A guerra de Putin é um crime contra o planeta; leia o artigo de Thomas Friedman

Campanha militar da Rússia na Ucrânia desencadeou uma torrente de efeitos negativos em florestas e povos originários que já estavam sob pressão de forças globais

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Por Thomas L. Friedman

THE NEW YORK TIMES — Não existiu um bom momento para a invasão não provocada e absurda de Vladimir Putin à Ucrânia. Mas o atual momento é singularmente ruim, porque esta guerra está desviando a atenção do mundo e os recursos necessários para mitigar as mudanças climáticas — durante o período que poderá ser a última década em que ainda teremos alguma chance de controlar extremos climáticos agora inevitáveis e prevenir aqueles que poderiam se tornar incontroláveis.

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Infelizmente, o que ocorre entre Ucrânia e Rússia não fica apenas entre Ucrânia e Rússia. Isso porque a Terra está plana como jamais esteve.

Nós conectamos tantas pessoas, lugares e mercados a tantas outras pessoas, lugares e mercados — e então removemos tantas das antigas ferramentas que nos protegiam dos excessos dos outros substituindo-os por graxa — que instabilidade em um nódulo é capaz agora de viajar muito longe, muito amplamente e com muita rapidez.

Bombeiros ucranianos tentam controlar fogo em estação de trem atingida por míssil em Kharkiv. Foto: Sergey Bobok/ AFP - 27/09/2022

É por isso que tenho argumentado que o ataque da Rússia é a verdadeira 1.ª Guerra Mundial. Dois terços das pessoas do planeta são capazes agora de assistir o conflito em seus smartphones, e virtualmente todas as pessoas foram ou serão afetadas por esta guerra economicamente, geopoliticamente e, talvez de maneira mais importante, ambientalmente.

A melhor maneira de compreender este fenômeno é conversando com pessoas que vivem em alguns dos ecossistemas mais remotos no mundo. Estou falando de comunidades indígenas que residem sob as florestas remanescentes e as protegem, particularmente nas megaflorestas livres de estradas, linhas de transmissão de eletricidade, minas, cidades e agricultura industrial. Essas florestas intactas — das Bacias Amazônica e do Rio Congo ao Canadá, à Rússia e ao Equador — são sistemas de suporte à vida do planeta. Elas absorvem bilhões de toneladas de dióxido de carbono da atmosfera, produzindo oxigênio, filtrando água doce e fortalecendo, de maneira geral, nossa resiliência contra as pressões das mudanças climáticas.

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Essas florestas e seus povos originários já estavam sob pressão de forças globais, mas a guerra de Putin desencadeou uma torrente de efeitos negativos: a Rússia é uma das maiores produtoras de fertilizantes no mundo; a maior exportadora de petróleo para mercados globais; e mais de um quarto do trigo consumido no planeta é exportado normalmente pela Rússia e pela Ucrânia, fornecendo pão para bilhões de pessoas — assim como cevada, óleo de semente de girassol e milho. Tanto a guerra quanto as sanções contra a Rússia geraram escassez dessas commodities e fizeram seus preços aumentar, intensificando pressões em todo o planeta para desmatar mais para prospectar petróleo, semear safras para o agronegócio e abrir espaço para pastos destinados à criação de gado.

Na semana passada, a Nia Tero, uma entidade sem fins lucrativos com presença global que apoia povos originários que atuam como guardiões dessas florestas em perigo, convidou-me para mediar uma discussão pública com líderes indígenas em visita a Nova York para a Semana do Clima. A Nia Tero aponta para estatísticas que mostram que territórios indígenas abrangem mais de um terço das florestas intactas da Terra e fatias similares de outros ecossistemas vitais, preservando uma porção significativa da biodiversidade do mundo. A probabilidade do carbono armazenado em territórios indígenas na Amazônia, por exemplo, retornar para a atmosfera é muito menor do que a emissão do carbono depositado em propriedades privadas ou outros tipos de terras não protegidas.

Infelizmente, quanto mais destruímos essas florestas, turfeiras e mangues mais distantes ficamos de atingir qualquer meta do Acordo de Paris no sentido de limitar o aquecimento global a 1,5ºC acima dos níveis pré-industriais.

Nemonte Nenquimo ganhou o Goldman Environmental Prize em 2020 por liderar uma luta jurídica em nome de comunidades indígenas do Equador — um dos dez países com maior biodiversidade no planeta — “que resultou em uma decisão judicial que protegeu mais de 200 mil hectares de floresta tropical amazônica e território Waorani da extração petrolífera”, afirmou a menção. “A liderança de Nenquimo e o processo na Justiça estabeleceram um precedente legal para direitos indígenas no Equador, e outras tribos estão seguindo o exemplo dela na proteção de outras parcelas de floresta tropical da extração de petróleo”.

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Uma grande honra. Mas ela me disse na semana passada que, apesar de sua vitória na Justiça, a alta nos preços do petróleo decorrente da guerra na Ucrânia renovou a pressão sobre as florestas de sua comunidade indígena. Conforme ela colocou: “O petróleo está dentro da floresta, e eles acham que o nosso lar é a solução”.

