A inflamada concorrência tecnológica entre Estados Unidos e China se expandiu para uma nova esfera este ano, conforme ferramentas populares de inteligência artificial, como ChatGPT, tornam a inteligência artificial (IA) parte da vida cotidiana.
De chatbots a carros autônomos, as duas maiores economias do mundo agora disputam para desenvolver as tecnologias mais modernas de IA.
O desenvolvimento chinês de inteligência artificial fica muito atrás de seus concorrentes ocidentais em muitos campos, afirmam analistas. Mas há uma área em que Pequim superou Washington: regular a indústria de IA.
As autoridades chinesas têm sido tão proativas a respeito de regular alguns usos da IA, especialmente os que permitem ao público em geral criar seus próprios conteúdos, que observância às regras tornou-se um grande desafio para as empresas do país.
Algumas empresas chinesas chegaram ao ponto de criar regras próprias. A rede social Douyin, versão chinesa do TikTok, exige que material gerado por IA seja rotulado e que qualquer um com perfil na plataforma registre sua identidade real.
Conforme o uso de IA explode, autoridades reguladoras em Washington e todo o mundo tentam encontrar maneiras de lidar com possíveis ameaças à privacidade, ao emprego, à propriedade intelectual e até à própria existência humana.
O líder da maioria no Senado, o democrata Charles Schumer, pediu no mês passado que o Congresso adote regulações “abrangentes” sobre a indústria de IA.
Mas também existem preocupações de que colocar qualquer limite à tecnologia nos EUA faria com que empresas chinesas assumissem a liderança no setor.
Conheça um resumo das prioridades da China em relação à IA e veja como Pequim está regulando essa nova tecnologia.
Em que ponto está a indústria chinesa de IA?
Empresas chinesas têm investido em IA há anos — espalhando câmeras de vigilância nas ruas das cidades, por exemplo, chegando a usar reconhecimento facial para monitorar até o uso de papel higiênico em banheiros públicos — e há muito tempo estão na vanguarda da tecnologia de vigilância.
Mas, em relação a outros tipos de IA, as empresas chinesas estão anos atrás de suas concorrentes internacionais.
Isso se deve em parte aos estritos controles do governo do Partido Comunista Chinês sobre informação e comunicações.
Em vez de colocar foco em tecnologias de IA que permitam ao público criar conteúdos únicos, como chatbots e geradores de imagens, as empresas chinesas têm se dedicado a desenvolver tecnologias com usos comerciais claros, como tecnologia de vigilância.
Como resultado, em outras áreas de IA, como os grandes modelos de linguagem que sustentam os chatbots, as empresas chinesas estão tendo de construir amplamente em cima de modelos desenvolvidos fora da China.
“Muitas empresas chinesas têm menos financiamento e menos margem para investir em desenvolvimento fundacional de IA, então muitas vezes têm de seguir alguma trajetória aberta por empresas americanas”, afirmou Jeff Ding, professor-assistente de ciência política da Universidade George Washington, que estuda a competição em IA entre EUA e China.
Regulação do setor em nos EUA faria empresas chinesas assumirem a liderança?
Em um estudo recente, Ding constatou que a maioria dos grandes modelos de linguagem desenvolvidos na China estava aproximadamente dois anos atrás dos modelos desenvolvidos nos EUA, uma desvantagem que seria difícil compensar — mesmo se as empresas americanas tivessem de se ajustar a regulações.
Esse lapso também dificulta para as empresas chinesas atrair os melhores talentos da engenharia. Muitos prefeririam trabalhar em empresas que contam com os recursos e a flexibilidade de experimentar em áreas inovadoras da pesquisa.
Restrições de acesso aos chips mais avançados, necessários para a execução dos modelos de IA, intensificaram essas dificuldades.
Especialistas afirmam que, enquanto debatem como regular IA de uma maneira que limite possíveis danos, os legisladores em Washington têm chance de descobrir algo que escapou a Pequim: uma maneira de balizar o rumo da tecnologia sem limitar seu desenvolvimento futuro.
Como o desenvolvimento chinês de IA foi afetado pelas restrições dos EUA ao acesso da China aos chips mais modernos?
No fim do ano passado, o governo Biden restringiu a venda para a China de chips produzidos em qualquer lugar do mundo com equipamento americano. Washington afirmou que o movimento foi necessário para evitar que a tecnologia americana fosse usada para aplicações militares na China ou chegasse até a Rússia.
