Shalom Nagar, o relutante guarda penitenciário israelense que aos 23 anos foi escolhido para enforcar Adolf Eichmann, o criminoso de guerra nazista condenado por crimes contra a humanidade e genocídio no assassinato de 6 milhões de judeus, morreu em 26 de novembro, em Israel, com mais de 85 anos.
Sua morte foi confirmada por Avigail Sperber, que dirigiu “The Hangman”, um filme de 2010 sobre Nagar, juntamente com Netalie Braun. Sperber não disse onde ele morreu. Sua idade, segundo relatos de diferentes fontes, era 86 ou 88 anos.
Por décadas, até uma emissora de rádio identificá-lo, em 2004, Nagar ocultou sua conexão com a execução de Eichmann, temendo retaliações de neonazistas. Mas o enforcamento, à meia-noite, sempre o assombrou.
Em 31 de maio de 1962, Nagar estava caminhando com sua mulher, Ora, e seu filho pequeno quando uma van da polícia parou cantando pneus, e ele foi levado. Nagar soube que isso significava que a hora da execução de Eichmann tinha sido marcada e que ele estava sendo convocado para trabalhar como carrasco. Nagar convenceu o motorista a fazer a volta e explicar à sua mulher que ele não estava sendo sequestrado.
Antes da execução, o único caso de pena de morte na história de Israel, Eichmann pediu vinho branco e cigarros. Ele se recusou a ser vendado.
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O trabalho de Nagar era abrir o alçapão da forca, fazendo o prisioneiro despencar 9 metros até a morte. Mas o pior, recordou-se Nagar, foi o que veio depois: a tarefa sinistra de remover o nó do pescoço do prisioneiro e colocar seu corpo sobre uma maca instável e levá-lo até um forno construído especialmente para sua cremação.
“O rosto de Eichmann ficou branco como giz, seus olhos incharam, e sua língua ficou pendurada para fora da boca”, disse Nagar à revista Mishpacha, em 2005. “A corda friccionou a pele de seu pescoço, então sua língua e seu tórax ficaram cobertos de sangue.”
Ele acrescentou: “Eu não sabia que quando uma pessoa é estrangulada todo o ar permanece em seu estômago, e quando eu o ergui, todo o ar que estava dentro saiu, e o som mais horripilante foi emitido por sua boca — ‘baaaaa!’. Senti que o Anjo da Morte tinha chegado para me levar também”.
Nagar deveria acompanhar as cinzas até um porto, para que um barco da Guarda Costeira pudesse levá-las para ser despejadas em águas internacionais, mas ele ficou abalado demais e foi mandado para casa. Quando chegou, coberto de sangue, sua mulher ficou chocada.
Acredita-se que Shalom Nagar nasceu em um vilarejo no Iêmen, em 1936, mas algumas fontes afirmam que ele nasceu em 1938.
Relatos sobre sua infância são vagos, mas ele afirmou em entrevistas que seu pai morreu quando tinha cerca de 7 anos. Sua mãe se casou novamente logo depois, abandonando Nagar e seus quatro irmãos. Quando tinha 12 anos, mais ou menos na mesma época da declaração de independência de Israel, ele emigrou, percorrendo a pé o maior trecho da viagem. Nagar se alistou no Exército de Israel aos 16 anos, servindo em uma brigada de paraquedistas, e então trabalhou para a polícia e como guarda de fronteira, até entrar no Serviço Penitenciário de Israel, onde passou 28 anos.
Em 1950, Eichmann, o arquiteto da logística do Holocausto, fugiu da Alemanha. Ele foi capturado uma década depois, por agentes secretos israelenses, na Argentina, onde vivia incógnito.
Eichmann foi levado para Israel, onde foi julgado dentro de uma cabine à prova de balas. Depois que foi condenado, em dezembro de 1961, ele ficou preso em regime de segurança máxima até sua execução, em Ramla, um presídio na região central de Israel, vigiado por uma equipe de 22 pessoas que incluía Nagar.
Para evitar uma vingança contra Eichmann, todos os guardas eram judeus sefarditas, que não tinham parentes mortos no Holocausto, e sua comida era entregue em recipientes trancados.
“Antes de dar sua refeição, eu tinha que provar a comida”, afirmou Nagar. “Se dois minutos depois eu não morresse, o oficial do plantão permitia que o prato lhe fosse entregue na cela.”
Entre todos os guardas, disse Nagar, ele era o único que não queria a função de carrasco.
No fim, isso não importou: ele foi escolhido num sorteio. Nagar contou que o diretor considerava-o ideal porque ele tinha sido um soldado condecorado e era órfão no Iêmen durante a 2.ª Guerra, intocado pelo Holocausto.
Nagar disse ao diretor que “ele devia encontrar outra pessoa para o trabalho”.
“Então ele me levou, junto com vários outros guardas, e nos mostrou imagens que registraram como os nazistas pegaram crianças inocentes e as fizeram em pedaços”, continuou ele. “Eu fiquei tão abalado que concordei em fazer o que tinha de ser feito.”
Em uma entrevista de 2004 ao Shofar News, Nagar afirmou que, vivo ou morto, Eichmann era assustador. “Desde a infância eu vivi sozinho, sem meus pais, sem nenhuma ajuda”, afirmou ele, recordando-se que teve de aceitar trabalhos perigosos, incluindo servir como guarda fronteiriço e desarmar minas terrestres. “Eu era um homem sem medo”, acrescentou, “mas fiquei apavorado com ele”.
Um relato oficial afirma que outro guarda foi designado para acionar o enforcamento simultaneamente, com objetivo de enevoar a responsabilidade, mas Nagar disse que não soube da participação de nenhuma outra pessoa.
Em “The Hangman”, dirigido por Braun e Sperber e financiado pelo Fundo Lynn e Jules Kroll para Documentários Judaicos, da Fundação pela Cultura Judaica, Nagar afirma: “Nós estamos de passagem neste mundo. Nossas boas ações são as únicas coisas que levamos conosco.”
Depois de deixar o Serviço Penitenciário, Nagar viveu em Hebron até o massacre terrorista de 1994 praticado em uma mesquita por um atirador americano-israelense. Então ele se mudou para Kiryat Arba, um assentamento colonial na Cisjordânia, próximo de Hebron. Nagar retomou suas rígidas práticas religiosas de judeu iemenita e se tornou abatedor de animais para a produção ritualística de carne kosher.
Não se soube imediatamente se Nagar deixou descendentes.
Ao discutir a execução à revista Mishpacha, Nagar invocou Amaleque, a nação bíblica arqui-inimiga da antiga Israel, para justificar sua missão. Em vez de ficar traumatizado, afirmou, ele agradeceu o valor dessa experiência: Deus “nos ordena a erradicar Amaleque, apagar ‘sua memória de debaixo do céu’ e ‘não esquecer’. Eu cumpri”. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
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