Como explicou John Reid, economista-sênior da Nia Tero: “Choques de oferta da Ucrânia e da Rússia transformaram-se em choques de demanda por todo o mundo, incluindo nas florestas intactas, porque as florestas intactas são grandes possíveis fornecedoras de commodities agrícolas, ouro, petróleo, gás natural e madeira”. (Reid e Thomas Lovejoy escreveram “Ever Green: Saving Big Forests to Save the Planet” [Sempre verde: Salvando grandes florestas para salvar o planeta], um excelente manual sobre o papel vital das florestas intactas na sustentabilidade da biosfera.)

Fumaça e vegetação queimada em Poconé, no Mato Grosso.  Foto: Dida Sampaio/ Estadão - 14/09/2020

Hindou Oumarou Ibrahim é líder do povo pastoril Mbororo, no Chade. Já era ruim o suficiente, disse-me ela, que o Lago Chade tenha perdido cerca de 90% de sua água e muitas de suas espécies, mas agora as pessoas de sua comunidade estão lhe perguntando: “Por que o preço da farinha e do combustível subiu tanto? Rússia e Ucrânia são muito longe, então por que somos castigados?”. Eles não entendem como os choques de uma guerra na Ucrânia são capazes de irradiar tanto ao ponto de atingir até o — subsaariano e sem saída para o mar — Chade.

“Quando a guerra começou”, acrescentou Ibrahim, “pediram que os países africanos escolhessem um lado. E tudo que pensávamos era que precisamos de comida. Esta guerra virou um grande problema para todos nós”. Agora, por todo lado ela vê empresas chinesas procurando terras para agricultura industrial, o que é um enorme problema para seu povo pastoril.

“Para povos originários, a terra é tudo”, escreveu Ibrahim em um ensaio publicado na semana passada por The Mail & Guardian, veículo de imprensa base na África do Sul. “É fonte da nossa comida, do nosso abrigo, da nossa medicina e manancial da nossa cultura e da nossa história. Por incontáveis gerações, aprendemos a viver bem na nossa terra. Nós sabemos como protegê-la, como restaurá-la e sabermos servir como engenheiros e cuidadores, em vez de destruidores.”

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Infelizmente, alguns líderes gananciosos, como o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, lamentam o fato de povos indígenas controlarem recursos preciosos — no Brasil, por exemplo, terras indígenas, em grande parte cobertas por florestas intactas, ocupam mais de 13% do território. O Brasil comprou US$ 3,5 bilhões em fertilizantes da Rússia no ano passado, um fluxo que agora está restringido pelas sanções do Ocidente. Então, assim que a guerra começou a ocasionar escassez de fertilizantes, Bolsonaro soltou: “Essa crise é uma boa oportunidade para nós”, segundo noticiou o Washington Post. “Onde tem terra indígena, tem riqueza embaixo.”

O presidente Jair Bolsonaro, candidato a reeleição, durante comício em Santos. Foto: Andre Penner/ AP

Posteriormente, ele se movimentou para aprovar uma legislação que possibilitaria a empresas minerar potássio em florestas de povos indígenas, para que o Brasil possa produzir mais fertilizantes para seu consumo interno.

E então há a própria Ucrânia. Antes da guerra, o país tinha florestas ancestrais significativas, “que permaneceram intocadas pelo impacto humano”, de acordo com a ONG World Wide Fund for Nature. Depois da invasão, a atividade militar da Rússia degradou “900 áreas naturais protegidas”, segundo um relatório da OCDE publicado em julho, “e estimado 1,2 milhão de hectares, ou aproximadamente 30% de todas as áreas protegidas da Ucrânia”.

Além disso, Rússia, Belarus e Ucrânia abasteceram um quarto do mercado global de madeira no ano passado. Por causa da guerra e das sanções contra a Rússia, outros países produtores e exportadores de madeira estão relaxando leis ambientais para aumentar produção e suprir escassez, noticiou o Financial Times: “Logo após a invasão de fevereiro, Kiev suspendeu a regulação que proíbe extração de madeira em florestas protegidas durante a primavera e o início do verão” para ajudar a financiar a guerra. “Grupos ambientalistas temem que a decisão possa levar a perdas em grande escala em áreas em que extração ilegal de madeira e ausência de manejo florestal já são generalizadas.”

Ao longo do século passado, notou Reid, “países deram grandes passos colaborativos no sentido da proteção do meio ambiente e de seus guardiões — seja na Lei do Ar Limpo, de 1970, nos Estados Unidos; ou na Constituição brasileira de 1988, que reconheceu os direitos dos povos indígenas de controlar as terras que eles têm protegido há milênios. Territórios protegidos mais que dobraram em tamanho no mundo desde 1990″. E agora, do nada, um homem lança uma guerra assassina no centro global de produção de grãos e subitamente todo o progresso relativo a normas e leis arrisca virar fumaça, assim como as florestas.

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É por isso que a guerra de Putin não é apenas um crime contra a Ucrânia e a humanidade. É também um crime contra o lar que todos nós compartilhamos: o planeta Terra. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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