O primeiro-ministro israelense, Binyamin Netanyahu, desencadeou o que os críticos chamaram de ataque em grande escala à democracia de seu país, e agora se encontra sob cerco.
Nos últimos quatro meses, centenas de milhares de israelenses marcharam contra os planos de seu governo de extrema-direita de reformar o sistema judiciário de Israel. Um plano de controle do governo sobre os tribunais que faz parte das agendas dos nacionalistas ultraortodoxos e de direita na coalizão de Netanyahu, mas que também desencadeou uma profunda reação contra a suposta destruição das normas democráticas que isso acarreta.
No cenário mundial, onde Netanyahu costuma se sentir mais confortável, o primeiro-ministro israelense foi humilhado. Seus planos foram repreendidos pelo presidente dos EUA, Joe Biden, e líderes na França, Alemanha e Reino Unido. Os protestos ressaltaram as exasperações em Washington com Netanyahu, bem como nas piores relações entre EUA-Israel em quase uma geração. E em casa, a crescente oposição criou rachaduras no partido de direita Likud, que Netanyahu dominou por anos.
No sábado, 25, o ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, pediu que a reforma fosse congelada, já que centenas de reservistas boicotaram seu treinamento e membros do Exército israelense se juntaram aos protestos. “Isso representa uma ameaça clara, imediata e tangível à segurança do Estado”, disse ele em comunicado. “Pelo bem da segurança de Israel, pelo bem de nossos filhos e filhas, o processo legislativo deve ser interrompido.”
O apelo de Gallant, ecoado por dois outros legisladores do Likud, levantou a perspectiva de que a coalizão de Netanyahu pode não conseguir aprovar a legislação com sua pequena maioria de quatro cadeiras no Knesset, o parlamento. No domingo, 26, Netanyahu demitiu Gallant, aumentando as apostas em uma crise crescente. À noite, multidões se reuniram no Knesset e a polícia disparou canhões de água para dispersar os manifestantes do lado de fora da residência de Netanyahu. Eles gritavam “democracia!”.
Há muitas razões pelas quais Netanyahu se encontra nessa situação. Em Washington, os partidários liberais de Israel enfatizam a própria vontade implacável de poder do primeiro-ministro. Ele enfrenta três processos em andamento envolvendo várias acusações de corrupção e acredita-se que esteja planejando uma manobra que possa tirá-lo da enrascada.
“Uma das teorias mais repetidas nas redes sociais e nos programas de televisão é que ele se preocupa menos em curar o país do que em evitar processos, e espera que a perspectiva de juízes escolhidos a dedo o ajude a afastar as acusações de corrupção que o perseguem há anos”, escreveu meu colega Steve Hendrix no The Washington Post. Ele acrescentou que também a lendária astúcia de Netanyahu possa ter “perdido o passo”.
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“É difícil de entender — ele sabe o dano que está sendo causado”, disse Dan Ben-David, presidente da Shoresh Institution e economista da Universidade de Tel-Aviv. “Como o primeiro-ministro mais antigo da nossa história, ele deveria se preocupar com seu legado, que agora está queimando”.
Aviv Bushinsky, ex-chefe de gabinete de Netanyahu, disse ao The Washington Post: “Minha opinião é que ele perdeu o controle. Ele não imaginava que haveria tanta objeção nas ruas e no mundo.”
Se Netanyahu perdeu o controle, é porque o redemoinho que ele desencadeou é muito maior do que ele. Para chegar ao poder, ele juntou facções extremistas de colonos de extrema-direita e as trouxe para o centro de sua coalizão. Ele também se apoiou fortemente nos partidos ultraortodoxos, que veem as reformas judiciais propostas como um veículo fundamental para impulsionar seu projeto religioso na sociedade israelense. Ele deu impulso a uma agenda iliberal de extrema direita que vem ganhando força há anos.
Os protestos em massa em Tel Aviv e outras cidades, frequentados por israelenses mais abastados e seculares, são em parte um reflexo de uma profunda divisão ideológica dentro do país. Os planos legislativos do governo estão “quebrando o equilíbrio muito delicado entre a corrente dominante de Israel e os ultraortodoxos. Os manifestantes entenderam que dependem de uma sociedade liberal e próspera com um exército forte”, disse Yofi Tirosh, vice-reitor de direito da Universidade de Tel Aviv. minha colega Shira Rubin.
Mas alguns analistas da esquerda israelense apontam para um conjunto ainda mais profundo de forças em jogo. Milhões de palestinos vivem sob controle militar de Israel, privados de muitos dos mesmos direitos concedidos a seus vizinhos israelenses. Sua mera existência lança à sombra quaisquer debates substantivos sobre o que representa a democracia israelense, especialmente quando você considera como que “os palestinos como povo não existem de fato”, como disse Belazel Smotrich, um líder colono de extrema-direita que se tornou membro importante do gabinete de Netanyahu com poderes administrativos sobre a Cisjordânia ocupada. E não é por acaso que as terras palestinas e as aspirações políticas estão entre as primeiras coisas na mira de Netanyahu e seus aliados de extrema-direita enquanto eles elaboram seus planos legislativos.
“Enquanto os manifestantes – muitos deles entre os mais privilegiados da sociedade israelense – caminham pelas ruas exigindo o ‘Estado de direito’ e a ‘democracia’, as forças israelenses estão demolindo casas palestinas ao lado dos colonos que estão aterrorizando os palestinos; negando a liberdade de movimento e reunião; mantendo pessoas em detenção prolongada sem julgamento; matando manifestantes desarmados; realizando tortura e deportando ativistas palestinos”, escreveu a jornalista israelense-americana Mairav Zonszein. “E dentro de Israel, os cidadãos palestinos enfrentam discriminação estrutural e desigualdade sob uma política explícita que prioriza os direitos dos judeus.”
Gershon Baskin, um ativista pela paz israelense, marchou recentemente nos protestos antigovernamentais com uma placa que dizia: “Não há democracia com ocupação”.
“Nenhum israelense honesto pode afirmar que o controle militar sobre milhões de palestinos, sem direitos civis, humanos e políticos mais básicos, pode realmente ser chamado de democracia”, escreveu Baskin em um artigo de opinião no Jerusalem Post.
“Embora tantos israelenses tenham finalmente despertado para as distorções de nossa democracia e as ameaças a todos nós”, acrescentou, “talvez eles agora também acordem para a necessidade de confrontar o núcleo central de nossa existência como uma sociedade liberal moderna, em que deve haver plena igualdade para todos aqueles que vivem sob o mesmo regime”.
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