Kim Jong-un tem um novo melhor amigo. Sai Donald Trump, com quem ele trocou cartas adocicadas mas que desdenhou dele numa cúpula em Hanói, em 2019. Entra Vladimir Putin, que tem cortejado Kim em busca de armas para alimentar sua guerra na Ucrânia. Agora eles mantêm uma “relação inquebrável de camaradas em armas”, segundo uma mensagem do ditador norte-coreano ao seu homólogo russo. Kim fez duas viagens ao Extremo Oriente da Rússia para reunir-se com Putin desde 2019. Em 19 de junho, Putin chegou a Pyongyang para sua primeira visita desde 2000, ano em que assumiu o primeiro mandato como presidente. Apesar do russo ter aterrissado por volta das 3h no horário local, Kim o esperava sobre um tapete vermelho estendido na pista do aeroporto para recebê-lo.
Esse amor fraternal floresceu graças a mudanças geopolíticas. Kim afastou-se de conversas com os Estados Unidos depois da malfadada cúpula em Hanói e começou a sinalizar novas aberturas para a Rússia. A resposta foi morna — até que a invasão em escala total de Putin se atrapalhou e a Rússia apareceu em busca de munições, uma das poucas coisas que o regime de Kim possui em abundância. Mas as implicações do realinhamento vão além do comércio de armas. “É um erro pensar nisso simplesmente como um acordo armamentista”, argumenta Jenny Town, do Centro Stimson, um instituto de análise americano. Durante sua reunião em Pyongyang, eles assinaram um abrangente pacto de parceria estratégica, cujos detalhes ainda não foram anunciados.
A Coreia do Norte desempenha um papel útil no confronto maior da Rússia com o Ocidente, ajudando a complicar a estratégia americana na Ásia e minar instituições multilaterais. Em março, a Rússia vetou uma resolução nas Nações Unidas para estender o mandato do Painel de Especialistas, o principal organismo internacional para o monitoramento das sanções contra a Coreia do Norte. Cooperando com Pyongyang, Moscou também tem como objetivo dissuadir a Coreia do Sul, uma grande fabricante de armas e aliada dos EUA, de fornecer ajuda diretamente letal para a Ucrânia.
Para a Coreia do Norte, a Rússia provou-se uma dádiva num tempo de necessidade. Kim estava especialmente isolado internacionalmente e diminuído dentro de seu país após o fiasco em Hanói; os anos de sanções e a pandemia de covid-19 também não ajudaram. O comércio com a Rússia ajudou a Coreia do Norte a estabilizar sua economia, enquanto os encontros com Putin poliram a imagem de Kim. Delegações de ambos os países trabalhando sobre agricultura, cultura, segurança e tecnologia trocaram visitas nos meses recentes. Turistas russos tornaram-se os primeiros estrangeiros a pisar na Coreia do Norte após a pandemia; agências de turismo em Vladivostok passaram a anunciar viagens de verão ao reino eremita.
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A afinidade renovada alimentou conversas em Washington a respeito de um novo eixo do mal entre Rússia, China e Coreia do Norte. China e União Soviética se alinharam em apoio à Coreia do Norte na Guerra da Coreia; alguns temem que esse apoio conjunto encoraje novamente uma agressão norte-coreana. Esses temores têm se provado exagerados até aqui, mas, com dois apoiadores ativos, Pyongyang percebe pouco incentivo para se envolver com os EUA. E pode jogar com os interesses de ambas as partes. “Trata-se da maior oportunidade estratégica para a Coreia do Norte desde o fim da Guerra Fria”, argumenta Ankit Panda, do Fundo Carnegie para a Paz Internacional, um instituto de análise americano.
Quando Kim e Putin se encontrarem, munições figurarão no primeiro plano. Autoridades americanas alegam que a Coreia do Norte enviou cerca de 11 mil contêineres repletos de armamentos transportados por navios e trens para a Rússia desde setembro, quando Kim visitou Putin em Vladivostok. Os itens incluem projéteis de artilharia — o ministro da Defesa da Coreia do Sul afirma que até 5 milhões de munições — e mísseis balísticos Hwasong-11, que têm sido associados a dúzias de mortes em toda a Ucrânia. Grande parte do material é de qualidade duvidosa, mas mesmo assim o envio ajudou a Rússia a comprar tempo para incrementar sua própria produção, afirma uma autoridade ucraniana.
