Ahmed al-Shara, o líder do grupo rebelde que derrubou o regime de Bashar Assad na Síria, disse neste fim de semana que “a condição da Síria, desgastada pela guerra após anos de conflito, não permite novos confrontos”.
Mas a rápida ascensão do grupo de Al-Shara ao poder deixou muitas perguntas sem resposta, especialmente sobre como ele será capaz de governar o país fragmentado. E há muitos confrontos já em andamento, incluindo um conflito violento entre milícias apoiadas pela Turquia e forças lideradas pelos curdos, além dos ataques aéreos de Israel contra instalações militares na Síria.
Aqui está um guia para entender em que ponto as coisas estão na Síria e o que pode acontecer a seguir:
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Como os rebeldes governarão a Síria?
O grupo Hayat Tahrir al-Sham, cujo nome significa Organização para a Libertação do Levante, foi a principal milícia rebelde à frente da ofensiva que derrubou rapidamente o ex-presidente Bashar Assad. Agora, a organização está liderando um processo de transição para um novo governo sírio.
O líder rebelde Mohammed al-Bashir, afiliado ao Hayat Tahrir al-Sham, foi nomeado primeiro-ministro interino até 1.º de março. Ele serviu anteriormente como chefe do governo de em Idlib, um território controlado pelos rebeldes no noroeste.
O histórico do Hayat Tahrir al-Sham em Idlib pode oferecer algumas pistas sobre como o grupo deverá controlar um território muito maior. A organização manteve uma força de segurança interna robusta para confrontar outras facções militares e críticos internos, provocando protestos regulares contra seus métodos autoritários e as duras condições em suas prisões.
É uma questão em aberto se esses rebeldes conseguirão ampliar para a maior parte da Síria o que conquistaram em Idlib, uma região agrária pobre, com uma população relativamente pequena.
A aliança afirmou que concederá anistia a funcionários do governo e soldados de escalão inferior, mas prometeu caçar e punir altos funcionários do regime anterior envolvidos em torturas e outros abusos.
“Não vamos deixar de responsabilizar criminosos, assassinos, autoridades de segurança e militares envolvidos na tortura do povo sírio”, disse Al-Shara, o líder do movimento rebelde, que era conhecido anteriormente pelo nome de guerra Abu Mohammad al-Jolani.
A Hayat Tahrir al-Sham foi afiliada da Al-Qaeda e rompeu com a rede terrorista internacional anos atrás, passando a dominar Idlib, o último reduto da oposição da Síria durante a guerra civil de 13 anos.
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O enviado-especial das Nações Unidas para a Síria, Geir Pedersen, disse na terça-feira que a Hayat Tahrir al-Sham e outros grupos armados que controlam a capital emitiram “declarações tranquilizadoras” sobre a formação de um governo de “unidade e inclusão”. Pedersen pediu aos grupos armados da Síria que protejam os civis e criem um governo que represente as várias comunidades étnicas e religiosas do país.
Quem é Ahmed al-Shara?
Al-Shara, líder da Hayat Tahrir al-Sham (HTS), abriu mão recentemente de seu nome de guerra, Abu Mohammad al-Golani, após concluir a impressionante ofensiva militar que derrubou o regime Assad.
Filho de exilados sírios, Ahmed Hussein al-Shara nasceu na Arábia Saudita, de acordo com relatos da imprensa árabe. No fim dos anos 80, sua família retornou para a Síria e, em 2003, ele foi para o vizinho Iraque com objetivo de se juntar à Al-Qaeda e lutar contra a ocupação dos Estados Unidos.
Al-Shara passou vários anos em uma prisão americana no Iraque, de acordo com relatos da imprensa árabe e de autoridades americanas. Posteriormente, ele emergiu na Síria no início da guerra civil e formou a Frente Nusra, que eventualmente se tornou a Hayat Tahrir al-Sham.
Desde que rompeu com a Al-Qaeda, Al-Shara e seu grupo têm tentado obter legitimidade internacional deixando de lado as ambições jihadistas globais e se concentrando numa governança organizada na Síria.
Surgiram dúvidas sobre que tipo de governo Al-Shara apoiaria e se os sírios o aceitariam. Em Idlib, a Hayat Tahrir al-Sham adotou um governo orientado por uma ideologia sunita islâmica conservadora, certas vezes linha-dura.
Desde que a ofensiva rebelde começou, Al-Shara tem buscado tranquilizar comunidades minoritárias de outras etnias e religiões. Alguns analistas dizem que ele enfrenta neste momento o maior teste de sua vida: ser capaz de unir os sírios.
O que a Rússia está fazendo na Síria?
A Rússia foi uma importante apoiadora do regime Assad, intervindo na guerra civil síria com campanhas brutais de bombardeio que ajudaram o governo a derrotar grupos rebeldes. Moscou também manteve presença militar em todo o país, incluindo na base naval de Tartus e na base aérea de Khmeimim, o que permitiu ao Kremlin projetar poder militar por todo Mediterrâneo e Norte da África.
