A Rússia de Putin não é igual ao Estado soviético. É pior; leia a análise

Os anos pós-Stalin, e especialmente as últimas décadas do governo soviético, por mais opressivos que fossem, pelo menos pareciam estar se movendo em direção a algo melhor

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Por Serge Schmemann*
Atualização:

Tornou-se lugar-comum dizer que Vladimir Putin fez a Rússia voltar aos tempos soviéticos. Logo depois de o repórter do Wall Street Journal, Evan Gershkovich, ser preso na Rússia, encontrei uma uma amiga que conheci em Moscou nos tempos soviéticos. Na conversa com ela, lamentei que as coisas estivessem cada vez mais como antes, naqueles velhos tempos ruins.

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“Não”, ela disse, “as coisas estão piores.” Ela havia sido uma rebelde e havia deixado Moscou assim que pôde, então fiquei impressionado com sua resposta. Mas também ouvi isso de outros russos, tanto os que vivem dentro quanto os de fora do país. E quanto mais eu olho para trás em meus dias como repórter na Rússia soviética e pós-soviética, quanto mais a terrível selvageria da Ucrânia continua, mais eu entendo o que eles significam.

À luz do que seu país está infligindo à Ucrânia, é difícil falar dos russos como vítimas. Essa, de fato, pode ser uma das principais razões pelas quais muitos russos decentes sentem que a Rússia de Putin - a Rússia deles - é pior do que o estado soviético cujo fim ele lamenta. Os russos pensaram que sua nação estava livre da horrível tirania de seu passado, e Putin não está apenas revivendo isso, mas também trazendo vergonha e alienação para o país.

O presidente russo, Vladimir Putin, faz seu discurso durante a parada militar do Dia da Vitória na Praça Vermelha em Moscou, Rússia, em 9 de maio de 2023 Foto: Gavriil Grigorov/Sputnik/Kremlin via AP

A União Soviética a que esses russos se referem é aquela em seus últimos anos, não o inferno de Stalin. Em sua época, a década de 1970 e o início da década de 1980, a União Soviética ainda era um estado policial repressivo que mantinha um controle ferrenho sobre informações, arte, empreendimentos e quase todos os outros empreendimentos humanos. Foi um nível de repressão muito mais intrusivo do que Putin e seu aparato de segurança poderiam replicar, dado o alcance da internet e a capacidade contínua dos russos de viajar para o exterior. Nenhum antigo dissidente soviético negaria que a qualidade de vida física na Rússia é muito maior do que naqueles tempos espartanos.

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No entanto, os anos pós-Stalin, e especialmente as últimas décadas do governo soviético, por mais opressivos que fossem, pelo menos pareciam estar se movendo em direção a algo melhor. O terror aleatório da era de Stalin deu lugar a um sistema de controle mais coordenado: ainda brutalmente repressivo, mas mais previsível e menos arbitrário. A ditadura personalista de Josef Stalin foi substituída por um sistema de governo colegiado. Charles Kupchan, membro sênior do Conselho de Relações Exteriores, disse-me que um líder soviético provavelmente não teria sobrevivido a uma decisão desastrosa como a invasão da Ucrânia.

E quando a velha guarda soviética morreu na década de 1980, houve uma clara sensação de mudança, que finalmente chegou com Mikhail Gorbachev. Para quem esteve presente, é impossível esquecer a emoção de ver as pessoas explorarem ideias, artes, liberdades e prazeres há muito proibidos.

“Fazemos uma distinção entre sociedades ‘abertas’ e ‘fechadas’, mas também há uma distinção entre ‘aberturas’ e ‘fechamentos’”, Ivan Krastev, um cientista político búlgaro e um dos principais cronistas do colapso do império da União Soviética, me disse. “A geração do povo soviético nas décadas de 1970 e 1980 vivia em uma sociedade fechada que estava se abrindo, descobrindo que coisas que eram impossíveis estavam se tornando possíveis. Putin trouxe um período de fechamentos radicais. As pessoas estão perdendo coisas que sentiram que finalmente lhes foram concedidas. As aberturas levaram à esperança; o atual sistema leva à desesperança”.

