THE NEW YORK TIMES - Se os dez anos recentes da história ocidental apresentaram uma prolongada disputa de luta greco-romana entre o populismo e o progressismo, a invasão de Vladimir Putin à Ucrânia inspirou muitos progressistas a declarar esperançosamente que o jogo acabou, com seu oponente imobilizado.
E com alguma razão. A guerra de Putin impingiu dois golpes contra o populismo, um direto e outro indireto. Primeiro, houve o constrangimento para qualquer líder populista, europeu ou americano, que já tenha brindado a Putin com boas palavras ou pelo menos o apontado como um adversário engenhoso cujas habilidades de estadista deixam tontas nossas próprias elites incompetentes.
Tais flertes resultaram agora, em grande medida, em recuos e reversões, forçando populistas a escolher entre a automarginalização ou uma guinada desavergonhada. O que significa dizer: não se surpreenda se Donald Trump de alguma maneira se transformar no maior linha-dura já visto em relação à Rússia quando 2024 chegar.
Simplismo populista em xeque
O golpe mais profundo, porém, é o indireto: o quanto a invasão à Ucrânia revelou quão incerto e perdido o instinto populista se torna quando confrontado por um adversário que não se enquadra facilmente em seu foco na corrupção doméstica ocidental, suas narrativas a respeito da perfídia e do desvario da elite.
Essa incerteza não se restringe aos populistas de direita; também a vemos entre vozes anti-establishment de todos os campos neste momento — os implicantes esquerdistas que não acreditavam que a Ucrânia seria atacada porque não acreditam que a inteligência americana seja capaz de estar certa a respeito de qualquer coisa, os críticos do poder americano que não esperavam a resiliência ucraniana porque assumiam que qualquer regime apoiado por nossas elites de política externa seria incapaz de sobreviver, as personalidades da mídia buscando narrativas que se encaixem em preconceitos populistas porque o quadro mais amplo da agressão putinista e a unidade ocidental não cabem nesses moldes.
Em meio a esta imolação, o Partido Republicano, veículo maior do populismo, parece estar retornando aos seus instintos pré-Trump. Ao longo da presidência de Trump, havia uma incerteza básica a respeito do que o populismo significa em termos de política externa. Fortificação e isolacionismo ou uma nova Guerra Fria com a China? Deixar a Otan totalmente ou fortalecer a aliança obrigando seus membros a pagar mais? Combater menos guerras ou atirar sem medo das consequências? Pat Buchanan ou John Bolton?
Retrato do horror da invasão russa
O retorno dos falcões?
Neste momento, porém, se olharmos para as pesquisas entre eleitores do Partido Republicano ou escutarmos os políticos da legenda, o que percebemos é principalmente uma reversão para a belicosidade franca, para uma visão de que a Casa Branca de Joe Biden talvez não esteja sendo agressiva o suficiente — ou seja, para o lugar em que o partido se colocava antes da rebelião de Trump acontecer.
Mas nessa reversão também podemos perceber uma dificuldade em assumir que, se o populismo está afundando, o progressismo deverá se beneficiar. Afinal, Bolton está longe de ser um defensor do progressismo internacional, e o retorno da belicosidade republicana é principalmente uma retomada do nacionalismo americano de antigamente — desta vez trabalhando contra o populismo, em vez de as forças pressionarem para o mesmo caminho.
E o que é verdadeiro dentro do Partido Republicano é verdadeiro de modo mais geral. Os combatentes ucranianos que todos tanto admiram estão claramente lutando mais por nacionalismo do que por progressismo, e alguns não estão lutando por ideais progressistas absolutamente. O país europeu que, pode-se afirmar, está fazendo o máximo para ajudá-los é a Polônia, até ontem a bête noire do progressismo ocidental em razão de seu governo nacionalista e socialmente conservador. O repentino senso de unidade ocidental parece muito… bem, ocidental; essa coalizão que confronta Putin não é global, mas euroamericana — e infundida com bastante do chauvinismo civilizacional que o progressismo aspira superar.
