A Índia está armando civis em uma das regiões mais militarizadas do planeta

O governo está ressuscitando milícias locais em Jamu, na conflagrada Caxemira, evidenciando os limites de sua abordagem militar na região

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Por Showkat Nanda e Atul Loke / The New York Times

DHANGRI, JAMU e CAXEMIRA - Conforme caía a noite no vilarejo de Dhangri, no Himalaia, uma dúzia de homens armados saiu de suas casas um após o outro com fuzis pendurados nos ombros, como se estivessem partindo para a guerra. Com movimentos furtivos, eles patrulharam as cercanias sob o luar em busca de sinais de perigo, sua vulto recortado contra o horizonte.

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Durante o dia, eles trabalham como motoristas, comerciantes e agricultores. De noite, são membros de uma milícia local anteriormente adormecida, que o governo indiano está ressuscitando na região de Jamu e Caxemira em resposta a ataques mortíferos de militantes contra famílias hindus.

“Não podemos sentar e assistir impassíveis enquanto nosso povo é morto”, afirmou Vijay Kumar, membro do grupo de voluntários que trabalha como eletricista.

Integrantes da Defesa do vilarejo se preparam para uma noite de patrulha em Rajouri Foto: Atul Loke/The New York Times

O fato de o governo indiano ter se sentido compelido a armar milhares de civis em um dos lugares mais militarizados do planeta mostra os limites da estratégia mais muscular do primeiro-ministro Narendra Modi de controlar a região há muito conflagrada.

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Por décadas, uma militância separatista tem assolado Jamu e Caxemira, região no Himalaia que é disputada por Índia e Paquistão. Milhares de pessoas, tanto civis que vivem na região quanto forças de segurança indianas, morreram em meio à violência.

Fim da semiautonomia

Em 2019, o governo nacionalista hindu de Modi revogou subitamente o status de semiautonomia da região, de maioria muçulmana, trazendo o vale para o controle direto de Nova Délhi, que mandou mais tropas para lá, combateu a dissidência e colocou sob prisão domiciliar até líderes leais à Índia.

As autoridades de Modi afirmam que as mudanças aperfeiçoaram a governança e cortaram a corrupção que alimentava o ciclo da militância. Elas apontam para o grande número de turistas frequentando a região como um sinal de que a normalidade retornou.

Mas quase quatro anos depois, a democracia continua suspensa por lá. Repetidos ataques contra civis levantaram dúvidas a respeito da abordagem militar do governo para o que analistas afirmam ser fundamentalmente um problema político na Caxemira, além de questionar suas afirmações de que a região desfruta de paz e prosperidade.

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Os hindus locais, muitos dos quais fugiram do vale durante uma irrupção anterior de violência, nos anos 90, sentem-se novamente sob ameaça mesmo no lado de Jamu, no sul, que escapou de grande parte da carnificina décadas atrás. Grandes números de hindus deixaram o vale ou reuniram-se para protestar implorando para o governo que os transfira para lugares mais seguros.

Muitos em Jamu se alistaram para garantir sua própria segurança, apesar de receberem do governo pouco treinamento e uma arma de fogo similar às usadas pelos britânicos um século atrás.

Parentes na casa de Saroj Bala, que teve os dois filhos mortos em um ataque no mês passado em Rajouri Foto: Atul Loke/The New York Times

“Parece estranho que na região mais militarizada do planeta você precise armar civis para garantir a segurança dos cidadãos, que presumivelmente é função do Exército”, afirmou o historiador da política e acadêmico Siddiq Wahid. “É uma contradição em muitos aspectos.”

Milícias locais

O governo apelou para a criação de milícias locais em Jamu pela primeira vez nos anos 90, no pico da militância. Aproximadamente 4 mil desses grupos, chamados comitês de defesa do vilarejo, reuniram dezenas de milhares de voluntários.

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Por fim as tensões amainaram, conforme o governo fez face aos militantes com uma mistura entre força e diálogo e fomentou líderes políticos da Caxemira que consideravam a região parte da Índia. As milícias, que foram acusadas de abusos contra outros civis, acabaram quase totalmente desativadas depois que a situação na Caxemira melhorou.

