SHEBAA, Líbano — Hassan Zahra terminava sua jornada de trabalho, pastoreando seu rebanho de caprinos no topo de uma colina ao longo da fronteira sul do Líbano, quando foi emboscado por um grupo de soldados israelenses, relatou ele. Zahra, de 23 anos, afirmou que foi algemado, vendado e levado para uma instalação destinada a interrogatórios em Israel, no ano passado, onde foi acusado de espionar para o grupo militante libanês Hezbollah. Centenas de cabras ficaram para trás, pastando na encosta.
“Eles disseram: ‘Vocês, pastores, dão a impressão de estar apenas cuidando do rebanho mas estão na verdade trabalhando para o Hezbollah nos vigiando”, afirmou Zahra. “Nós só pastoreamos nossas cabras, mas eles não acreditam.”
Apesar dos Estados em guerra do Líbano e de Israel terem acabado de negociar sua fronteira marítima, a situação permanece tensa ao longo da fronteira terrestre entre os países, que ainda está em disputa e é crivada por campos minados, dividida por cercas de arame farpado e vigiada por drones.
Em meio à disputa estão os pastores que criam ovelhas e cabras na região rural no sul libanês adjacente à área chamada Fazendas de Shebaa, que é reivindicada pelo Líbano mas ocupada por Israel, onde é conhecida como Monte Dov.
Os pastores afirmam que são detidos repetidamente por soldados israelenses, acusados de fornecer informações a respeito do Exército israelense e seus movimentos na área para o Hezbollah. Mas quando são soltos, os pastores com frequência acabam intimados para interrogatórios das autoridades libanesas, que aparentemente temem que eles sejam recrutados como espiões pelo outro lado. Os pastores e o Hezbollah negam as acusações de espionagem dos israelenses.
Quando Israel encerrou sua ocupação do sul libanês, em 2000, sua presença retornou para o limite conhecido como Linha Azul, uma demarcação estabelecida pelas Nações Unidas com o propósito de confirmar a retirada israelense. Mas essa fronteira nunca foi delineada formalmente. E Israel não se retirou das Fazendas Shebaa, afirmando que a região faz parte das Colinas do Golã, que os israelenses tomaram da Síria em 1967, posição apoiada por uma avaliação da ONU.
Zahra afirma que sua família ainda tem terras nas Fazendas Shebaa e que seus ancestrais criaram gado na região — há muito tempo um barril de pólvora entre Israel e Líbano. O Hezbollah afirma que não entregará suas armas, apesar de resoluções da ONU pedindo o desarmamento das milícias libanesas, enquanto território que considera libanês estiver ocupado.
Mais de 10 mil soldados das forças de paz da ONU patrulham os 120 quilômetros da Linha Azul, mas isso não evitou que conflitos irrompessem, nem que pastores como Zahra fossem detidos por militares israelenses ao longo da porosa fronteira.
Andrea Tenenti, porta-voz da Força Interina das Nações Unidas no Líbano, reconhece as dificuldades. “Em razão da linha não ser bem definida, é difícil dizer se os pastores atravessam para Israel ou se os israelenses atravessam para o Líbano”, afirmou ele.
Tenenti disse que os militares israelenses chamam criadores de caprinos e ovinos como Zahra de “operativos pastoris”. O Exército de Israel afirma que os pastores usam um aplicativo em seus telefones que deleta fotografias de soldados e veículos israelenses automaticamente depois que eles enviam as imagens para membros do Hezbollah.
Às vezes, os pastores são enviados para a fronteira juntamente com suas mulheres e filhos “para ocultar seu verdadeiro propósito e parecerem inocentes”, afirmou o Exército de Israel em um vídeo transmitido por um website israelense de notícias, no ano passado.
O vídeo nota que o Exército “tem monitorado essa tendência e optou por expor a prática proativamente, como parte da batalha de artimanhas com o outro lado”.
