TEL-AVIV, ISRAEL - Há 18 semanas, quando ainda não estava claro o real tamanho da tragédia que se adivinhava nas manchetes, fui para Tel-Aviv. Foi a primeira manifestação contra os planos totalitários do novo governo de Israel. Estacionei atrás do teatro Habima e caminhei encasacado pela praça, até o lado da frente, onde seria o protesto.
Pouca gente. Duas, talvez três mil pessoas. Impressão de que havia mais gente na fila para o teatro do que em frente ao palco de onde vinham alguns discursos aborrecidos e sem imaginação. Voltei para casa mais deprimido do que quando saí. É assim que vai acabar tudo? Não numa explosão, mas nesse gemido?
O Likud, partido que até pouco tempo era de centro direita, ganhou as eleições e tinha anunciado sua coalizão extremista alguns dias antes. Binyamin Netanyahu, líder do Likud e indiciado por suborno, fraude e abuso de poder, aceitou tudo que foi pedido para montar o governo.
Na semana seguinte, Yariv Levin apresentou o seu plano para reforma do judiciário. Caiu como uma bomba. Os planos eram muito piores do que o que se especulava. O resultado, se todas aquelas leis fossem aprovadas, seria, de fato, o fim da separação entre os três Poderes e o controle do Judiciário pelo governo.
Entre Tel-Aviv e Jerusalém
A previsão do tempo para o sábado seria de um temporal. A cada esquina mais manifestantes. Uma enxurrada de gente vinha em direção à praça do Habima e me juntei ao fluxo. Ensopados, eu e mais 80 mil pessoas cantamos a música tradicional: “Cada um de nós é uma pequena luz/Juntos somos uma luz enorme”. Frio, vento forte, chuva de balde, discursos eletrizantes debaixo d’água. “Ditadura? Não no nosso turno!”
Na semana seguinte, debaixo de um céu estrelado, a praça do Habima não comportaria o número de pessoas previsto. Fechou-se a rua Kaplan, rua central em Tel-Aviv. Vieram mais de 130 mil pessoas.
Logo, começou a ficar claro: gente na rua, mesmo que fossem tantos, não seria suficiente para parar a legislação. Numa segunda-feira, no dia 13 de fevereiro, o protesto virou greve e subiu para Jerusalém, na frente da Knesset, no dia em que o primeiro voto dos três necessários para a primeira das leis planejadas iria acontecer. Quinze minutos antes de partir, o trem que tomei para lá já estava completamente lotado de gente carregando bandeiras e vontade de gritar.
“Eu simplesmente não consigo acreditar que isso está acontecendo. Meu avô veio aqui passar fome para isso? Meu pai foi ferido na guerra para isso? Eu perdi anos da minha vida no Exército para isso? E meu filho? Vou dizer o que para o meu filho?”, disse meu vizinho de assento.
Mais de 300 mil pessoas se encontraram por sua própria conta, risco e prejuízo no meio de um dia de trabalho, frio e seco, para protestar na frente da Knesset. Algumas estimativas falavam de 500 mil. Foi a primeira vez que fui agredido, ainda que só verbalmente, por apoiadores do governo. Quatro vezes, entre ir e voltar da estação de trem.
A lei passou a primeira chamada naquela noite.
Leia mais
Efeito moral
Em 1984, durante um discurso do parlamentar Meir Kahana, todos os membros do Knesset, incluindo do Likud, viraram-se de costas. Seu movimento racista, supremacista e inegavelmente fascista, o Kach, foi abolido. Dez anos depois, um dos seus alunos, o médico (!) Baruch Goldstein, abriu fogo contra um grupo de muçulmanos que rezava dentro da Caverna dos Patriarcas, em Hebron, matando 29 pessoas.
Em 1995, outro dos seus discípulos participava de uma manifestação violenta contra o primeiro-ministro. Chegou perto suficiente do Cadillac oficial para arrancar o brasão e apresentá-lo numa entrevista na televisão. “Chegamos até o seu carro, vamos chegar até ele!” Alguns meses depois, esse primeiro ministro seria assassinado por um judeu extremista. O nome desse discípulo é Itamar Ben-Gvir e ele tinha, até bem pouco tempo atrás, uma pôster de Baruch Goldstein na sala da sua casa.
O mesmo Likud que protestou virando de costas durante o discurso do Meir Kahana e promoveu a lei que não permite um condenado por racismo a se eleger na Knesset, entronou Ben-Gvir na sua coalizão. No acordo, ele seria um superministro da segurança nacional. O parlamentar já tinha sido indiciado mais de uma dezena vezes por crimes como terrorismo doméstico. Por seu radicalismo e ficha criminal, foi considerado inapto para servir ao Exército. Seria agora o responsável pela polícia.
