A Rússia cometeu crimes de guerra na Ucrânia? O que sabemos até agora

A suspeita de assassinato contra civis na cidade de Bucha gerou uma onda de condenação internacional e acusações de crimes de guerra na Ucrânia

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Por Claire Parker

BUCHA, UCRÂNIA, THE WASHINGTON POST - As imagens assombrosas de valas comuns e cadáveres amarrados que emergiram de um subúrbio de Kiev quando as forças russas recuaram no fim de semana provocaram ampla condenação internacional e levaram líderes ocidentais a acusar a Rússia de cometer crimes de guerra na Ucrânia.

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As forças ucranianas repeliram as tropas russas de Bucha, uma arborizada cidade suburbana a noroeste da capital, e descobriram um aparente massacre em seu rastro. O prefeito de Bucha, Anatoly Fedoruk, disse que cerca de 270 moradores foram enterrados em valas comuns. Alguns foram amarrados e executados – baleados na parte de trás da cabeça, disse ele.

Foi o mais recente de uma série de incidentes que grupos de direitos humanos dizem que provavelmente violaram as leis de guerra.

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, disse na segunda-feira que o presidente russo, Vladimir Putin, é um “criminoso de guerra” e pediu que mais coleta de evidências seja usada em um “julgamento de crimes de guerra”.

“Esse cara é brutal, e o que está acontecendo em Bucha é ultrajante, e todo mundo viu”, disse Biden a repórteres na segunda-feira. “Acho que é um crime de guerra.”

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Os Estados Unidos já haviam determinado formalmente que membros das forças russas estavam cometendo crimes de guerra na Ucrânia, com base em uma “revisão cuidadosa” de informações públicas e fontes de inteligência, disse o secretário de Estado Antony Blinken em comunicado no mês passado.

Em fevereiro, o promotor-chefe do Tribunal Penal Internacional em Haia disse que estava abrindo uma investigação sobre supostos crimes de guerra e crimes contra a humanidade na Ucrânia.

Voluntários carregam um dos corpos de oito homens civis. Dois tiveram as mãos amarradas nas costas em Bucha, Ucrânia, em 3 de abril Foto: Heidi Levine / The Washington Post

O que conta como um crime de guerra?

A estrutura moderna para avaliar crimes de guerra nasceu dos julgamentos de Nuremberg após a Segunda Guerra Mundial. Oficiais do Partido Nazista, oficiais militares e elites alemãs foram julgados por acusações que incluíam crimes contra a humanidade. Na época, a comunidade internacional procurou estabelecer barreiras que minimizassem o horror de conflitos futuros.

As pessoas costumam usar “crimes de guerra” coloquialmente para descrever uma série de ações proibidas pelo direito internacional durante o conflito, disse William Schabas, professor de direito internacional da Middlesex University, em Londres. Mas o termo tem uma definição técnica e precisa, referindo-se a violações do direito internacional que rege a conduta em combate e durante ocupação.

Essas violações estão expressas em tratados internacionais como as Convenções de Genebra de 1949 e o Estatuto de Roma, que estabeleceu o Tribunal Penal Internacional em 2002 para processar indivíduos responsáveis por crimes de guerra, juntamente com crimes contra a humanidade e genocídio - termos complexos com seus próprios conjunto de parâmetros legais.

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Os crimes de guerra incluem o ataque deliberado a civis; ataques que causam baixas desproporcionais de civis em função do objetivo militar; e ataques a hospitais, escolas, monumentos históricos e outros locais civis importantes. Muitos atos horríveis de violência que resultam em mortes de civis não se enquadram na definição.

O presidente ucraniano Volodmir Zelenski também alegou que o lançamento pela Rússia de um projétil que causou um incêndio em uma usina nuclear no sudeste da Ucrânia foi um “crime de guerra”. O Estatuto de Roma especifica que lançar intencionalmente um ataque que cause “danos generalizados, de longo prazo e graves ao ambiente natural” pode ser um crime, dependendo das circunstâncias.

O uso de certas armas, inclusive químicas, também é proibido.

As munições cluster, que espalham bombas indiscriminadamente e deixam artefatos não detonados que representam perigos para os civis após o conflito, são proibidas por muitos países – mas não pela Rússia e pela Ucrânia. O suposto uso dessas armas pela Rússia na Ucrânia, bem como “armas a vácuo”, não é automaticamente ilegal, disse Schabas. Essa determinação depende se a Rússia tomou medidas para evitar prejudicar civis.

Há também uma categoria legal separada de crimes contra a humanidade, que inclui assassinato em massa, escravidão e tortura.

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A lei internacional em torno do conflito governa mais do que apenas o combate. A Ucrânia adotou a tática de postar fotos e vídeos de soldados russos capturados e mortos online, o que pode ser uma violação das Convenções de Genebra.

Pessoas se reúnem do lado de fora da embaixada ucraniana em Ierevan, na Armênia, para lamentar civis encontrados mortos na cidade de Bucha, a noroeste de Kiev Foto: KAREN MINASYAN / AFP

Quem tem o poder de investigar?

As autoridades ucranianas têm a responsabilidade primária de investigar supostas violações da lei internacional cometidas em território ucraniano, disse James Gow, professor de paz e segurança internacional no King’s College de Londres. Mas isso exigiria que o sistema de justiça ucraniano fosse funcional.

