THE NEW YORK TIMES — Por mais de uma década a China cortejou países em desenvolvimento frustrados com o Ocidente. Pequim deixando a pobreza para trás era fonte de inspiração. E enquanto desafiava a ordem do pós-guerra, especialmente com seu foco global sobre desenvolvimento por meio de comércio, empréstimos e projetos de infraestrutura, a China forneceu bilhões de dólares muito necessários a nações pobres.
Mas agora Pequim encara um outro gigante asiático na disputa pela liderança do que veio a ser classificado como “sul global”. Uma Índia recém-imbuída de confiança apresenta-se para os países em desenvolvimento como um tipo diferente de liderança — grande, importante e mais bem posicionada do que a China em um mundo crescentemente polarizado para pressionar o Ocidente a alterar suas maneiras.
Prova A: o inesperado consenso que a Índia alcançou na cúpula do Grupo dos 20 em Nova Délhi no fim de semana passado.
Com ajuda de outras nações em desenvolvimento, a Índia persuadiu Estados Unidos e Europa a suavizar a declaração sobre a invasão russa à Ucrânia para que o fórum pudesse colocar foco sobre as preocupações dos países mais pobres, incluindo em relação a dívidas internacionais e financiamentos ambientais. A Índia também liderou o resultado mais tangível até aqui de sua crescente campanha para defender o sul global: a entrada da União Africana no G-20, colocando-a em par com a União Europeia.
“Há uma mudança estrutural processando-se na ordem global”, afirmou Kishore Mahbubani, ex-embaixador de Cingapura e autor de “Has China Won?” (A China venceu?). “O poder do Ocidente está em declínio; o peso e o poder do sul global — o mundo fora do Ocidente — estão crescendo.”
Somente um país é capaz de servir de ponte entre “o Ocidente e o restante”, acrescentou Mahbubani: “a Índia”.
Posicionamento
Num momento em que um novo tipo de Guerra Fria entre EUA e China parece definir todo o debate global, o posicionamento da Índia possui claro apelo.
Washington e Pequim não são especialmente queridos entre países em desenvolvimento. Os EUA são criticados por colocar mais foco em poderio militar do que assistência econômica. E a marca da projeção chinesa— a Iniciativa Cinturão e Rota, de infraestrutura — alimentou reações negativas quando a China resistiu a renegociar dívidas arrebatadoras que deixam muitos países diante da possibilidade de calote.
O que a Índia em ascensão sob o primeiro-ministro Narendra Modi oferece, em vez disso, é menos tirânico e menos ligado a dinheiro ou defesa: uma retórica efusivamente em seu apoio, um ouvido para compartilhar agruras comuns e a promessa de diversificar as instituições que forjam a política internacional.
A Índia ainda precisa percorrer um longo caminho para ser classificada como grande potência. Mesmo segundo suas próprias estimativas mais otimistas, ainda levará décadas para que o país seja considerado desenvolvido. Seus quadros diplomáticos continuam menores do que os de nações com uma fração de seu tamanho. E a agenda nacionalista-hindu do atual governo tem contribuído para um ambiente de instabilidade persistente.
Mas com a economia indiana crescendo rapidamente e o Ocidente buscando aliados para se contrapor à China, Nova Délhi se encontra numa posição relevante. Quando o líder chinês, Xi Jinping, decidiu faltar à cúpula do G-20, na semana passada, alguns consideraram sua ausência prova de que Pequim não se interessa mais em moldar a ordem global, mas em substituí-la. Com isso, houve abertura para a Índia.
Na cúpula, Modi encarnou o espírito do amigo construtor de pontes. Apertou a mão do presidente Joe Biden ao recebê-lo no evento. Para deixar claro que as relações da Índia com os EUA são próximas e estão ficando mais próximas ainda — uma condição crucial para a construção da influência para ajudar nações em desenvolvimento — Modi compareceu a várias reuniões com Biden anteriormente à cúpula e em seus bastidores.
No primeiro dia do encontro, Modi anunciou a entrada da União Africana batendo o martelo. Ele se levantou de sua cadeira para dar um longo e forte abraço em Azali Assoumani, presidente da UA e de Comores.
