido.
Na quinta-feira, o ministro chinês de Relações Exteriores, Qin Gang, conversou pelo telefone com seu homólogo ucraniano, Dmitro Kuleba, e enfatizou que as partes em guerra deveriam “retomar negociações de paz” e “retornar para o caminho do acordo político”, segundo um sumário da chamada fornecido pelos chineses.
Em entrevista à BBC, antes da visita de Xi ser anunciada oficialmente, Kuleba disse acreditar que a China não está disposta nem a armar a Rússia nem promover a paz. “A visita a Moscou é em si uma mensagem, mas não acho que terá nenhuma consequência imediata”, afirmou ele.
Analistas em Washington concordam. “Eu não acho que China possa servir como pivô de algum processo de paz na Ucrânia capaz de avançar”, afirmou Ryan Hass, ex-diplomata americano na China e ex-autoridade da Casa Branca, que hoje atua como pesquisador da Brookings Institution.
Hass acrescentou, porém, que a China teria um papel enquanto parte signatária ou em um grupo garantidor de qualquer acordo de paz e seria importante para a reconstrução da Ucrânia. “Acredito que Zelenski entende isso, e por isso tem se mostrado disposto a exercitar tanta paciência com a China e Xi, pessoalmente”, afirmou ele.
Autoridades europeias têm tido atitudes diversas em relação à China, e algumas priorizam preservar as relações com Pequim. Mas o alinhamento da China com a Rússia ocasionou crescentes suspeitas e hostilidades em muitos cantos da Europa. Na sexta-feira, algumas autoridades reagiram cautelosamente ao anúncio da viagem de Xi a Moscou — considerando a visita mais um sinal da amizade, ou até de uma aliança, com a Rússia, assim como um esforço da China em se apresentar como mediadora na guerra.
Wang Yi, a mais graduada autoridade de política externa da China, enfatizou a necessidade de negociações de paz na Conferência de Segurança de Munique, no fim do mês passado, antes de passar por Moscou. Ele usou uma terminologia que parecia destinada a distinguir os países europeus em relação aos EUA.
“Nós precisamos pensar com calma, especialmente nossos amigos na Europa, a respeito de quais esforços devemos fazer para acabar com a guerra; que ordenamento deveria haver para ocasionar paz duradoura na Europa; que papel a Europa deveria desempenhar para manifestar sua autonomia estratégica”, afirmou ele.
Wang Yi sugeriu que Washington quer que a guerra continue para enfraquecer a Rússia. “Algumas forças podem não querer ver negociações de paz se materializar”, afirmou ele. “Eles não se importam se os ucranianos vivem ou morrem, nem com os problemas para a Europa. Eles devem ter objetivos estratégicos maiores do que a própria Ucrânia. Esta guerra não deve continuar.”
Mas a declaração de 12 pontos da China não soou bem na Europa. E muitas autoridades europeias, assim como da Ucrânia e dos EUA, estão convencidas de que as negociações iniciais de um acordo de paz cobrarão soberania ucraniana.
Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, afirmou que a posição da China não é de nenhuma maneira neutra. “Não se trata de um plano de paz, mas de princípios que eles compartilharam”, afirmou ela sobre a declaração da China. “Você tem de considerá-los em um pano de fundo. E esse pano de fundo é que a China tomou partido, firmando, por exemplo, uma amizade ilimitada pouco antes da Rússia iniciar sua invasão à Ucrânia.”
As denúncias regulares da China contra a Otan causam indignação em autoridades europeias. Em seu documento de posicionamento, a China afirmou que “a segurança na região não deveria ser alcançada por fortalecimento ou expansão de blocos militares” — uma declaração que apoia a alegação de Putin de que ele foi obrigado a invadir a Ucrânia por causa de ameaças que incluem a expansão da Otan.
A posição chinesa “se fundamenta em um foco equivocado sobre os ditos ‘interesses legítimos e preocupações de segurança’ das partes, implicando uma justificativa para a invasão ilegal da Rússia e confundindo papéis de agressor e agredido”, afirmou Nabila Massrali, porta-voz para assuntos internacionais e políticas de segurança da União Europeia.
O secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, colocou de maneira mais simples: “A China não tem muita credibilidade”, especialmente porque “foi incapaz de condenar a invasão ilegal à Ucrânia”. /TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
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