A identidade chinesa

Como o Japão nos anos 90, a China busca conciliar tradições ancestrais com seu novo papel de agente global

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Por Sebastian Mallaby
Atualização:

No início da década de 90, quando morei no Japão, os japoneses embarcaram numa busca por sua identidade. O país havia se tornado uma potência econômica, mas a política não acompanhou esse avanço; o Japão não sabia o que fazer com o peso passou a ter no mundo. Alguns acreditavam que o Japão deveria se tornar um participante mundial sem alterar as regras do jogo global e aceitar o sistema internacional conforme modelo criado pelo Ocidente. Mas vozes cada vez mais altas queriam mais do que isto. O Japão deveria desafiar o "consenso de Washington" no Banco Mundial e no FMI, escapar do casulo da aliança de segurança EUA-Japão e forjar uma política externa distinta. Em outras palavras, a modernização não deveria ser um sinônimo de americanização - não no caso de uma cultura ancestral e orgulhosa. É claro que o prolongado declínio econômico japonês freou suas ambições. Em março, quando passei nove dias entre intelectuais de Pequim, lembrei desses debates. Como no Japão de duas décadas atrás, o milagre econômico chinês ultrapassa o estado da maturidade. Como disse Sun Zhe, da Universidade Tsinghua, de Pequim, o país hoje lembra as primeiras participações do jogador de basquete Yao Ming na NBA, quando sua confiança sob a cesta ainda não correspondia à estatura de 2,26 metros. E como o Japão de duas décadas atrás, a China procura sua identidade. Nos anos 80, intelectuais chineses enxergavam no Ocidente um modelo. "Nos EUA, até a lua é mais brilhante", era um ditado da época. Os manifestantes da Praça da Paz Celestial ergueram uma Deusa da Democracia, de 9 metros da altura, inspirada na Estátua da Liberdade. Mas a guerra do Iraque, a crise financeira e os esforços vacilantes para reconstruir New Orleans após o furacão Katrina foram fatores que contribuíram para manchar de vez a imagem que os chineses tinham dos EUA. "Aprendemos com a União Soviética, e ela ruiu. Aprendemos com o Japão, e ele entrou em colapso. Aprendemos com os EUA, e eles se arruinaram", é a piada comum em Pequim recentemente. Ajuda a mais fracos. No Japão, agitações nacionalistas manifestaram um interesse renovado na história. Takamori Saigo, um samurai que se rebelou contra a abertura do país ao Ocidente no século 19, tornou-se o tema de uma série de livros que vendeu 8 milhões de exemplares. Na China, há pessoas debatendo a obra de Yan Xuetong, outro professor da Tsinghua. Os textos de Yan associam as aspirações chinesas modernas à filosofia ancestral. Num livro cuja versão em inglês terá o selo de aprovação de Henry Kissinger, Yan esboça o que poderia ser chamado de política externa confucionista. A partir da perspectiva do Ocidente, algumas das tradições desenterradas por Yan parecem reconfortantes. Ele cita um antigo sábio, Xun Zi, segundo o qual grandes poderes devem respeitar uns aos outros se aspiram "à segurança e à estabilidade das rochas". Além disso, diz Yan, a tradição chinesa determina que os Estados mais fortes devem ajudar os mais fracos. Se piratas ameaçam os cidadãos de países que não dispõem da força marítima, um país dotado de uma marinha poderosa tem o dever de manter a ordem. Se isso significar que uma China poderosa desempenhará o papel de policial global benigno, esta ascensão pode ser bem-vinda. Mas as conclusões de Yan podem também soar inquietantes. Ele explica que a tradição chinesa rejeita a ideia do valor intrínseco da vida humana. "O valor da vida de cada um não é igual, Uma pessoa incivilizada - um bárbaro - tem uma vida menos importante." A noção, diz Yan, é a de que uma China poderosa não enxergaria motivo para combater uma crise mundial de saúde pública, como a aids. Bárbaros não merecem ser salvos. Será que uma China poderosa teria interesse em ajudar bárbaros a atingir um estado superior de civilização? Yan acredita que não: na tradição cristã, os missionários buscam a conversão de novos fiéis, mas na tradição confucionista, não se espera dos professores que recrutem pupilos. Os bárbaros podem aprender com a China, mas se não o fizerem, o problema é deles. A China faz negócios com os bárbaros - basta pensar em Zimbábue, Mianmar e Sudão -, mas não tenta mudá-los.Como a Grã-Bretanha e os EUA em períodos anteriores, a China não pode investir e comercializar globalmente sem projetar seu poder globalmente. Conforme seus cidadãos e empresas se estabelecem por todo o mundo, Os chineses perderam a fé no comunismo, mas nem mesmo o mais aguerrido dos professores com quem conversei estava disposto a adotar a democracia ocidental. Assim, a China busca um futuro no seu próprio passado, ressuscitando a história que os comunistas um dia enterraram. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL COLUNISTA E ESCRITOR

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