Depois que a aliança rebelde depôs Assad, a Rússia se movimentou para reduzir sua presença. Mas uma questão crítica ainda não foi resolvida: se Moscou será ou não capaz de estabelecer um acordo com o novo governo sírio para se manter em Khmeimim e Tartus.
Uma de imagens de satélite de Khmeimim publicada pelo New York Times na sexta-feira mostrou aviões projetados para transportar maquinário pesado preparados para ser carregados e equipamento militar russo aparentemente sendo acondicionado.
Dois vídeos cuja autenticidade foi verificada pelo Times mostraram também pelo menos um comboio de veículos militares russos rumando para o norte, nas proximidades de Damasco e Homs, na direção da base aérea.
A atividade naval e comercial da Rússia em Tartus, o principal porto sírio de águas profundas, também cessou desde a queda de Assad. Moscou manteve uma presença quase contínua em Tartus desde 1971, em nome da União Soviética e posteriormente da Rússia.
Perder as bases na Síria frustraria ambições do presidente Vladimir Putin de restabelecer a Rússia como potência mundial, já que as posições são cruciais para a capacidade do Kremlin de exercer poder militar em lugares mais distantes, como a África Ocidental.
“A Síria é o único bastião verdadeiro dos russos no Oriente Médio e no Mediterrâneo”, disse Eugene Rumer, diretor do Programa para Rússia e Eurásia do Fundo Carnegie para a Paz Internacional, em Washington. A vitória rebelde, afirmou ele, se tornou “parte do preço que eles estão pagando pela guerra na Ucrânia”.
O que Israel está fazendo?
Israel está realizando ataques aéreos intensivos contra alvos militares anteriormente controlados pelo governo Assad, apesar de alertas sobre essas operações poderem desencadear novos conflitos e colocar em risco a transição de poder para um governo interino.
Forças terrestres israelenses avançaram para além da zona desmilitarizada na fronteira israelo-síria, sua primeira entrada não secreta em território sírio em mais de 50 anos, incluindo no lado sírio do estratégico Monte Hérmon. Israel não informou nenhum cronograma para deixar a região, mas afirmou que ficará até suas demandas de segurança serem atendidas.
Na noite de sábado, Israel realizou 75 ataques aéreos perto da capital síria, Damasco, e das cidades de Hama e Homs, de acordo com o Observatório Sírio para os Direitos Humanos, uma organização sediada no Reino Unido que acompanha o conflito na Síria há muito tempo. Não houve relatos imediatos de mortes.
Israel atacou a Síria mais de 450 vezes desde o colapso do regime Assad, há uma semana, de acordo com o Observatório.
Al-Shara disse numa entrevista à Syria TV, uma emissora pró-oposição, no sábado, que Israel estava usando pretextos para justificar tomadas de território “injustificáveis” na Síria. Ainda assim, disse ele, a Síria não pode travar mais conflitos.
“A condição degradada da Síria em guerra, após anos de conflito, não permite novos confrontos”, disse ele, acrescentando que seu foco está na busca de soluções diplomáticas. “A prioridade neste estágio é reconstrução e estabilidade, não ser arrastado para disputas que poderiam ocasionar mais destruição.”
O que a Turquia está fazendo?
A Turquia emergiu como vencedora na guerra civil síria, com mais influência do que nunca sobre os rebeldes que agora controlam a maior parte do país.
O presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, apoiou por muito tempo os rebeldes sírios que forçaram Assad a fugir.
Erdogan permitiu a entrada na Turquia de mais de 3 milhões de refugiados sírios e acionou tropas turcas para estabelecer uma zona-tampão dentro da Síria. Ele financiou e treinou uma força rebelde apoiada por Ancara, o Exército Nacional Sírio, que trabalhou pela segurança de bases militares turcas no norte da Síria e ajudou a Turquia a lutar contra forças curdas que Ancara considerava uma ameaça.
Combates ferozes já ocorreram entre rebeldes apoiados pela Turquia e forças lideradas pelos curdos, que têm apoio dos EUA. Na terça-feira, as forças curdas em Manbij anunciaram um cessar-fogo mediado por Washington.
Os EUA e um grupo independente que monitora a guerra disseram que aviões de guerra turcos auxiliaram seus aliados em terra com ataques aéreos. A Turquia e os EUA, aliados na Otan, elogiaram a queda do governo de Assad no fim de semana. Mas um dos objetivos estratégicos centrais da Turquia na região é enfraquecer as forças curdas, colocando-as em desacordo com Washington.
A Hayat Tahrir al-Sham é classificada como grupo terrorista pela Turquia, pelos EUA e por outros países em razão de seu histórico de extremismo islâmico, mas os turcos encontraram uma maneira de trabalhar com a organização e agora têm uma influência enorme sobre ela.
“De todos os principais atores da região, Ancara tem os canais de comunicação mais fortes e um histórico de trabalho com o grupo islâmico agora no comando de Damasco, posicionando-se para colher os benefícios da queda do regime Assad”, escreveu a diretora do programa para Turquia do Middle East Institute, Gonul Tol, na revista Foreign Affairs, na quinta-feira.