Outra via: o Tribunal Penal Internacional.

Nem a Ucrânia nem a Rússia fazem parte do tribunal, portanto, nenhum dos dois pode levar acusações aos promotores. Mas a Ucrânia aceitou duas vezes a jurisdição do tribunal sobre seu território – e outros países podem encaminhar supostos crimes ao tribunal. Karim Khan, promotor-chefe do TPI, disse no início de março que seu escritório recebeu indicações de 39 países.

Khan anunciou que estava abrindo uma investigação sobre alegações de crimes de guerra, crimes contra a humanidade ou genocídio na Ucrânia “por qualquer pessoa” a partir de novembro de 2013.

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Uma investigação preliminar encontrou “base razoável para acreditar que crimes dentro da jurisdição do Tribunal foram cometidos” e “identificou casos potenciais que seriam admissíveis”, disse Khan em comunicado.

Separadamente, o principal órgão de direitos humanos das Nações Unidas votou pela criação de uma comissão para investigar supostas violações de direitos da Rússia durante a invasão.

Que provas são necessárias para processar os perpetradores?

Uma grande quantidade, e tem que ser sólido.

Os investigadores do TPI começaram a coletar evidências, e Khan pediu aos países que dessem recursos adicionais ao seu escritório.

Eliot Higgins, fundador do grupo de código aberto Bellingcat, disse ao Guardian que sua organização estava trabalhando com outras para preservar evidências de possíveis crimes de guerra que seriam aceitos no tribunal.

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O mundo está assistindo a guerra se desenrolar em tempo real, enquanto uma enxurrada de vídeos no Facebook, Telegram, TikTok e Twitter mostram a destruição deixada por aparentes munições cluster e ataques em uma torre de TV perto de um memorial do Holocausto em Kiev. Grupos de direitos humanos e jornalistas verificaram e publicaram relatos de testemunhas oculares e de mídia social de ataques a áreas civis.

A documentação de mídia social pode ajudar nas investigações. Mas o nível de evidência necessário em casos de crimes de guerra é alto, dizem especialistas em direito internacional.

Imagem de satélite mostra área próxima a igreja em Bucha, na Ucrânia, que se assemelha a valas comuns. Registro é do dia 31 de março 

A guerra é um negócio sangrento, e são esperadas baixas civis. Em muitos casos, provar que a morte de civis constitui um crime de guerra requer mostrar a intenção do atacante de ferir civis ou atacar alvos proibidos, como hospitais e escolas. Portanto, responsabilizar altos funcionários normalmente requer a interceptação de comunicações na cadeia de comando, disse Gow.

“Proporcionalidade” é um padrão subjetivo que não está claramente definido, disse Schabas - e as táticas de defesa da Ucrânia, incluindo a fortificação de bairros residenciais em Kiev, dão à Rússia cobertura legal para atacar áreas civis.

“Crimes no campo de batalha são muito difíceis de provar”, disse ele. “Houve muito poucos processos bem-sucedidos para esses tipos de crimes.”

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A construção de um caso é ainda mais complicada por linhas cada vez mais indistintas entre civis e combatentes. Ucranianos comuns pegaram em armas e se reuniram para fazer coquetéis molotov. Eles perdem seu status de civis sob a lei internacional quando estão lutando, disse Schabas.

As autoridades russas podem ser responsabilizadas?

Pouco depois de Putin lançar sua invasão, os pedidos de responsabilização começaram a ricochetear em todo o mundo.

Os líderes mundiais enfrentaram julgamentos por crimes de guerra no passado. Em um exemplo famoso, um tribunal internacional colocou o presidente da ex-Iugoslávia, Slobodan Milosevic, em julgamento em 2002 por crimes de guerra e crimes contra a humanidade nas guerras dos Bálcãs na década de 1990. Milosevic morreu sob custódia antes da conclusão do julgamento.

Voluntários descarregam de uma van sacos contendo corpos de civis, que segundo moradores foram mortos por soldados do exército russo em Bucha, Ucrânia Foto: REUTERS / REUTERS

Mas mesmo que haja evidências, colocar autoridades russas – em especial Putin – em julgamento é improvável, salvo grandes mudanças políticas na Rússia, disse Gow. Enquanto o governo russo não estiver disposto a cooperar e os russos acusados de crimes não viajarem para o exterior, não há muito o que os promotores internacionais possam fazer.

Ainda assim, é valioso coletar e preservar evidências de possíveis crimes de guerra e crimes contra a humanidade, disse Gow, já que as circunstâncias na Rússia podem mudar.

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“Ninguém gosta de ser rotulado de criminoso de guerra, então há um importante efeito psicológico e político potencial a ser obtido de forma contingente a partir de investigações”, disse ele.

E mesmo que os perpetradores de quaisquer crimes de guerra na Ucrânia não sejam punidos, o armazenamento de evidências pode servir como um corretivo crucial para narrativas falsas.

O tribunal internacional que julgou Milosevic disse que a “maior conquista” do processo foi disponibilizar ao público longas evidências como “uma barreira contra tentativas malignas de revisar a história”.

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