As manifestações semanais continuavam. O país esquentava. No dia 1º de março, uma quarta feira de tarde, mais uma enorme passeata na rua Kaplan. Não de noite, não no sábado, mas no meio de um dia útil. Eu e dezenas de milhares percorremos a rua central, de alto a baixo, até o cruzamento com a Ayalon.
A Ayalon é uma estrada de dez pistas. Cruza Tel-Aviv inteira. Invadir e fechar a Ayalon tinha sido a forma de encerrar manifestações já há algum tempo. Mas desta vez a polícia estava lá esperando.
Foi a primeira vez que vi uma bomba de efeito moral explodir perto de mim. A cavalaria (que a partir daquele momento seria onipresente) apareceu. Uma manifestação tentava parar o aeroporto e impedir o embarque do primeiro-ministro para Roma. O voo mudou de horário várias vezes, onze feridos foram hospitalizados, mais de trinta foram presos.
O país virou um caos. Veteranos da guerra de 1973 tentaram roubar um tanque de guerra que curtia dias mais calmos na forma de monumento num kibutz no norte. Queriam levá-lo para a manifestação de sábado à noite. Me lembrou do meu vizinho de trem, indo para Jerusalém. Ele esteve no Líbano em 81 e, sangue nos olhos, não estava de brincadeira. Essa turma não tem medo de nada, pensei, e nada a perder. Vão explodir o país, se necessário.
Caos
Na semana seguinte o país inteiro fechou. Protestos caóticos em todos os cantos. De noite, um atentado terrorista no centro de Tel-Aviv não nos deixava esquecer onde vivíamos. Frustrado, Ben-Gvir demite o chefe da região central sem ter esse poder. A demissão é ilegal. E agora? Quem manda? Por horas se apresenta em pequena escala exatamente o caos que se estabeleceria se o supremo cancelasse as leis que estavam em votação naquele momento: a quem a polícia deveria obedecer? Os políticos ou a lei?
Depois disso, as manifestações gigantescas aconteciam duas, às vezes três vezes por semana, no meio do dia, pelo país inteiro. Mulheres vestidas de vermelho e capuz branco marchavam em formação, como na série (baseada no livro) O Conto da Aia. Alertavam: o direito das mulheres será indefensável no caso das leis passarem. Não haverá um supremo para impedir leis teocráticas e misóginas de serem aprovadas.
Com medo do caos e da insegurança jurídica, várias grandes empresas de alta tecnologia já tinham tirado bilhões de dólares do país. O dólar estava subindo. Oficiais da reserva começaram a se negar a aparecer para treinamento. Primeiro pilotos, depois outros. Motivo: estariam completamente à mercê da lei internacional se não houvesse um sistema judiciário livre e efetivo no país.
Depois de uma semana em que o governo se desentendeu com metade do mundo, o ministro da segurança, Yuval Gallant, baseado nos relatórios que lhe eram apresentados, fez um discurso dizendo que, apesar de ser a favor da reforma, votaria contra. Pediu para o governo pausar as votações para conversar com a oposição e reavaliar o quadro geral.
Domingo à noite, Netanyahu o demitiu. Era indecente: Um ministro, baseado em informação de seus próprios técnicos, tenta avisar o governo de um risco sério de segurança e por isso é demitido. Foi demais. Espontaneamente, cidadãos desceram de suas casas para tomar as ruas de Tel-Aviv e, em seguida, a Ayalon. Avalia-se algo como 600 mil pessoas nas ruas no país, a noite inteira. (Israel tem 9 milhões de habitantes).
Escrevo olhando pela janela as pichações pedindo democracia, aos poucos desbotando nas pistas da Ayalon. No dia seguinte, greve geral, total e completa. Patrões apoiaram funcionários e prometeram pagar pelo dia parado. Empresas públicas e particulares fecharam as portas. Hospitais, shoppings e até o aeroporto. Manifestações no país inteiro.
O primeiro-ministro, em consultas infinitas para tentar não desmontar a coalizão quando fizesse a declaração que todos já sabiam que ia fazer. No fim do dia, anunciou a paralisação das votações. Apoiadores do governo saíram às ruas e se encontraram com os que já estavam ali. Houve violência e a promessa de que nada havia terminado. Pelo contrário: o país sairia dessa dividido e machucado. A maior crise política da história de Israel parou para respirar. Esse gênio pode até adormecer por uns tempos, sabe-se lá quanto, semanas, meses, anos, mas nunca mais vai voltar para a lâmpada.
E tudo isso em apenas dezoito semanas. Depois de um curto período de feriados de Pessach em que nem o país, nem a Knesset funcionam, imaginou-se que as coisas se acalmariam. Semana passada, 400 mil pessoas protestando por Israel inteira provaram que não. Esse gênio não adormece mais.
*Gabriel Paciornik é escritor e autor de “O melhor livro de autoajuda do mundo”. Escreve sobre geopolítica, Oriente Médio e Israel. Brasileiro, vivendo em Israel desde 1997.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.