Apoiadores do Partido Comunista Russo agitam uma bandeira com o retrato do ex-líder soviético Josef Stalin em frente ao teatro Bolshoi em Moscou em 8 de maio de 2023 Foto: Kirill Kudryavtse/AFP

Putin pode não ter as alavancas que seus predecessores soviéticos tiveram. A sociedade comercializada e conectada globalmente que evoluiu na Rússia ao longo das três décadas desde o colapso da União Soviética não pode ser colocada de volta na garrafa. Putin também não tem a ideologia utópica que permitiu aos líderes soviéticos afirmar que estavam trabalhando para a melhoria da humanidade, embora ele tenha inventado uma espécie de narrativa nacionalista, baseada na história e mitologia russa e soviética e em sua aversão ao Ocidente. Em vez disso, o que ele fez foi criar um sistema no qual tudo – o governo, a polícia política, o legislativo, os militares – depende pessoalmente dele.

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A acusação mais comum usada para prender dissidentes nas últimas décadas do governo soviético foi “agitação e propaganda anti-soviética”, uma lei abrangente que pelo menos deixou claro que o crime era se opor ao governo soviético. Já Putin ataca oponentes com armas aleatórias, seja o aparente envenenamento de Alexei Navalni ou a condenação de Vladimir Kara-Murza a 25 anos de prisão por traição. Acusar Gershkovich de espionagem pode muito bem ter sido motivado, pelo menos em parte, pela fúria de que alguém de origem russa ousasse relatar a verdade sobre a Rússia.

A repressão redobrou desde a invasão da Ucrânia, tornando difícil medir o nível de resistência. Dez dias após a invasão, a polícia prendeu mais de 4.600 manifestantes na Rússia, e centenas de milhares de homens russos fugiram do país para evitar serem levados para o Exército.

Putin faz seu discurso durante a parada militar do Dia da Vitória marcando o 78º aniversário do fim da Segunda Guerra Mundial  Foto: Dmitry Astakhov/Sputnik/Kremlin via AP

Mas os que resistem e os que saem não recebem o mesmo respeito que os dissidentes soviéticos tinham. Naquela época, grupos étnicos não russos conheceram o jugo soviético, mas a ideologia comunista era universalista, e os russos que se opunham a ela se viam como aliados de outras nacionalidades oprimidas e do Ocidente em sua luta. Os russos que chegavam a Nova York, Tel Aviv ou Berlim sentiam-se livres da mácula do conluio; e como as fileiras dos dissidentes incluíam muitos escritores, poetas, músicos e artistas, a cultura russa compartilhava o brilho da libertação.

O governo de Putin e sua invasão da Ucrânia mudaram isso. Esta é uma guerra travada pela Rússia contra a Ucrânia em nome de uma reivindicação imperial russa, e é difícil para qualquer um ou qualquer coisa russa - língua, cultura, origem - escapar do estigma. É especialmente irritante para os russos conscientes ouvirem Putin usando a linguagem antifascista da 2ª Guerra Mundial - a única façanha da história soviética da qual todo o seu povo se orgulha - no esforço de destruir a Ucrânia.

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O impacto é amplamente evidente. Restaurantes russos, incluindo aqueles que reformularam seus cardápios, lutam para permanecer abertos. A vodca Stolichnaia agora foi renomeada como Stoli. Uma garrafa de edição limitada traz um rótulo com as cores azul e amarelo da Ucrânia, com a inscrição #LIBERATEUKRAINE. O Metropolitan Opera de Nova York dispensou sua diva russa, Anna Netrebko, por ela não renunciar a Putin. Eu ouvi acadêmicos lamentando ter de focar tanto na Rússia em estudos pós-soviéticos. A lista continua e é difícil argumentar contra os cancelamentos. “Os russos podem dizer: ‘este não é o meu regime’, mas não podem dizer ‘esta não é a minha nação’”, disse Krastev.

É muito cedo para prever como a guerra na Ucrânia terminará. O que está claro é que Putin, em nome de uma efêmera grandeza russa, causou grandes e duradouros danos ao seu povo e à sua cultura.

*Serge Schmemann foi chefe da sucursa do The New York Times em Moscou, Bonn e Jerusalém e nas Nações Unidas