A frota clandestina da Rússia adicionou sabotagem à sua lista de tarefas?

A Rússia reuniu uma frota de centenas de embarcações para transportar secretamente seu petróleo. Com tantos navios no mar, talvez a ideia de usar alguns para causar estragos esteja se mostrando irresistível para o Kremlin

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Por Michael Schwirtz (The New York Times)

Autoridades ocidentais há muito se preocupam com a chamada frota clandestina de Moscou, um conjunto de petroleiros antigos criados para transportar secretamente petróleo bruto russo ao redor do mundo. Desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, a preocupação dizia respeito principalmente ao uso de tais navios não oficiais para contornar sanções ocidentais e gerar receita para abastecer a máquina de guerra do Kremlin.

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Mas talvez a frota clandestina da Rússia represente agora um perigo mais urgente para o Ocidente.

Esta semana, forças de elite finlandeses abordaram um petroleiro que as autoridades suspeitam ter rompido cabos subaquáticos vitais no Mar Báltico, incluindo um que transporta eletricidade entre a Finlândia e a Estônia. O navio, Eagle S, tem todas as características de embarcações pertencentes à frota clandestina da Rússia, disseram autoridades, e embarcou de um porto russo pouco antes de os cabos serem cortados.

Se confirmado, seria o primeiro caso conhecido de uma embarcação da frota clandestina sendo usada para sabotar intencionalmente a infraestrutura essencial da Europa — e, de acordo com autoridades e especialistas, uma clara escalada da Rússia em seu conflito com o Ocidente.

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O petroleiro Eagle S, que navega sob a bandeira das Ilhas Cook, próximo ao rebocador dinamarquês Ukko. A Estônia iniciou patrulhas navais para proteger um cabo submarino que fornece eletricidade da Finlândia após suspeita de sabotagem no dia 25 de dezembro Foto: Jussi Nukari/AFP

“Sabemos da frota clandestina da Rússia operando em nossa área, e sabemos que a Rússia está sistematicamente conduzindo uma guerra híbrida contra seus países vizinhos da Otan/UE”, disse Lauri Läänemets, ministro do interior da Estônia, em um e-mail para o New York Times. “É hora de abandonar as ilusões e encarar a realidade.”

Na sexta feira, vários países da região anunciaram a mobilização de recursos adicionais da marinha e da guarda costeira para reforçar a segurança. O secretário-geral da Otan, Mark Rutte, respondendo a solicitações dos líderes da Finlândia e da Estônia, ambos países-membros, disse que a aliança atlântica “aumentaria” sua presença militar no Mar Báltico.

“A Otan se solidariza com os Aliados e condena quaisquer ataques à infraestrutura essencial”, disse Rutte em uma publicação anterior no X, a plataforma de mídia social.

Financiamento

Para o Kremlin, a criação de uma frota clandestina ofereceu uma solução para o problema de financiamento de sua guerra na Ucrânia. Depois que o presidente Vladimir Putin ordenou que as tropas russas invadissem em fevereiro de 2022, os países ocidentais começaram a impor sanções destinadas a estrangular a economia russa e cortar seu acesso aos fundos necessários para manter o exército do país em movimento.

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O petróleo é um pilar da economia da Rússia, e um alvo importante das sanções era o setor de energia da Rússia. Mas, em vez de um embargo total, que as autoridades temiam causar um aumento global nos preços, os Estados Unidos e seus aliados ocidentais impuseram limites de preço de US$ 60 por barril em todo o petróleo e derivados originários da Rússia e transportados por mar, um desconto significativo em relação ao preço de mercado.

Navio chinês Yi Peng 3 é monitorado por um navio de patrulha naval dinamarquês no mar de Kattegat, perto da cidade de Granaa, na Dinamarca, no dia 20 de novembro de 2024 Foto: Mikkel Berg Pedersen/AFP

A ideia de criar uma frota paralela para contornar as sanções não é nova. O esquema tem sido usado há muito tempo por párias globais como Irã e Coreia do Norte, bem como cartéis de drogas, disse Elisabeth Braw, pesquisadora sênior do Atlantic Council que investigou e escreveu sobre frotas paralelas.

A inovação da Rússia, disse Braw em uma entrevista, foi de escala. Desde que a Rússia começou a montar sua frota, o número de navios clandestinos cruzando os oceanos cresceu em centenas e agora representa 17% da frota global total de petroleiros.

“Isso parece um tumor”, disse ela. “Quando era uma pequena parcela, podia ser administrado, mas agora que está se aproximando de 20%, é muito menos administrável e, obviamente, está crescendo.”

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Quase 70% do petróleo da Rússia está sendo transportado por navios clandestinos, de acordo com uma análise publicada em outubro pelo Instituto da Escola de Economia de Kiev, uma organização de pesquisa sediada na Ucrânia. Alguns especialistas estimam o número total de navios clandestinos da Rússia em mais de 1.000, embora significativamente menos sejam usados pela Rússia para contornar regularmente as sanções, descobriu a análise do instituto.

