A diplomacia da arminha e os 1000 dias da política externa de Bolsonaro; leia análise

Os membros de 'baixo nível' da delegação brasileira, liberados de constrangimentos morais e de qualquer preocupação com o decoro, mandaram às favas a tradição diplomática e levaram de roldão o que restava na reputação do País

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Por Hussein Kalout
Atualização:

Uma das mais famosas esculturas que adornam os jardins das Nações Unidas em Nova York chama-se “Não Violência”. Trata-se de uma obra em bronze que representa um revólver calibre 45 com o cano torcido na forma de um nó. Um símbolo da esperança cristalizada na Carta das Nações Unidas de um mundo livre do flagelo da guerra, dos abusos e violações da dignidade humana, da privação e da destituição material. O nó ata o cano do revólver, retirando-lhe a letalidade, para transformá-lo num símbolo da paz e da vida.

Todos os anos os Estados membros da ONU se encontram em Assembleia-Geral para renovar aquela esperança. Ainda que a prática de muitos governos esteja a anos luz dos princípios e propósitos da Carta, todos rendem-lhe homenagem porque sabem que serão julgados pela régua moral daqueles princípios e propósitos. Ninguém, mesmo os menos sinceros e os mais hipócritas, ousa contrapor-se à esperança de um futuro de paz e respeito à vida, pois sabe que qualquer um que o faça perderá legitimidade e se tornará pária internacional, execrado na praça pública global daquele parlamento da humanidade.

Escultura desarmamentista na entrada das Organizações das Nações Unidas (ONU), em Nova York. Foto: Divulgação/ONU

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Apesar desse contexto que impõe, até mesmo aos espíritos mais atrozes e obtusos, um véu de respeito aos valores da civilização, o Brasil conseguiu lugar de destaque nas sarjetas reais e morais de Nova York. O símbolo da paz do revólver de cano atado foi substituído pelo gesto da arminha disparando contra manifestantes e pelo gesto não menos degradante de mostrar o dedo médio a quem não adere à seita no poder. Os membros de “baixo nível” da delegação brasileira, liberados de constrangimentos morais e de qualquer preocupação com o decoro, mandaram às favas a tradição diplomática e levaram de roldão o que restava na reputação do País.

Alguns dirão, como se ouve com frequência, que o Brasil é maior do que isso, que a pequenez moral por trás da atitude indigna dos funcionários de “baixo nível” não terá maiores consequências. É passageiro, dizem outros. Na verdade, em diplomacia os símbolos possuem a capacidade de moldar a realidade e costumam ter alguma permanência. 

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O discurso e os gestos são tão importantes quanto projetos, programas e iniciativas. Mas o efeito é potencializado quando gestos simbólicos estão em perfeita sintonia com as políticas colocadas em prática. O que os mais ingênuos e os nem tanto talvez não percebam ou não queiram admitir é que, no caso do Brasil, o discurso e os gestos se casam perfeitamente com as ações: o descontrole dos ministros seria expressão fidedigna, em toda sua incivilidade, da necropolítica e do descalabro que vigem no país seja na saúde, na economia, na educação, nas relações exteriores.

A arminha feita com os dedos e que dispara contra manifestantes indefesos não teria sido apenas um momento em que o perpetrador perde a cabeça diante da pressão do momento.

É antes a prova de que pertencer ao atual governo, independentemente de sua formação e treinamento, tem o condão de erodir a adesão aos padrões civilizatórios tradicionais e à liturgia de altos cargos da República. Isso diante de uma plateia global a quem o mais alto mandatário da Nação, o primeiro a tripudiar sobre códigos mínimos de civilidade, quer convencer que o país é diferente daquele que todos enxergam tanto na imprensa quanto com seus próprios olhos: afinal, o Brasil teria se transformado, sob sua batuta, em paraíso sobre a terra, modelo de combate à pandemia, vanguarda do tratamento precoce, país do emprego, da proteção do meio ambiente, de respeito aos indígenas.

Vamos, assim, simbolicamente desatando os nós da escultura por meio da metralhadora giratória de “fake news”, com os gestos desabusados e imorais acompanhados de discursos não menos revoltantes que se apegam a uma dimensão paralela, onde a verdade é mentira, a violência é paz, as armas são flores, a doença é saúde, e o sofrimento é alegria. A ameaça a esse “Brasil paralelo”, contudo, não é menor e emana da própria realidade que, em sua renitente teimosia, insiste em aflorar na forma de dor dos mais vulneráveis, de morte, de destruição econômica e caos social.

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E quando acordarmos desse pesadelo em que fazer arminhas com a mão significa sinal de amor ao próximo e diplomacia de grosso calibre, talvez nos daremos conta de que a ilusão da realidade paralela deixou de legado um país não apenas mais pobre e triste, mas também mais isolado, irrelevante e à deriva no plano internacional. Só nos restará juntar os cacos de nossa credibilidade alquebrada e de nossa reputação rebaixada, na esperança de que voltemos a ser identificados como um país respeitável e que zela pela paz interna e internacional. A esperança é a de que, no futuro, quando nossos líderes quiserem usar uma arma como símbolo, que seja a escultura de cano atado que celebra a vida. Por enquanto, celebram a morte. A diplomacia da arminha é, enfim, o retrato mais fiel dos 1000 dias da política externa bolsonarista. Um dia o pesadelo há de terminar!

HUSSEIN KALOUT, é Cientista Político, Professor de Relações Internacionais e Pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2017-2018).

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