A Turquia deu assistência indireta para a organização, escreveu Tol, protegendo-a de ataques do governo sírio por meio da presença de tropas turcas na província de Idlib. E também direcionou ajuda humanitária e comércio para a região, o que ajudou a Hayat Tahrir al-Sham a ganhar legitimidade entre o povo da região. “Tudo isso deu à Turquia influência sobre a HTS”, escreveu ela.
O que os EUA estão fazendo?
O principal interesse dos Estados Unidos na Síria é derrotar o Estado Islâmico, também conhecido como Isis, que mantém presença nas regiões nordeste e central do país médio-oriental. Cerca de mil soldados americanos de Operações Especiais estão em bases no leste e nordeste da Síria, frequentemente trabalhando em colaboração próxima com forças curdas sírias.
O presidente Joe Biden autorizou ataques aéreos dos EUA no domingo contra campos e agentes do Estado Islâmico dentro da Síria. Uma esquadrilha de aviões de guerra B-52, F-15 e A-10 atingiu mais de 75 alvos no centro do país, de acordo com autoridades americanas.
Biden disse que Washington apoiará a região “caso surja alguma ameaça na Síria durante este período de transição”. “Temos clareza sobre o fato de que o Isis tentará tirar vantagem de qualquer vácuo para restabelecer sua capacidade, para criar uma posição segura”, afirmou o presidente americano. “Não deixaremos isso acontecer.”
Quais são as facções internas na Síria?
Além da Hayat Tahrir al-Sham, há vários grupos armados importantes na Síria e muitas organizações menores.
Forças Democráticas da Síria
Forças da minoria étnica curda da Síria, que compõe cerca de 10% da população, tornaram-se o principal parceiro local dos EUA na luta contra o Estado Islâmico no país, sob a bandeira das Forças Democráticas da Síria.
Depois que o Estado Islâmico foi amplamente derrotado em 2019, forças lideradas pelos curdos consolidaram o controle sobre as cidades no nordeste, expandindo uma região autônoma que haviam já erguido. Mas os combatentes curdos ainda tiveram que lidar com um inimigo de longa data, a Turquia, que os considera ligados aos insurgentes separatistas curdos presentes na Turquia.
Exército Nacional Sírio
Este grupo guarda-chuva, que inclui dezenas de organizações com diferentes convicções, recebe financiamento e armas da Turquia, que há muito tempo se concentra em expandir uma zona de proteção ao longo de sua fronteira com a Síria para se proteger de atividades de militantes curdos.
A Turquia quer criar uma área onde seja capaz de reassentar alguns dos 3 milhões de refugiados que fugiram da guerra síria e vivem dentro de suas fronteiras. Mas Ancara teve dificuldades para harmonizar os grupos desorganizados que compõem o Exército Nacional Sírio.
O grupo é composto em grande parte pela escória da guerra civil síria, incluindo muitos combatentes considerados criminosos pelos EUA. Alguns receberam treinamento dos americanos no início da guerra, mas a maioria foi descartada por ser extremista ou cometer crimes. A maior parte não tem nenhuma ideologia clara, apelando para Turquia em busca de um salário de cerca de US$ 100 por mês quando o grupo foi formado.
A milícia drusa
A minoria drusa da Síria está concentrada em Sweida, no sudoeste do país. Esta semana, os combatentes drusos se uniram ao esforço para derrubar o regime Assad, lançando uma ofensiva no sudoeste e entrando em confronto com as forças do governo, de acordo com relatos da imprensa.
Os combatentes drusos fazem parte de um grupo recém-formado de rebeldes sírios que inclui combatentes de outras origens, trabalhando sob o nome de “Sala de Operações do Sul”.
Os drusos são um grupo religioso que pratica um ramo do islamismo desenvolvido no século 11 e reúne elementos do cristianismo, do hinduísmo, do gnosticismo e de outras filosofias. Há mais de 1 milhão de drusos no Oriente Médio, principalmente na Síria e no Líbano, com presença também na Jordânia e em Israel.
Estado Islâmico
O Estado Islâmico no Iraque e na Síria, mais conhecido como Isis, tomou vastas extensões de território na Síria e no Iraque em 2014, estabelecendo um califado brutal antes de ser derrotado por uma coalizão liderada pelos EUA. Agora, quase todos os seus membros estão escondidos.
Ultimamente, em meio à instabilidade maior na região, tem havido sinais do ressurgimento do grupo na Síria. O Pentágono alertou em julho que os ataques do Estado Islâmico na Síria e no Iraque estavam a caminho de dobrar em comparação com o ano anterior. O grupo tentou repetidamente libertar seus membros das prisões e manteve uma governança oculta em partes do nordeste da Síria, disseram os EUA.
Na terça-feira, as forças do Estado Islâmico mataram 54 pessoas na região de Homs, no centro da Síria, que faziam parte do Exército do governo sírio e fugiram durante o colapso do regime Assad, de acordo com o Observatório Sírio para os Direitos Humanos. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
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