No vilarejo de Dhangri, o ímpeto de armar civis novamente decorreu de uma série de ataques sangrentos contra hindus em janeiro, que se seguiram a outra série de ataques mortíferos de militantes no distrito mais amplo, ao longo dos meses anteriores.

Saroj Bala, de 58 anos, estava lavando a louça de noite quando ouviu o ruído de um disparo e, logo depois, os berros de seu filho mais velho, Deepak Sharma. Ela e seu caçula, Prince Sharma, correram para fora e viram dois atiradores mascarados, um deles trajando uniforme militar.

Os militantes atiraram em Prince a queima-roupa — posteriormente ele morreu no hospital — e então continuaram a disparar contra o corpo sem vida de Deepak.

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Armas do grupo de defesa são guardadas embaixo da cama em Rajouri  Foto: Atul Loke/The New York Times

Menos de dois minutos depois, os militantes atacaram outra casa, onde eles trancaram Neeta Devi, de 32 anos, e os filhos dela na cozinha antes de executar a tiros seu marido, Shishu Pal, e seu sogro, Pritam Lal.

Quando os habitantes do vilarejo perceberam o que estava acontecendo, os atiradores já tinham matado também o oficial do Exército aposentado Satish Kumar, conforme ele tentou impedi-los no portão de sua casa.

Na manhã seguinte, quando as pessoas de luto se reuniam na casa de Bala, uma bomba explodiu diante do local, matando seus dois filhos, Vihaan, de 4 anos, e Smikhsha, de 14, que eram primos dos irmãos mortos.

Bala, a única sobrevivente em sua família, afirmou que tem dificuldades para dormir desde o ataque. “Quando me deito e fecho os olhos, as caras deles aparecem na minha frente”, afirmou ela.

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Autoridades indianas atribuíram as mortes ao grupo militante Lashkar-e-Taiba, uma das muitas organizações clandestinas ativas na região.

Agora, apenas no Distrito de Rajouri, que inclui Dhangri, aproximadamente 5,2 mil voluntários estão sendo rearmados, de acordo com autoridades locais de segurança.

“O vasto terreno do distrito apresenta desafios para o controle completo. A maior parte da presença do Exército está concentrada ao longo da Linha de Controle, de 120 quilômetros, no distrito”, afirmou Mohammad Aslam, graduada autoridade policial de Rajouri, referindo-se ao limite que divide o lado indiano da Caxemira do lado controlado pelo Paquistão.

Resistência de partidos

Partidos políticos locais na Caxemira são apreensivos há muito tempo em relação a entregar armas para civis. De acordo com registros policiais, houve 221 casos documentados de crimes como assassinatos, estupros e extorsões desde a formação das milícias, em meados dos anos 90.

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Autoridades de segurança afirmaram que estão adotando medidas para controlar abusos. As milícias estão sob comando da diretoria de polícia do distrito, e todos os grupos são liderados por oficiais do Exército aposentados. Os milicianos, que ganham cerca de US$ 50 por mês pelo emprego, recebem armas somente após uma rígida checagem de antecedentes, afirmam as autoridades.

Uma segunda preocupação tem sido que armar civis seletivamente em áreas que abrigam populações tanto hindus quanto muçulmanas poderia alimentar tensões nas comunidades.

Líderes muçulmanos locais afirmaram que apenas grupos hindus foram armados. As autoridades de segurança justificaram essa decisão afirmando que os ataques recentes tiveram apenas hindus como alvo.

“Havia menos de 3% de muçulmanos nos comitês de defesa anteriores”, afirmou Mohammad Farooq, muçulmano que vive em Rajouri. “Agora há 0%.”

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Semanas após as mortes de janeiro em Dhangri, moradores do vilarejo afirmaram estar frustrados com a impunidade dos militantes. Ainda temerosos, os civis armados seguem com suas patrulhas.

Conforme os homens desciam uma trilha dentro de uma floresta, em uma noite recente, marchando em fila única, eles reconheceram que são mal equipados e insuficientemente treinados para afrontar a ameaça. Mas disseram que não têm escolha.

“Mesmo que não tenhamos armas avançadas”, afirmou Amaranth, um dos voluntários, que trabalha como criador de gado durante o dia, “nós faremos o melhor que pudermos para defender nossa comunidade”. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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