Andrei Sakharov, dissidente soviético e físico, costumava argumentar que repressão doméstica se torna invariavelmente instabilidade externa. Sua própria vida foi evidência disso. Seu exílio interno foi suspenso em 1986 por Mikhail Gorbachev, o último líder da União Soviética, que, enquanto arquiteto da Glasnost, libertou presos políticos e permitiu a livre expressão. Não foi acidente que a rejeição de Gorbachev pela repressão tenha coincidido com o fim da Guerra Fria.
Atualmente, a tese de Sakharov está sendo demonstrada uma vez mais – em modo reverso. De acordo com o Memorial, um grupo de defesa dos direitos humanos, a Rússia mantém hoje mais que o dobro de presos políticos do que no fim da era soviética. O Memorial, que Sakharov ajudou a fundar para documentar os abusos da URSS, foi, por sua vez, qualificado como um “agente estrangeiro” e atacado por capangas financiados pelo Estado.
No mesmo momento, as relações da Rússia com o Ocidente entram em um período sombrio. Para justificar a repressão em seu país, o presidente Vladimir Putin está dizendo ao seu povo que políticas ocidentais são planejadas para obliterar o modo de vida russo. Putin embute confrontos de guerra fria em suas negociações com o Ocidente, cujos líderes devem se preparar para o que vem a seguir.
A mais recente onda de repressão começou em 2020, com o envenenamento de Alexei Navalni, o preso político mais famoso da Rússia e vencedor, no mês passado, do Prêmio Sakharov para a Liberdade de Pensamento, do Parlamento Europeu. Navalni sobreviveu ao ataque, mas posteriormente acabou encarcerado e vítima de abusos na Colônia Penal N.º 2, uma das prisões mais severas do país.
Desde então, a organização de Navalni foi colocada na ilegalidade, e grande parte de sua equipe fugiu do país. Os que ficaram são perseguidos. Em 9 de novembro, Lilia Chanysheva foi presa e poderá ser condenada a 10 anos de cadeia por ter trabalhado com Navalni enquanto sua organização ainda era legal. Essa rede está se ampliando para além da política. No mesmo dia, Sergei Zuev, de 67 anos, diretor da principal universidade liberal da Rússia, foi transferido da prisão domiciliar para uma cela, talvez para ser forçado a uma falsa confissão em algum caso fabricado. Ele ainda se recupera de um tratamento cardíaco.
Um terço do orçamento do governo russo é gasto em segurança e defesa. Grande parte disso é direcionada domesticamente, sobre o tipo de pessoas que The Economist apresenta em um documentário. São pessoas fartas do controle de Putin e da corrupção de seu regime. À medida que os salários baixam e o descontentamento cresce, muitas agências de polícia e segurança da Rússia se ampliam. Com 10% a mais de agentes do que em 2014, esse contingente supera o de militares russos na ativa.
Irreversível
Para Putin, a repressão não tem marcha à ré. Ele não será capaz de restaurar a prosperidade que ajudou a levantar seus índices de popularidade em sua primeira década no poder. É verdadeiro que a economia fortificada que o Kremlin desenvolveu desde 2014 é capaz de suportar sanções, especialmente quando os preços da energia estão elevados, como agora. Mas a Rússia, mais parecida com o Irã do que com a China, não possui dinamismo para gerar crescimento continuado e robusto.
Daí a lógica da confrontação. Os governantes soviéticos travaram a Guerra Fria valendo-se da ideologia do comunismo. Membros das forças de segurança russas afirmam que valores tradicionais sobre família, cultura e história estão sendo corrompidos pelo Ocidente liberal e permissivo, e que eles são os únicos capazes de defendê-los.
Reagir contra o Ocidente permite ao Kremlin qualificar todos os seus opositores – jornalistas, advogados de direitos humanos e ativistas – como agentes estrangeiros. Desta maneira, o regime de Putin depende da ideologia anti-Ocidente para aplicar suas políticas, assim como depende do petróleo e do gás natural para sua prosperidade.
Ditadores insistem que a maneira como tratam seus súditos é questão de soberania. Na verdade, repressão é um problema de todos. Uma razão para isso é que direitos humanos são universais. A outra é que violência doméstica se espalha para além das fronteiras.
Tanto Rússia quanto Belarus, cujo ditador, Alexander Lukashenko, é apoiado pelo Kremlin, assassinaram dissidentes no exterior. A Rússia derrubou um avião de passageiros, e Belarus sequestrou um voo para prender um dissidente de seu regime.
Apoiado pelo Kremlin, Lukashenko se vinga, trazendo de avião ao seu país refugiados do Oriente Médio e empurrando-os para a fronteira, com intenção de fabricar uma crise humanitária.
Numa escala maior, Putin manipula eleições ocidentais, espalha propaganda antivacina e trava guerras por procuração nos Estados Unidos, na África e no Oriente Médio. Ele está usando a promessa de fornecimento adicional de gás natural para enfraquecer os laços entre a União Europeia e países como Ucrânia e Moldávia. Ele concentrou novamente suas tropas na fronteira ucraniana e está enviando bombardeiros capazes de carregar bombas nucleares para Belarus.
Rejeição
A boa notícia é que, da mesma maneira que a maioria do povo soviético não acreditava nas vantagens do comunismo sobre o capitalismo, a maioria dos russos não acredita nas vantagens da confrontação. Apesar de toda propaganda de Putin, dois terços dos russos têm visão positiva sobre o Ocidente. Aproximadamente 80% afirmam que a Rússia deveria ter o Ocidente como parceiro e amigo. Esse índice é mais pronunciado entre os jovens, que rejeitam violência de Estado e são favoráveis, em vez disso, aos direitos humanos.
Políticos ocidentais deveriam tomar nota dessa divergência entre o Kremlin e o povo russo. Uma resposta é combinar sanções e colocar seu foco nos russos mais poderosos, que saqueiam o Estado e abusam das pessoas. Isso requer dos países ocidentais que se levantem contra lobbies de suas próprias indústrias de serviços, que enriquecem permitindo que comparsas de Putin lavem suas reputações, persigam vinganças jurídicas e abriguem seu dinheiro ilícito.
Eles também deveriam começar a construir as fundações da Rússia pós-Putin. Ninguém sabe se isso levará anos ou décadas. Mas dificilmente o sistema de Putin sobreviverá ao próprio.
O Ocidente deveria, portanto, investir em pessoas que compartilham de seus valores. Deveria denunciar abusos de direitos humanos na Rússia. O fluxo de estudantes, jornalistas e intelectuais russos em busca de uma vida melhor se intensificará. Governos ocidentais deveriam recebê-los. Letônia e Lituânia estão dando abrigo a meios de comunicação independentes e dissidentes. Estudantes russos deveriam ser bem recebidos em universidades ocidentais. Fazendo isso, o Ocidente não apenas ajudará as vítimas da repressão de Putin, mas ajudará também a si mesmo. /TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
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