O Hezbollah qualificou as acusações de Israel como “vazias e sem fundamento”. “Elas buscam justificar as tentativas de sequestro de pastores de tempos em tempos para interrogá-los e obter informações a respeito de postos da resistência na região ou informações relacionadas à movimentação de membros da resistência naquela área”, afirmou o grupo em um comunicado.
Zahra afirmou que estava dentro do território libanês, em janeiro do ano passado, quando se deparou com cerca de uma dúzia de soldados israelenses, que o cercaram apontando-lhe fuzis. O pastor disse que ficou três dias detido em Israel, vigiado 24 horas por soldados armados, e que foi interrogado várias vezes.
Em resposta a perguntas formuladas pelo New York Times, o Exército israelense afirmou que Zahra tinha “se infiltrado” no território de Israel e que seu interrogatório forneceu informações valiosas.
A detenção de Zahra no ano passado marcou a segunda vez que ele foi detido por soldados israelenses, acrescentou ele. O pastor afirmou que, na primeira vez que foi levado, aos 14 anos, ele e seu irmão Ismail passaram horas em poder dos israelenses. Interrogadores exigiam saber quem os havia mandado para a região, recordou-se ele.
As forças de paz da ONU supervisionam o retorno de pastores e gado no único posto de controle em operação na área. Foi por lá que Zahra atravessou de volta para o Líbano quando foi libertado pelas forças de Israel.
Logo depois, oficiais de inteligência libaneses o detiveram e o interrogaram por cerca de 12 horas.
O Exército do Líbano não respondeu aos questionamentos a respeito de seus motivos para interrogar pastores. O pai de Hassam Zahra, Kassem Ali Zahra, de 62 anos, disse pensar que os militares libaneses se preocupam com a possibilidade dos pastores serem recrutados como espiões de Israel.
“O governo começa a suspeitar de nós”, afirmou o pai do pastor, sorrindo para um dos dois oficiais de inteligência libaneses que se aproximaram para acompanhar a entrevista atentamente.
Em um dia recente, três gerações da família Zahra se reuniram próximo à Linha Azul.
Hassan tinha passado o dia nas montanhas e desceu a colina com suas cabras, na direção de seu pai, seu irmão e Kassem, seu sobrinho de 7 anos. O pai de Hassan enchera dois bebedouros com água para os animais.
O ancião olhou para Kassem, que portava um cajado de sua altura e imitava movimentos e sons dos adultos chamando as cabras, aprendendo o ofício da família. “Todos tememos pelo futuro das crianças”, afirmou Hassan.
Forças de paz da ONU sediadas em um pequeno posto avançado nas imediações patrulham a área continuamente e possuem radares que detectam violações à Linha Azul no espaço aéreo, que Israel pratica quase diariamente.
Quando os capacetes azuis veem pastores se aproximando do limite, eles assopram apitos para alertá-los, afirmou o tenente-coronel Abhinav Bakshi, que comanda uma unidade de soldados indianos encarregada de monitorar cerca de 4 quilômetros não demarcados da Linha Azul.
“Se eles não atravessam, é mais fácil para mim, porque, de outra maneira, ficamos duas noites sem dormir até os trazer de volta e contarmos todos”, afirmou ele. “Os pastores não percebem que há uma linha porque a linha é imaginária.”
Enquanto Bakshi falava, um drone israelense de vigilância sobrevoava o local, violando as regras da Linha Azul.
Neste ano, afirmou o militar a serviço da ONU, houve um aumento no registro de violações à Linha Azul, ao menos duas por dia têm ocorrido. Cerca de 40% envolveram pastores e seus rebanhos, acrescentou ele.
Referindo-se à detenção de pastores pelos soldados de Israel, Muhammad Hashim, governador da cidade de Shebaa, no sul do Líbano, afirmou: “O inimigo os detém acreditando que eles podem estar trabalhando para benefício da resistência. Mas a resistência tem seu próprio pessoal, não precisa de pastores”, acrescentou ele, referindo-se ao Hezbollah. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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