‘A economia não vai funcionar se Milei continuar em guerra política’, afirma economista argentino

Nos primeiros 100 dias de gestão, o libertário fracassou em criar um ambiente seguro para investimentos ou favorável para aprovar seus projetos, observa o professor da UBA Fabio Rodriguez

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Foto do author Carolina Marins
Atualização:
Foto: Arquivo pessoal
Entrevista comFabio RodriguezEconomista e professor da Universidade de Buenos Aires (UBA)

Javier Milei completa 100 dias como presidente da Argentina nesta terça-feira, 19, em um tom de comemoração com os resultados econômicos mais recentes. Pela primeira vez em mais de 10 anos, o país teve superávit em janeiro e fevereiro, a inflação deu sinais de retroceder e, ainda que esteja perdendo aprovação ao longo tempo, segue aproveitando a lua de mel entre seus eleitores. No entanto, essas vitórias foram conseguidas a custos altos, e embates políticos recentes comprometem a sua manutenção.

Essa é a avaliação do economista e professor da Universidade de Buenos Aires (UBA) Fabio Rodriguez ao fazer um balanço dos primeiros 100 dias de Milei. Para seguir com sua meta de déficit zero, o presidente terá de baixar o tom, além de precisar recalibrar a estratégia econômica, que não pode ser mantida a custo de salários arrochados e queda no consumo.

“Os próximos 100 dias não podem repetir a estratégia dos primeiros 100 dias porque os fracassos começarão a aparecer, e a situação dos rendimentos sociais obviamente terá um grau de tensão muito, muito significativo”, afirma o economista.

O presidente da Argentina, Javier Milei, e a vice-presidente, Victoria Villarruel Foto: Juan Mabromata/AFP

Confira trechos da entrevista:

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Qual o balanço dos primeiros 100 dias de governo Milei no âmbito econômico?

É preciso diferenciar os dois planos: primeiro, vamos focar mais no político e institucional. Aí vejo uma grande dualidade que tem caracterizado estes 100 dias. Tem havido muita conflitividade no âmbito político, uma espécie de choque constante, no sentido de que o governo tem confrontado com todos os poderes que se possa imaginar, desde o Legislativo, empresários, mídia, governadores; uma estratégia muito confrontativa, sabendo, e aqui está a dualidade, que continua a contar com o apoio de uma opinião pública favorável, o que precisa ser reconhecido e faz parte da explicação, creio eu, do porquê essa conduta dual persiste. Por vezes, parece como o Milei da campanha, utilizando a mesma tática, a mesma estratégia, e parece que está dando resultados, pois sua imagem ou a do seu governo, aparentemente, segundo as pesquisas, está superando os 50%, o que, dado o tamanho do ajuste econômico, é um número mais do que considerável. Porém, parece-me que essa estratégia será efêmera de alguma forma, ou precisa ser sintetizada em algo para superar, porque não se pode continuar com esse nível de conflitividade, agressão e idas e vindas com os principais atores políticos e de poder. Não é apenas a oposição, também aconteceu que, no próprio espaço onde ele angaria apoio, teve disputas consideráveis, especialmente com os governadores da coalizão Juntos pela Mudança, com quem mais tem se confrontado, ou com os parlamentares, ou seja, é toda a casta, em sua definição, e são todos.

Parece-me que vai ter que reduzir isso, e aqui se conecta um pouco com o outro ponto, porque nenhum presidente em nenhum país de uma república democrática governa sem leis, e o presidente não conseguiu aprovar nenhuma lei nestes famosos primeiros 100 dias. Uma lei representativa [Lei Ônibus] que era um pouco o cerne de seu programa econômico, que era um projeto tributário com identidade própria fracassou, O DNU teve uma rejeição no Senado, então está meio que caído, e agora há todo um replanejamento de quantas leis ele vai tentar passar novamente, que seriam os projetos anteriores, mas de forma resumida, ou seja, uma estratégia muito ruim do ponto de vista do manejo político com o Congresso, com o Legislativo, ou com o institucional e político para aprovar leis.

Como isso afeta o plano econômico?

A economia vai chegar a um ponto em que também não vai funcionar. E isso também não é um sinal positivo para o seu plano de começar a receber investimentos e dar um panorama de confiança. Parte do que fez nestes primeiros meses não cria um ambiente estável e previsível para investir capital ou fazer investimentos, e de fato não houve nenhum anúncio significativo de chegada de investimentos ao país, o que tem muito a ver com a falta de previsibilidade política percebida, falta de capacidade de diálogo, e muito menos de aprovação de leis. Estamos aguardando a conclusão destes primeiros 100 dias, e o presidente continua a explorar essa dualidade, ou seja: ‘eu vou até o limite, as coisas não me são aceitas, mas sou sustentado pela opinião pública e marco que todos que me rejeitam são parte de uma casta’, desde a Justiça, os legisladores, os empresários, a mídia, outros economistas, a oposição, os governadores, os sindicatos... todo o espectro político e institucional da Argentina. Isso, em algum momento, obviamente, será corrigido ou terá que ser corrigido.

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Mas houve dados positivos...

Em relação à economia, ele teve sucesso em uma espécie de círculo virtuoso fiscal e financeiro, e digo nessa ordem porque houve os sinais de ajuste muito duro com déficit zero em janeiro e fevereiro, que são insustentáveis, na minha opinião, mas, enfim, as cifras apresentadas são essas, derramaram um panorama favorável no aspecto financeiro, então poderíamos destacar os aspectos positivos desses 100 dias, que são: acumulou mais de 10 bilhões de dólares de reservas, a desinflação após o estouro da desvalorização foi um pouco melhor do que o esperado (fez uma espécie de escada de 25% 20% e 13%, algo assim, quando as expectativas eram 25-25-20 portanto, surpreendeu um pouco com uma desinflação mais rápida) ,a taxa de juros baixou, o risco país... o que são os movimentos financeiros está melhor, e ele se agarra muito a isso, no sentido de que o aspecto fiscal-financeiro arrastará o restante da economia.

