A guerra na Ucrânia e os paradoxos da política; leia artigo

Mesmo com o fim da Guerra Fria, alguns políticos de esquerda, no Brasil e no mundo, ainda vêem na Rússia uma aliada contra os Estados Unidos e o capitalismo

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Por André Lajst

A Rússia foi o país que deu origem à União Soviética, poucos anos depois da revolução de 1917 que derrubou a autocracia dos czares. A partir de 1922, vários países do antigo Império Russo (entre eles, a Ucrânia) se unificaram na URSS sob a direção do Partido Comunista, que governou até 1991 na forma de uma ditadura de partido único. Um novo império foi se expandindo e controlando outros territórios, seja pela anexação ou pela formação de governos satélite controlados desde Moscou, inclusive a metade da Alemanha que ficou na órbita soviética depois da 2.ª Guerra.

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A revolução socialista de 1917 tinha derrubado uma autocracia, mas, em pouco tempo, acabou instaurando outra. Com a morte de Lênin em 1924 e a chegada de Stalin ao poder em 1929, o regime soviético suprimiu as poucas liberdades que a revolução tinha conquistado e virou uma ditadura que, ao longo de décadas, assassinou dezenas de milhões de pessoas, encarcerou outros milhões, sujeitou populações inteiras à fome, dominou outros países e instalou o terror e o controle absoluto do Estado, tanto na economia quanto na vida privada das pessoas.

Apesar de tudo isso, num mundo polarizado entre o capitalismo e o socialismo, principalmente durante a Guerra Fria, esse regime autoritário e assassino recebeu o apoio de políticos e de muitas pessoas de esquerda (embora não toda a esquerda) de diferentes lugares do mundo, que viam na União Soviética um contrapeso aos Estados Unidos e uma aliada no enfrentamento ao capitalismo. Da mesma, outros políticos e muitas pessoas de direita (embora não toda a direita) apoiaram outras ditaduras que, alinhadas com o lado capitalista (por exemplo, no Brasil e em outros países da América Latina), eram vistas como aliadas no enfrentamento ao comunismo.

Imagem de satélite mostra base aérea de Kherson, na Ucrânia, após ataque russo Foto: Planet Labs PBC/AP

Após a queda do Muro de Berlim em 1989 e do regime comunista soviético em 1991, a URSS foi dissolvida e suas 15 repúblicas se tornaram independentes, entre elas a Ucrânia. A Rússia passou por um processo de liberalização econômica, adotou o capitalismo e normalizou suas relações com o Ocidente, mas o regime político continuou autoritário.

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Vladimir Putin, um ex-tenente coronel da KGB que em 1991, após a queda do comunismo, deixou o serviço para entrar na política, começou a conquistar muito poder durante o governo de Boris Yeltsin e ocupou seu lugar quando este renunciou, em 1999. Desde então, seja como presidente ou primeiro-ministro, ele exerce na prática como ditador, encarcerando, expulsando ou assassinando seus adversários políticos e controlando tudo sem aceitar qualquer tipo de oposição.

Governo Putin

Tanto na política econômica quanto nas questões de direitos civis (que muitos chamam “costumes”), o governo de Putin é de extrema direita e muito conservador. A Rússia tem um regime econômico capitalista e oligárquico extremamente corrupto, com uma concentração de renda muito maior à dos Estados Unidos. A parada gay é proibida, os ativistas LGBTQI+ são perseguidos e há leis contra o que Putin chama “propaganda gay”: até um filme com personagens homossexuais pode ser considerado ilegal. A imprensa livre é censurada, o Estado promove a propaganda nacionalista e o culto à figura do líder e não há sequer liberdades básicas garantidas. Nas últimas semanas, após a invasão à Ucrânia, até o Twitter e o Facebook foram proibidos e as pessoas podem ser presas por se oporem à guerra.

Mesmo assim, alguns políticos de esquerda, no Brasil e no mundo, ainda vêem na Rússia uma aliada contra os Estados Unidos e o capitalismo, mesmo que esta nova Rússia de Putin não seja mais um país de esquerda. E vejam a contradição: nos últimos 30 anos, os Estados Unidos ficaram mais progressistas do que a Rússia em vários assuntos. A concentração da renda, embora altíssima, é menor nos EUA. Enquanto em Moscou os gays são perseguidos, em Nova Iorque podem se casar e adotar filhos. Um jornalista, escritor ou artista de esquerda, inclusive de extrema esquerda, tem mais liberdade de expressão em Washington do que em São Petersburgo. E o governo Biden, do Partido Democrata, mesmo sendo de centro para os nossos padrões, está bem à “esquerda " do governo Putin.

Agora, com a invasão imperialista russa à Ucrânia, alguns políticos de esquerda (felizmente, não todos) acham ainda que a Rússia está certa e, com uma retórica fantasiosa, acusam os EUA pelo conflito e parecem acreditar que a Ucrânia foi invadida pela Otan. Um delírio. Com esses argumentos, continuam apoiando um ditador de extrema direita (amigo de diversos políticos de extrema direita da Europa, como Marine Le Pen ou Matteo Salvini) e atacam um país livre, democrático e governado por um presidente eleito com amplo apoio popular.

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Culpar a Otan — uma aliança de defesa e não de ataque — como justificativa para apoiar o absurdo ataque russo a um país soberano, apenas para jogar para às massas o velho antagonismo anti-EUA da década de 60, é tão engessado quanto hilário. Ignorantes políticos que votam nesses políticos acham que a Rússia representa a esquerda e os EUA a direita, quando na verdade a Rússia é uma ditadura de extrema direita e ultra-conservadora, e os EUA são um país liberal e democrático que tem atualmente um governo progressista.

É por isso que muitos líderes de esquerda de outros países se posicionaram imediatamente ao lado da Ucrânia e contra o ditador Putin. Por exemplo, os governos de esquerda da Espanha e de Portugal, o novo presidente do Chile, o presidente da Argentina e tantos outros. Mas aqui no Brasil ainda tem gente que não entende.

A política é realmente um saco de paradoxos. A gente vê políticos que aqui dizem ser a favor da democracia e liberdade e lutam por questões sociais importantes. Ao mesmo tempo, apoiam ditadores que praticam exatamente o oposto apenas porque estes ditadores são contra ou críticos dos EUA e do Ocidente, que por sua vez produziu mais igualdade e democracia em questões sociais do que estas ditaduras jamais produziram.

Seria cômico se não fosse trágico.

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*André Lajst é cientista político e presidente-executivo da StandWithUs Brasil

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