Nos meios de comunicação americanos, também, é um jingoísmo centrista, no lugar de um progressismo cosmopolita, que parece ascender neste momento: a onda de cancelamentos russofóbicos; o súbito entusiasmo “EUA: ame-o ou deixe-o” de personalidades de TV triviais; o entusiasmo com a escalada militar, maldito seja o risco nuclear, entre figuras supostamente sensatas que no passado lideraram a oposição ao trumpismo.
Nada disso deveria surpreender. Sempre foi verdade que uma sociedade progressista depende, para sua unidade e vigor, de outras forças que não as progressistas: compaixão religiosa, orgulho nacional, um senso de missão providencial, um certo grau de solidariedade étnica e, evidentemente, medo de algum adversário externo. Na sua melhor forma, o progressismo funciona para guiar e canalizar essas forças; e na pior, oscila entre ignorá-las e ser sobrepujado por elas.
Entre os progressistas otimistas do momento atual, podemos ver como essa oscilação ocorre. “Uma derrota da Rússia tornará possível um ‘renascimento da liberdade’”, escreveu Francis Fukuyama na semana passada, “e sacudirá nossa estagnação a respeito do declínio da democracia internacional. O espírito de 1989 renascerá”. Posteriormente, em entrevista a Greg Sargent, do Washington Post, Fukuyama definiu o atual momento como uma oportunidade para ocidentais e americanos optarem por um progressismo renovado, fruto de um reconhecimento de que a alternativa nacionalista é “medonha”.
Mas umas das lições cruciais dos anos recentes é que o espírito de 1989 foi, em si, tanto um espírito de um nacionalismo europeu-oriental reavivado quanto de um progressismo por si mesmo. O que é razão para países como Polônia e Hungria terem desapontado gravemente os progressistas em seu subsequente desenvolvimento… até agora, é claro, quando o nacionalismo polonês torna-se repentinamente bastião do democrático e progressista Ocidente.
Então, progressistas que assistem o populismo afundar precisam de um entendimento equilibrado de sua própria posição, sua dependência em relação ao nacionalismo, ao particularismo e até ao chauvinismo, sua obrigação de filtrar essas forças para que o bom (admiração pelo patriotismo dos ucranianos e a heroica masculinidade de Volodmir Zelenski) sobrepuje o ruim (boicotes sobre algum pianista prodígio da Rússia, uma corrida para a guerra nuclear).
E eles também precisam evitar a ilusão de que a perversa e incompetente invasão de Putin significa que todas as queixas a respeito dos problemas internos do Ocidente podem ser desqualificadas seguramente como vazias ou falsas; ou desmerecidas como ódio de si.
Na semana passada, por exemplo, o especialista em Rússia Stephen Kotkin disse a David Remnick, da New Yorker, que a invasão de Putin refuta “toda a besteira de que o Ocidente é decadente, de que o Ocidente acabou, de que o Ocidente está em declínio, de que vivemos em um mundo multipolar e a respeito da ascensão da China”. Com o Ocidente unindo-se à resiliente Ucrânia, “tudo isso caiu por terra”.
O que caiu por terra foi a ideia de que a Rússia de Putin representa algum tipo de alternativa pós-progressista e tradicionalista eficaz para a solução dos problemas do Ocidente e cujos militares poderiam simplesmente passar como um rolo compressor sobre o Leste Europeu. Mas todos aqueles problemas do Ocidente persistem: o poder dos EUA está em relativo declínio, o poder da China aumentou dramaticamente, e nada do que eu, enquanto autonomeado especialista no assunto, classificaria como os problemas cruciais da decadência americana — declínio demográfico, decepção e estagnação econômica, uma tessitura social cada vez mais obscurecida por drogas, depressão e suicídios — de alguma maneira desapareceram só porque o Exército de Moscou enfrenta dificuldades nos arredores de Kiev.
Já que esses problemas são cruciais para entender de onde veio o populismo em primeiro lugar, é imprudência da parte dos progressistas declarar vitória com base em mudanças na ordem internacional enquanto simplesmente ignoram o descontentamento doméstico. A inadequação do populismo para este momento em particular deu oportunidade aos seus inimigos e críticos. Mas eles desperdiçarão a oportunidade de convencerem a si mesmos de que o desafio externo fez de alguma maneira a crise interna desaparecer. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.