Agora, isso tem um problema que está em outro plano, que é o real, onde há uma brutal recessão. Ou seja, uma queda livre na economia de todos os setores, caindo a dois dígitos, uma recessão das mais importantes que a Argentina teve, comparável apenas com a pandemia e com a crise de 2001, que ainda não afetou o emprego, mas vai afetar, e onde, em última análise, a estratégia desse ajuste, que é onde começa esse círculo virtuoso dos aspectos financeiros, é baseada em liquidar as aposentadorias, os salários, e congela partes do orçamento, que são insustentáveis, como adiar pagamentos de energia ou repasses para as províncias, onde o mercado também começa a se perguntar: ‘Por quanto tempo isso vai durar?’ Não é apenas o mercado, algo insólito aconteceu na Argentina, que é o Fundo Monetário Internacional, apoiado pelo embaixador americano na Argentina, manifestou um acordo inicial com o sentido de orientação das medidas, mas advertindo para ter cuidado com os mais vulneráveis, ou seja, pela primeira vez na história, o próprio fundo adverte a Argentina: ‘Cuidado, não é só uma questão de ajuste, você precisa ter muito cuidado com o aspecto social’.

Forças policiais observam manifestação de movimentos sociais contra o presidente Javier Milei Foto: Luis Robayo/AFP

Por que você diz que é insustentável?

Não é sustentável porque obviamente levará a uma situação social extremamente complexa se persistirem nessa estratégia. Mesmo com a redução da inflação, são registros muito altos de 13-15%, com salários que não conseguem nem mesmo um aumento de 5 ou 6% ao mês, e poupanças que também estão sendo corroídas devido às taxas de juros negativas. Portanto, há um empobrecimento generalizado muito acelerado, o que precisará encontrar um ponto de estabilização, e isso requer que a estratégia de redução da inflação traga resultados rapidamente. Ou seja, se foi aplicado um ajuste tão rigoroso, quando digo rapidamente, é que em abril ou maio já deveria começar a mostrar um dígito, e que a recuperação salarial até esse momento consiga se equiparar, e depois, no segundo semestre, tente melhorar o comportamento da inflação, para que o poder de compra dos salários, dos aposentados e de todos possa ser recuperado, pois senão não haverá perspectiva de como a economia sairá da recessão. Na Argentina tem um peso significativo o consumo, que é o motor que mais traciona. Além disso, os investidores também observam muito como está o mercado interno e o consumo, então as variáveis que o próprio presidente menciona para recuperar a economia, como a vinda de investimentos, dependem em última instância também de uma estabilização social e de um ponto de contenção da queda que está ocorrendo no deterioro dos salários e dos rendimentos.

Qual poderia ser a nova estratégia adotada?

Acredito que seria necessário flexibilizar alguns postulados nos quais o ajuste fiscal atualmente se baseia, ou seja, será necessário mudar de direção e deslocar o ajuste que agora está muito conectado ao corte de gastos previdenciários, corte das transferências para as províncias e interromper todos os gastos em obras públicas, e começar a agir, por exemplo, reativando o pacote fiscal que foi derrubado. Para então começar a equilibrar melhor como continuar mostrando resultados fiscais que são considerados imperativos pelo presidente, como o déficit zero. Mas terá que ser feito com uma composição diferente. Essa é a única maneira pela qual podemos ver uma estabilização desse deterioro.

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Porque o ajuste teve âncoras que são essas fiscais: a monetária, de parar de emitir moeda e secar a economia do impacto do peso, e também a cambial, de manter o dólar fixo, e isso é insustentável a médio prazo porque, se continuar a inflação em 10, 12, 14% e o dólar só se desvaloriza 2%, só acumulará tensão para uma próxima desvalorização.

Esses pontos estavam dentro dos primeiros 100 dias. Talvez eles tenham resistido ao primeiro ciclo ou à lua de mel. Mas os próximos 100 dias não podem repetir os primeiros 100 dias. Isso é um pouco a minha concepção. E aí entra muito em jogo o que falamos no começo, porque para evitar isso, a estratégia também no Parlamento precisa ser diferente. Milei se agarra muito a uma transformação de 180 graus na economia, em direção ao livre mercado com reformas e abertura. Isso é inconsistente sem leis, ou seja, nenhuma economia se modernizou, cresceu e se transformou sem aprovar leis. Por quê? Porque a menor previsibilidade que qualquer investimento pedirá para vir ao país e realmente ver que há uma mudança é que haja estabilidade ao longo do tempo, e isso é alcançado com leis, não com decretos aleatórios ou imposições. Parece que isso não mudou, não vimos nenhum indício ou pouquíssimos indícios, exceto esse anúncio do Pacto de Maio, mas que parece mais uma cláusula de adesão, dizendo: ‘haverá Pacto de Maio se me devolverem a Lei Ônibus’. Ainda não vimos uma mudança de atitude nesse sentido e eu acredito, insisto, que os próximos 100 dias não podem repetir a estratégia dos primeiros 100 dias porque os fracassos começarão a aparecer, e a situação dos rendimentos sociais acumulativos obviamente terá um grau de tensão muito, muito significativo.

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