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Americas Quarterly: Uma crise se aproxima dos líderes latino-americanos de esquerda

Social-democratas governam atualmente grande parte da região — mas anti-incumbentes, partidos fracos e outras facções logo poderão transformá-los em uma espécie ameaçada

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Por Will Freeman*

Agora, já é quase uma lei da natureza: na América Latina, incumbentes — e seus partidos — não se reelegem. Partidos que ocupam o poder venceram apenas 5 entre 31 eleições presidenciais desde 2015, excluídas as votações manipuladas e injustas na Venezuela e na Nicarágua.

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Agora, uma onda anti-incumbentes se aproxima da esquerda. Desde 2019, partidos e presidentes de esquerda conquistaram o poder praticamente em toda região, causando murmurinho a respeito de uma onda rosa latino-americana. Mas candidatos de centro e de direita estão à frente nas pesquisas sobre as eleições de outubro no Equador e na Argentina. Mesmo no México, onde muitos pensaram que o partido Morena, de Andrés Manuel López Obrador, rumaria para a vitória nas eleições do próximo ano, uma candidata de oposição, Xóchitl Gálvez, está posicionada para fazer o partido incumbente suar para continuar no poder.

“Daqui a alguns anos a gente volta”, podem pensar muitos na esquerda e centro-esquerda. De fato, anti-incumbência significa que a trajetória do pêndulo político da região fica cada vez mais curta. Mas três tendências a longo prazo também tornam a América Latina terreno cada vez mais hostil para a esquerda, especialmente para a centro-esquerda social-democrata que se espalhou vastamente durante o ciclo político mais recente.

Presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador, fala com a imprensa na Cidade do México, 06 de setembro de 2023.  Foto: EFE/Sáshenka Gutiérrez

O caso da social-democracia latino-americana significaria o fim de um dos modelos políticos que mais beneficiaram a região historicamente — e poderia abrir a porta para alternativas mais reacionárias e radicais.

A virada social-democrata

Desde 2019, a América Latina se voltou para a esquerda, mas uma esquerda diluída. A atual safra de presidentes de esquerda é decididamente mais moderada do que a anterior — mais como o ex-presidente uruguaio José Mujica do que Hugo Chávez. Durante a primeira maré rosa, que varreu a região entre 1998 e 2015, o modelo chavista foi popular: vários presidentes surfaram nos preços altos das commodities e tentaram reformular instituições de Estado e suas economias ou enfrentar cara a cara os Estados Unidos. Mas, de 2015 a 2018, eleitores fartos de baixo crescimento e corrupção (e temendo uma repetição das viradas autoritárias da Venezuela e da Nicarágua) mandaram a esquerda pastar.

A maioria dos partidos de esquerda parece ter entendido a mensagem. Quando eles começaram a vencer eleições novamente, na Argentina, na Bolívia e no Brasil, foi por terem moderado suas posições. O socialismo do século 21 não está com nada; os Estados de bem-estar social do século 21 estão com tudo. Mas planos para avançar com reformas social-democráticas não avançaram tanto, e mesmo em lugares como o Chile, onde governos de centro-esquerda foram bem-sucedidos no passado, há dificuldades neste momento.

Gustavo Petro, Gabriel Boric, Alberto Fernández e Luis Arce tiveram dificuldades para realizar reformas que prometeram. Até Luiz Inácio Lula da Silva, que ainda tem o vento ao seu favor, enfrentou reveses no Legislativo. Parte disso se explica, certamente, pelos preços mais baixos das commodities, pelo cinto fiscal mais apertado, pela pandemia e suas repercussões e, em alguns casos, por inexperiência na política. Mas isso não é tudo. O enfraquecimento dos partidos políticos da região, o ritmo acelerado das campanhas e o aumento na criminalidade apresentam desafios particulares para a esquerda.

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Presidente da Colômbia, Gustavo Petro, convoca apoiadores e busca apoio nas ruas para aprovar reformas a um mês das eleições regionais, Bogotá, Colômbia, 26 de setembro de 2023.  Foto: JUAN BARRETO / AFP

O partido acabou

Quando a esquerda conquistou massivamente pela primeira vez o poder na América Latina, nos anos 2000, os partidos políticos da região eram enormes. Chávez, Rafael Correa, Evo Morales, Lula, Ricardo Lagos e Mujica eram diferentes entre si na maioria dos aspectos, mas todos compartilhavam uma qualidade: tinham partidos ou movimentos sociais fortes por trás, fortalecendo suas mãos conforme negociavam com (ou confrontavam abertamente) sua oposição.