Essas imagens de calidez pessoal ofereceram um contraste à usual rigidez distanciada de Xi. Mas Nova Délhi tem tido cuidado em não confrontar diretamente sua poderosa vizinha: autoridades indianas elogiaram o apoio da China à declaração conjunta do G-20.
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Influência
Em vez disso, Nova Délhi tem colocado foco em formas próprias de influência. Conforme sua economia cresce, a Índia tem expandido o comércio com África e América Latina e construído suas próprias conexões, por meio de uma grande e bem-sucedida diáspora, no Oriente Médio e em outras regiões.
O que falta à Índia em recursos o país tem tentado compensar em boa vontade, compartilhando o que possui em tempos de necessidade: de envios de vacinas contra covid a auxiliar países a construir plataformas digitais nacionais para reunir uma ampla gama de vozes enquanto presidente do G-20.
Anteriormente este ano, a Índia reuniu os líderes de mais de 100 países em desenvolvimento e mais pobres para o evento que batizou de Cúpula Voz do Sul Global, um encontro virtual.
“Três quartos da humanidade vivem nos nossos países. Nós também deveríamos ter voz equivalente”, disse Modi aos líderes. “Conforme o modelo de oito décadas de governança global muda vagarosamente, nós deveríamos tentar moldar a ordem que surge.”
O encontro foi anunciado como uma sessão de debate de ideias. Mas também houve uma mensagem para a China: ela não foi convidada, assim como nenhuma outra nação do G-20.
O governo chinês pode não estar especialmente preocupado. “A China definitivamente considera a Índia um rival importante, particularmente na Ásia em razão das relações cada vez mais próximas de Nova Délhi com os EUA, mas não em termos de liderança do sul global”, afirmou Eric Olander, editor do website China Global South Project. “A China está bastante confiante de que a Índia não é capaz de competir com Pequim nas áreas críticas que mais interessam aos países em desenvolvimento, especificamente financiamento de desenvolvimento, infraestrutura e comércio.”
Essa disparidade evidenciou-se na recente cúpula do Brics, grupo que inclui Brasil, Rússia e África do Sul além de Índia e China. Mesmo após Modi ter passado um ano promovendo a Índia como voz do sul global, o líder tratado como rei foi Xi.
Em um vídeo de uma reunião paralela, todos os líderes, incluindo Modi, esperavam a chegada de Xi para os apertos de mãos. Eles ficaram de pé até Xi se acomodar em um assento muito maior que o deles: um sofá inteiro.
“O dinheiro manda”, afirmou Ziyanda Stuurman, analista sênior do Time África do Grupo Eurásia. “Seja Índia, EUA ou Europa, se esses atores não forem capazes de equiparar-se à China ou ser tão sérios quanto ela em conceder financiamentos, a China continuará a desfrutar de seu papel de liderança.”
O governo chinês não pretende ceder sua posição e segue apreensivo em relação à inclinação de Nova Délhi ao Ocidente como meio de conter a ascensão da China.
“Os países ocidentais liderados pelos EUA querem usar a Índia para dividir o sul global e enfraquecer a posição da China entre países em desenvolvimento”, afirmou um editorial recente do jornal Global Times, organismo porta-voz do Partido Comunista Chinês.
Mas depois de um ano à frente do G-20, a Índia desfruta de um impulso nacional na arena internacional ao mesmo tempo que tenta manter relações robustas com o sul global. Autoridades indianas deixaram claro que seu sucesso na cúpula deveu-se também a outras nações em desenvolvimento que se uniram em torno da Índia, especialmente Brasil, África do Sul e Indonésia.
Em alguns meses, Modi e seu partido encaram uma nova eleição. No domingo, depois que a maioria dos líderes tinha partido, ele caminhou pelo centro de imprensa da cúpula em uma volta olímpica. Modi não respondeu às perguntas dos numerosos repórteres que não tinham sido autorizados a deixar o local do evento antes dele. Modi simplesmente sorriu, acenou para as equipes de TV e tirou selfies com jovens trabalhadores da cafeteria dizendo “Uau”. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
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