As autoridades na Finlândia ainda estão investigando se o Eagle S se envolveu em um ato criminoso. Mas o tamanho da frota clandestina pode ter tornado o uso de alguns desses navios para sabotagem irresistível para a Rússia, disse Braw.

“Acho que, em algum momento a Rússia percebeu: ‘Temos todos esses navios que estamos usando; podemos muito bem usar alguns deles para causar um pouco mais de dano.’”

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, participa de um evento em Moscou, Rússia  Foto: Nanna Heitmann/NYT

Sabotagem

Embora ainda não haja certeza de que o corte de cabos desta semana seja um feito intencional, o Mar Báltico, por uma série de razões, é uma arena ideal para realizar operações de sabotagem. É relativamente raso e é atravessado por cabos e oleodutos submarinos essenciais que fornecem energia, bem como serviços de internet e telefone, para vários países europeus que são membros da Otan. A Rússia tem acesso relativamente irrestrito ao mar a partir de vários portos, e seus navios comerciais, protegidos pela lei marítima internacional, podem se mover em águas internacionais em grande parte sem serem molestados.

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Mesmo antes dos cabos serem cortados, estava claro que o Mar Báltico estava se tornando uma arena-chave em uma competição cada vez mais intensa entre o Ocidente e a Rússia.

Desde o início da guerra na Ucrânia, a Otan, que o Kremlin considera seu principal inimigo, foi ampliada com dois novos membros, Suécia e Finlândia, ambas potências bálticas significativas. Os jatos da Otan na região são frequentemente acionados para responder a aeronaves militares russas e, a cada outono, os países da aliança ocidental realizam grandes exercícios navais chamados Freezing Winds, direcionados principalmente contra uma ameaça russa.

Meses após o início da guerra na Ucrânia, explosões destruíram várias seções do gasoduto Nord Stream abaixo do Báltico, cortando a Europa Ocidental das entregas de gás natural russo. Os serviços de inteligência dos EUA avaliaram que um grupo pró-ucraniano realizou o ataque, mas escassos detalhes estão disponíveis ao público.

As suspeitas de que a Rússia estava usando embarcações clandestinas para mais do que apenas escapar de sanções existiam antes do corte do cabo desta semana. Em abril passado, o chefe da Marinha da Suécia disse a um meio de comunicação local que havia evidências de que tais navios eram usados para coletar inteligência de sinais em nome da Rússia e que alguns navios de pesca foram avistados com antenas e mastros incomuns para embarcações comerciais.

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O petroleiro Eagle S ancora fora do porto de Kilpilahti, perto da cidade de Porvoo, no Golfo da Finlândia, no dia 28 de dezembro de 2024 Foto: Vesa Moilanen/AFP

Desde o início da guerra, também houve um aumento nos episódios suspeitos resultando em danos à infraestrutura submarina vital.

No ano passado, um navio registrado em Hong Kong, Newnew Polar Bear, lançou sua âncora e cortou um gasoduto entre a Finlândia e a Estônia. Esse navio foi autorizado a navegar em águas internacionais antes que as autoridades pudessem investigar o episódio. As autoridades responderam de forma mais agressiva no mês passado, parando um navio de bandeira chinesa chamado Yi Peng 3, mantendo-o ancorado por quase um mês e, finalmente, abordando-o após dois cabos de fibra ótica no Mar Báltico terem sido cortados.

Com o Eagle S, a resposta foi ainda mais agressiva. Horas depois de o operador da rede elétrica da Finlândia ter alertado a polícia que um cabo de energia submarino tinha sido danificado na quarta feira, oficiais finlandeses desceram de helicóptero até o convés do navio e tomaram a ponte, impedindo que o navio navegasse adiante. Na sexta feira, ele permaneceu ancorado no Golfo da Finlândia, protegido por um barco de mísseis das Forças de Defesa Finlandesas e um navio de patrulha da Guarda de Fronteira.

Uma razão para a intensidade da resposta pode o fato de o navio se encaixar muito bem nas características de um navio clandestino russo. O petroleiro de petróleo bruto de 70.000 toneladas mudou de proprietário e administradora nos dois anos mais recentes e não tem os tipos de seguro que os petroleiros geralmente têm, todos os principais indicadores de um navio clandestino, disse Yuliia Pavytska, gerente do programa de sanções do Instituto de Economia da Escola de Kiev, que trabalha com autoridades ocidentais para identificar e impor sanções a navios clandestinos russos.

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O navio também tem bandeira das Ilhas Cook, que são bem conhecidas por sua supervisão frouxa. Uma inspeção do Eagle S em Gana em setembro de 2023 descobriu 24 defeitos, incluindo problemas com sistemas de segurança contra incêndio e navegação, um número surpreendente, disse Pavytska.

“É uma espécie de recorde”, disse ela. “Não consigo lembrar se vimos mais problemas identificados do que isso.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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