O presidente Barack Obama conspirou com o ex-vice-presidente Dick Cheney na quinta-feira para propagar um mito. O mito diz que vivemos um período de oito anos no qual prevaleceu a doutrina Bush-Cheney de combate ao terror e agora entramos em outro período muito diferente. Como bem sabem Obama e Cheney, essa versão é distorcida. Depois do 11 de Setembro, entramos em um período de dois ou três anos durante o qual prevaleceu o que poderíamos chamar de doutrina Bush-Cheney. O país foi pego desprevenido, os serviços secretos não sabiam quase nada a respeito das ameaças que estávamos enfrentando. O governo Bush tentou fazer de tudo para prevenir ameaças, até mesmo coisas que a maioria de nós considera moralmente condenáveis. Em 2005, teve início o que poderíamos chamar de era Bush-Rice-Hadley. Alternando momentos de maior e menor atividade, vários funcionários de Bush - entre eles a secretária de Estado, Condoleezza Rice, o conselheiro de Segurança Nacional, Stephen Hadley, e os conselheiros legais Jack Goldsmith e John Bellinger - tentaram conter os excessos do período anterior. Eles não venceram todas as batalhas, mas a evolução gradual foi clara. Desde 2003, pessoas como Bellinger e Goldsmith combateram pareceres legais que permitiam o uso de técnicas duras de interrogatório. Em 2007, Condoleezza recusou-se a aplicar uma ordem executiva que exigia a retomada do programa de interrogatórios. No segundo mandato de Bush, funcionários do governo tentaram fechar Guantánamo, negociando com governos estrangeiros para receber alguns prisioneiros e implorando aos senadores americanos que permitissem a transferência de detentos para os EUA. Eles não se preocuparam em primeiro anunciar o fechamento e só depois determinar o que seria feito dos prisioneiros. SEM GUINADAS E não foi o atual governo que interrompeu as simulações de afogamento. Os responsáveis foram sucessivos diretores da CIA que começaram a agir, a partir de março de 2003, antes mesmo da divulgação do devastador relatório sobre os interrogatórios da agência, em 2004. Quando Cheney execra as mudanças na segurança nacional, ele está atacando o governo Bush. No seu discurso de quinta-feira, ele repetiu em público os mesmos argumentos que ele expôs quando estava na Casa Branca. A posse de Obama, portanto, não marcou uma guinada dramática na substância da doutrina americana de combate ao terrorismo. Ela marcou uma guinada dramática na credibilidade pública dessa mesma doutrina. É um absurdo dizer que o governo atual não leva o terrorismo a sério. Obama adotou a estratégia do "surge" (grande aumento no número de soldados com o objetivo de garantir um aumento na segurança) no Afeganistão, uma ideia que já era difundida no final da era Bush. Ele aumentou a atividade das aeronaves não tripuladas no Paquistão e promoveu agressivos combates contra insurgentes. Quanto ao tratamento dos suspeitos de terrorismo, Jack Goldsmith mostra em um artigo intitulado "O Sofisma de Cheney" como as medidas de Obama representam uma continuação ou evolução gradual da doutrina de Bush. Obama compreende que a opinião dos outros importa, coisa que Bush nunca entendeu. Goldsmith é incisivo: "A principal diferença entre os governos não está na substância da doutrina de combate ao terror, e sim na sua embalagem", disse Goldsmith. "O governo Bush deu repetidos tiros no pé, prejudicando a legitimidade e a eficácia de suas medidas por causa da indiferença quanto a questões processuais e de apresentação. Obama concentra-se intensamente nessas questões." Obama adotou muitas das medidas com as quais Bush encerrou seu mandato e conferiu-lhes credibilidade perante os EUA e o mundo. Em discursos, Obama explicou suas decisões de maneira sutil e coerente, admitiu que alguns problemas são desafiadores e não comportam soluções fáceis. Ele tratou os americanos como adultos e, com isso, ganhou respeito. Seria preferível que ele tivesse também demonstrado maior honestidade em relação ao governo Bush? Sim. Mas a verdade é que Obama fez, em relação a suas medidas, uma série de concessões moderadas e de eficácia comprovada pelo tempo. Ele as preservou e reformou com inteligência. Ele as encaixou em um contexto convincente. Ao fazer isso, não diminuiu nossa segurança e nos tornou mais confiantes. * David Brooks é comentarista de política americana
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