No final de seu discurso virtual nesta terça-feira para o Conselho de Segurança da ONU, o presidente ucraniano Volodmir Zelenski exibiu um pequeno vídeo. Com pouco mais de um minuto de duração, mostrava, cidade após cidade, imagens dos cadáveres de civis ucranianos mortos – alguns deixados para apodrecer nas ruas, outros jogados em valas comuns ou nas ruínas de suas casas bombardeadas.
O vídeo seguiu um conjunto de comentários irritados de Zelenski. Ele exigiu que o Conselho de Segurança busque “total responsabilidade” da Rússia por seus supostos crimes de guerra em cidades ucranianas, mas também pediu uma reforma geral do órgão da ONU, que confere à Rússia o poder de veto. Zelenski disse que o Conselho de Segurança deveria se dissolver “se não houver nada que você possa fazer além de conversar”.
O líder ucraniano detalhou as supostas atrocidades cometidas contra sua população pela Rússia, de estupro a saques e assassinato indiscriminado. Ele enfatizou que a evidência de assassinatos em massa na cidade de Bucha foi provavelmente apenas um exemplo de uma campanha de violência desencadeada em seu país. “Eles mataram famílias inteiras, adultos e crianças, e tentaram queimar os corpos”, disse Zelenski. “Isso mina toda a arquitetura da segurança global”, acrescentou. “Eles estão destruindo tudo.”
Autoridades russas e a mídia estatal negam os relatos de atrocidades, descrevendo-os como “falsos” e encenados pela Ucrânia para fins de propaganda. Mas há evidências crescentes de crimes russos compilados por observadores independentes e grupos de direitos humanos, bem como promotores ucranianos e governos estrangeiros, incluindo os Estados Unidos. Em uma visita a Bucha no fim de semana, Zelenski disse que sua nação estava enfrentando uma tentativa de “genocídio”.
A questão do “genocídio” é uma reivindicação complicada, com a definição legal internacional específica do que conta como genocídio muitas vezes em desacordo com as invocações mais emotivas de ativistas e políticos. Em uma explicação cuidadosa, Claire Parker, no Washington Post, expôs o que sabemos e não sabemos sobre as acusações de crimes de guerra russos.
Segundo Claire, uma convenção legal de 1948 definiu o genocídio como um crime que “consiste em matar, causar ‘danos corporais ou mentais graves’, impedir nascimentos ou transferir à força crianças de um grupo ‘com a intenção de destruir, no todo ou em parte, uma nação , grupo étnico, racial ou religioso.’”
“Nós somos os cidadãos da Ucrânia”, disse Zelenski no programa “Face the Nation” da CBS no domingo. “Temos mais de 100 nacionalidades. Trata-se da destruição e extermínio de todas essas nacionalidades.”
Na terça-feira, diante do Conselho de Segurança, Zelenski pediu a criação de um inquérito e tribunal semelhante ao de Nuremberg para processar crimes de guerra nazistas após a 2ª Guerra. Ele disse que as atrocidades russas em algumas cidades ucranianas no mês passado foram coisas que nem os nazistas haviam cometido há oito décadas.
A dura ironia é que a Rússia empunha com animação as invocações do nazismo contra a Ucrânia. A guerra foi lançada em meio a um discurso do presidente russo, Vladimir Putin, que descartou o direito da Ucrânia à soberania, questionou seu status de nação independente e descreveu a campanha russa como de “desnazificação”.
Seis semanas depois de sua invasão, os canais de TV e a mídia estatal da Rússia ainda ecoam a narrativa capenga de que seu país está expulsando elementos fascistas indesejados que estão em Kiev. E alguns até argumentam, vendo a resistência que os ucranianos estão apresentando às forças russas, que a “desnazificação” requer um expurgo abrangente em todo o país.
Em um editorial publicado no domingo na agência estatal russa RIA Novosti, Timofei Sergeitsev classificou virtualmente toda a população ucraniana como cúmplice do suposto “nazismo” de Kiev e pediu o que seria essencialmente uma ocupação de uma geração do país, a “liquidação” do Estado ucraniano e suas elites políticas e a submissão ao trabalho forçado de quaisquer “cúmplices” do governo de Kiev.
“A desnazificação é necessária quando uma parte significativa do povo – provavelmente a maioria – foi dominada e atraída para o regime nazista em sua política”, observou o editorial, sugerindo implicitamente que os civis ucranianos eram alvos justos. “Ou seja, quando a hipótese ‘as pessoas são boas – o governo é ruim’ não funciona.”
Essa linguagem ressaltou o argumento de que é apropriado discutir “genocídio”. “A retórica por si só não foi suficiente para mim, e os massacres por si só não foram suficientes”, disse Eugene Finkel, estudioso do Holocausto da Escola de Estudos Internacionais Avançados Johns Hopkins, ao Independent. “O limite para mim é a combinação dessa violência, generalizada e deliberada, e a retórica. Acho que isso é evidência suficiente.”
De sua cela de prisão, o proeminente dissidente russo Alexei Navalni conseguiu publicar um tópico no Twitter que denunciava os porta-vozes do Estado da Rússia por alimentar a violência. “Os propagandistas criam o tipo de opinião pública que não mais simplesmente permite que Putin cometa crimes de guerra, mas os exige dele”, escreveu Navalni.
Acusações de crime de guerra contra a Rússia
“Os belicistas devem ser tratados como criminosos de guerra”, acrescentou, referindo-se à estação de rádio que desempenhou um papel fundamental no fomento do genocídio em Ruanda. “Dos editores-chefes aos apresentadores de talk shows e aos editores de notícias, todos devem ser sancionados agora e julgados algum dia.”
Em entrevista ao New Statesman, Sergei Karaganov, um influente teórico político russo que é próximo do Kremlin, ofereceu uma visão mais direta de seu pensamento. Ele zombou da ideia de que Zelenski, um judeu, pudesse ser nazista. Mas ele sugeriu que a Ucrânia tinha apenas uma “limitada… história de Estado” e deveria estar sujeita à partição.
Ainda mais sombriamente, Karaganov argumentou que o conflito agora era “existencial” para a Rússia, pois é uma “guerra por procuração” com todo o Ocidente. “A Rússia não pode se dar ao luxo de ‘perder’, então precisamos de uma espécie de vitória”, disse ele. “E se houver a sensação de que estamos perdendo a guerra, acho que há uma possibilidade definitiva de escalada.”
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.