Isso dificultou para empresas de tecnologia chinesas acessar os chips mais avançados, que executam modelos mais complexos de IA. Pequim classificou as medidas como abusos destinados a enfatizar a “hegemonia tecnológica” dos EUA.
Uma pesquisa recente identificou 17 grandes modelos de linguagem na China que dependiam de chips Nvidia e apenas três que usavam chips de fabricação chinesa.
Enquanto Pequim se esforça para produzir domesticamente chips de nível equiparável aos de tecnologia americana, as empresas chinesas de tecnologia têm de conseguir seus chips da maneira que puderem — incluindo em um mercado clandestino que floresceu em Shenzhen, onde, de acordo com a Reuters, os chips Nvidia mais avançados são encontrados à venda por aproximadamente US$ 20 mil a unidade, mais que o dobro do preço pago por empresas de outras partes.
Prioridades da China e seus maiores avanços em IA
Apesar dos obstáculos, as empresas chinesas de IA realizaram grandes avanços em alguns tipos de tecnologia de IA, incluindo reconhecimento facial, reconhecimento de modo de andar e realidade virtual e artificial.
Essas tecnologias também alimentaram o desenvolvimento da vasta indústria chinesa de vigilância, concedendo às gigantes chinesas da tecnologia uma vantagem que as beneficia no mundo inteiro, como em contratos da Huawei para instalação de vigilância inteligente em capitais como Belgrado e Nairóbi.
Empresas de tecnologia nos EUA e outros países democráticos têm demonstrado menor interesse em desenvolver esse lado da IA, afirmou Helen Toner, diretora de estratégia do Centro para Segurança e Tecnologia Emergente da Universidade de Georgetown. “E na China o governo abriu as portas às empresas e lhes disse, ‘Por favor, tenham acesso aos nossos gigantescos bancos de dados de reconhecimento facial e avancem o mais rapidamente que puderem’”, afirmou ela.
Enquanto empresas chinesas de tecnologia dobraram a aposta nesse tipo de IA, as americanas estavam desenvolvendo tecnologias como chatbots destinados ao entretenimento e a colocar ferramentas criativas nas mãos do público.
Regulação da indústria
A estratégia de Pequim para regular a IA prejudicou a capacidade das empresas chinesas de inovar, afirmam analistas e membros da indústria.
Empresas que desenvolvem IA na China têm de atender leis específicas sobre direitos de propriedade intelectual, proteção de dados pessoais, algoritmos recomendados e conteúdos sintéticos, também conhecidos como deep fakes. Em abril, as autoridades reguladoras também lançaram um conjunto de regras para IA generativa, a tecnologia por trás do gerador de imagens Stable Diffusion e de chatbots como ChatGPT, da OpenAI, e Bard, do Google.
As empresas chinesas também têm de garantir que conteúdo gerado por IA esteja em acordo com o rígido regime chinês de censura. Empresas de tecnologia chinesas, como Baidu, passaram a filtrar conteúdo que contraria essas regras. Mas isso limitou sua capacidade de testar os limites do que a IA é capaz.
“Pode-se dizer muita coisa a respeito dos desenvolvedores chineses de IA — exceto que eles podem construir o que desejarem”, afirmou Toner.
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Nenhuma empresa chinesa de tecnologia pôde lançar um modelo grande de linguagem na escala do ChatGPT da OpenAI, com a empresa pedindo ao público em geral para brincar com o modelo de IA e testá-lo, afirmou Ding, o professor da Universidade George Washington.
“Esse nível de liberdade não foi permitido na China em parte porque o governo chinês está muito preocupado a respeito das pessoas criarem conteúdos sensíveis politicamente”, afirmou Ding.
O que Washington tem a aprender com a regulação chinesa
Apesar das regulações de Pequim terem criado grandes obstáculos para empresas chinesas de tecnologia, analistas afirmam que elas contêm vários princípios importantes, que têm algo a ensinar para Washington — como proteger dados pessoais, rotular conteúdo gerado por IA e alertar o governo se alguma IA desenvolver capacidades perigosas.
A regulação da IA nos EUA poderia se esquivar facilmente dos modos pesados de Pequim e ao mesmo tempo evitar discriminação, proteger os direitos das pessoas e cumprir as leis existentes, afirmou Johanna Costigan, pesquisadora associada do Asia Society Policy Institute.
“É possível haver um alinhamento entre regulação e inovação”, afirmou Costigan. “Mas a questão é estar à altura da ocasião que este momento representa: nós nos importamos ao ponto de proteger as pessoas que estão usando essa tecnologia? Porque as pessoas estão usando, quer o governo as regule quer não.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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