O que a Rússia tem dado em troca é tema de muita especulação. O governo da Coreia do Sul afirmou acreditar que pelo menos 9 mil contêineres foram mandados da Rússia para a Coreia do Norte desde setembro do ano passado. A lista de desejos de Pyongyang provavelmente inclui projetos de armas nucleares, veículos de reentrada para mísseis balísticos intercontinentais e tecnologias relacionadas a satélites, submarinos e armamentos hipersônicos. Moscou também poderia fornecer um apoio mais discreto, mas ainda muito importante, às forças convencionais da Coreia do Norte, como peças de reposição para aeronaves ou embarcações e defesas antiaéreas mais modernas.
Autoridades sul-coreanas afirmam que a Rússia ainda não transferiu tecnologia militar sensível relacionada a mísseis balísticos ou armas nucleares. Uma área de preocupação mais imediata é tecnologia espacial: Panda afirma que uma recente tentativa norte-coreana de lançar um satélite usou uma variante de um motor utilizado pelo sistema russo Angara, que a Rússia mantém em um cosmódromo que Kim visitou no outono passado. Por agora, alimentos e combustíveis compõem a maior parte do comércio. Mas Putin também deu a Kim uma limusine de luxo de fabricação russa.
Contudo, esse afeto aparente passa uma falsa ideia a respeito dos verdadeiros limites de sua amizade. “O novo amor russo pela Coreia do Norte é raso e artificial”, argumenta o especialista russo em Coreia do Norte Andrei Lankov, da Universidade Kookmin, em Seul. Putin tende mais a usar a ameaça da transferência de tecnologia para restringir o apoio da Coreia do Sul à Ucrânia do que realmente ir adiante com isso. Seul, por sua vez, pode ameaçar dar mais apoio à Ucrânia para fazer valer seus limites sobre o apoio a Pyongyang.
Ainda que a Rússia possa estar ávida para minar sanções internacionais, isso não significa que Moscou se apressará para ajudar a Coreia do Norte a expandir seu arsenal nuclear. A Rússia tem peso suficiente para extrair o que necessita sem entregar suas tecnologias mais sensíveis. Até aqui, “a Coreia do Norte não está feliz com o escopo e a profundidade da cooperação militar com a Rússia”, afirma uma ex-autoridade sul-coreana que compareceu recentemente a um debate com participantes russos e norte-coreanos. Conforme a produção de armas da Rússia aumentar, sua demanda por projéteis da Coreia do Norte pode desvanecer.
E apesar de provavelmente durar enquanto a guerra na Ucrânia seguir, a parceria entre Moscou e Pyongyang poderá não sobreviver ao fim do conflito. “A convergência calculada de interesses nacionais” pode mudar se as circunstâncias mudarem, afirma Lee Sang-hyun do Instituto Sejong, um centro de análise em Seul. No longo prazo, a Coreia do Sul é uma parceira econômica mais atraente; antes da guerra, era o quinto principal destino das exportações russas. A Rússia parece pretender deixar a porta aberta: o embaixador russo em Seul afirmou recentemente que esperar que a Coreia do Sul seja “o primeiro dos países inamistosos a retornar para o grupo dos países amigos”. Para as elites russas, Coreia do Norte continua sinônimo de disfuncionalidade, um país com o qual poucos gostariam de se associar, em contraste com a potência econômica que é a China.
A China também é capaz de moldar a profundidade da cooperação entre Rússia e Coreia do Norte. “Não é uma relação bilateral. O grande irmão está vendo tudo em Pequim”, afirma Fyodor Tertitskiy, também da universidade de Kookmin. Os sentimentos da China parecem ambivalentes. Seus diplomatas não impediram a Rússia de acabar com o painel de sanções da ONU. Mas durante uma cúpula recente com Coreia do Sul e Japão, a China apoiou um chamamento pela desnuclearização da Península da Coreia, e o regime de Kim expressou indignação. Os interesses primários da China são manter a Coreia do Norte como um Estado-tampão entre o território chinês e a Coreia do Sul, que é apoiada pelos EUA, assim como manter a influência sobre Pyongyang; relações mais próximas entre Rússia e Coreia do Norte poderiam ameaçar esses objetivos.
A China também parece disposta a evitar dar a parecer que os três países pertencem a um único bloco. “A China quer ser líder global, não delinquente”, afirmou Lee. Putin, segundo relatos, quis viajar antes para Pyongyang, imediatamente após visitar Pequim, no mês passado, mas a China sugeriu que ele deveria esperar. A imagem que emerge lembra mais um triângulo amoroso bagunçado que um eixo autoritário organizado./TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
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