Mas na década de 2010 a organização política começou a ruir. Partidos de toda a região enfraqueceram. Movimentos sociais abriram caminho para protestos espontâneos e intermitentes organizados nas redes sociais. López Obrador, Boric, Petro, o ex-presidente peruano Pedro Castillo e o presidente eleito da Guatemala, Bernardo Arévalo, venceram eleições representando coalizões ou partidos novos, frouxamente organizados e sem apoio de grandes movimentos sociais. Exceto na Bolívia, nenhum presidente de esquerda eleito recentemente assumiu com maioria no Legislativo.

Isto é um dilema profundo para presidentes de centro-esquerda. Suas propostas — reformar leis tributárias, expandir benefícios sociais ou lançar transições verdes — exigem maiorias que eles simplesmente não têm. Vários presidentes forjaram pactos com oponentes conservadores, que têm custos e nem sempre duram. Os conservadores, que governaram uma ampla fatia da América Latina de 2015 a 2020, também enfrentaram dificuldades por divisões no governo, mas seus planos de mudança legislativa não eram tão grandiosos.

Eleições TikTok

As eleições latino-americanas em 2023 parecem completamente diferentes de disputas de décadas passadas, com campanhas que ocorrem no TikTok tanto quanto na vida real, postulantes bem colocados desaparecendo no último minuto e candidatos antes desconhecidos ascendendo. Esse novo modus operandi — combinado com a frustração dos eleitores com o status quo — fornece forte incentivo a demandas por mudanças da noite para o dia. Mas nada é rápido em relação à construção de Estados de bem-estar social modernos. Presidentes de esquerda provavelmente sabem como é esse processo, mas têm poucas escolhas a não ser fazer promessas impossíveis. E quando têm dificuldades para entregá-las, como Boric e Fernández, sua popularidade despenca.

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Os conservadores latino-americanos, que prometem políticas duras contra o crime e conservadoras em temas sociais, podem cumprir partes importantes de suas agendas por meio do Poder Executivo. Mas não há soluções presidenciais para as grandes preocupações da esquerda, como acesso desigual a serviços públicos, desigualdade econômica ou evasão fiscal — ao menos não para presidentes moderados, que respeitem pesos e contrapesos.

A armadilha do crime

Ontem, o tema que dominava a política latino-americana foi a corrupção. Hoje, conforme escreveu Brian Winter, é a criminalidade — e não apenas em pontos focais históricos, como a Colômbia e o norte da América Central, mas também em países mais seguros, como Chile, Uruguai e Costa Rica, onde cartéis e gangues têm aberto caminhos.

A (extrema) direita tem uma resposta no modelo “mano dura” de Nayib Bukele, que tem atraído um crescente fã-clube internacional. Até a hondurenha Xiomara Castro, de esquerda, embarcou. Mas confirme observou o cientista político Lucas Perelló, os líderes de esquerda da região parecem não ter nada para contar nos contar a respeito de combate ao crime. Petro, que criticou o encarceramento em massa de Bukele, qualificando os presídios salvadorenhos como “campos de concentração”, promete “paz total” por meio de negociação com grupos armados ilegais, mas sua estratégia ainda não rendeu frutos. Boric incrementou a segurança e fortaleceu as fronteiras, mas ainda não afastou a percepção de que é fraco no combate ao crime.

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Uma exceção a todas essas tendências é o mexicano López Obrador, que construiu um partido massivo, que possui maioria na Câmara Baixa do Congresso, aprovou reformas e posicionou uma apoiadora, Claudia Sheinbaum, para suceder-lhe. Seu segredo? Ele é reminiscência da primeira virada à esquerda e governa como tal: como Chávez, Correa e Evo antes dele. López Obrador buscou afrouxar as limitações dos pesos e contrapesos. E também deu poder às Forças Armadas. Mas, acima de tudo, se beneficiou do dramático enfraquecimento dos partidos tradicionais do México.

O sol está se pondo para os social-democratas na América Latina, mas não em toda parte. A uruguaia Frente Ampla provavelmente vencerá no próximo ano. Lula ainda tem muito de seu mandato a cumprir. Mas em outros países a experiência dolorosa dos anos recentes poderia desencorajar futuros políticos de emular a esquerda moderada latino-americana. Social-democratas como o uruguaio Tabaré Vázquez, o brasileiro Fernando Henrique Cardoso e a chilena Michelle Bachelet no passado fortaleceram a democracia e o Estado de bem-estar social em seus países, produzindo uma alternativa a modelos reacionários e populistas. Se alternativas assim se esgotarem e os partidos e candidatos de centro-esquerda se tornarem espécie em extinção na região, o desdobramento será nefasto./ TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

*Will Freeman, PhD, é pesquisador de estudos latino-americanos do Council on Foreign Relations

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