THE WASHINGTON POST - Como se tornou costumeiro, o presidente ucraniano Volodmir Zelenski apareceu virtualmente para se dirigir a um grupo operando em circunstâncias muito mais confortáveis do que seus compatriotas. No sábado, ele pediu aos 575 delegados de 40 países reunidos no Diálogo Shangri-La de Cingapura, o mais importante fórum de segurança da Ásia, para defender um mundo onde o poder não faz o que é certo.
“Se não houvesse lei internacional e o peixe grande comesse um peixe pequeno e um peixe pequeno comesse camarão... nós não teríamos existido”, disse Zelenski, citando as palavras de Lee Kuan Yew,o primeiro primeiro-ministro de Cingapura.
Zelenski passou a sugerir as implicações mais amplas da invasão da Rússia. Autoridades ucranianas argumentaram veementemente que, se a comunidade internacional tivesse tomado medidas maiores para punir e impedir a aventura militar de Moscou – por meio de sanções mais robustas e uma maior ajuda militar à Ucrânia – o presidente russo, Vladimir Putin, poderia ter sido dissuadido de começar sua guerra de conquista.
“O exemplo de hoje da Ucrânia é o exemplo para o mundo inteiro”, disse Zelenski. “O mundo deve sempre apoiar qualquer ação relacionada a medidas preventivas para evitar a violência.”
Josh Rogin, colunista de opinião global do The Post, estava na sala em Cingapura enquanto Zelenski falava e sondava o subtexto das observações do líder ucraniano em um questionamento posterior, perguntando que conselho ele tinha para Taiwan, que enfrenta uma ameaça semelhante de coerção e invasão da China como a Ucrânia enfrentou da Rússia por muitos anos.
“Ninguém se beneficia [da guerra], além de certos líderes políticos que não estão satisfeitos com o nível atual de suas ambições. Portanto, eles continuam aumentando seus apetites, suas ambições”, disse Zelenski, embora não tenha mencionado o presidente chinês Xi Jinping pelo nome. “O mundo permite que esses líderes aumentem seus apetites por enquanto, portanto, precisamos de uma resolução diplomática para apoiar os países que precisam de ajuda.”
O espírito do discurso de Zelenski apareceu no dia anterior. “A Ucrânia hoje pode ser o leste da Ásia amanhã”, declarou o primeiro-ministro japonês Fumio Kishida durante o discurso principal do fórum na sexta-feira. Kishida disse que a invasão russa da Ucrânia deveria ser um alerta para a região. A expansão constante da presença militar da China em todo o Pacífico, as contínuas provocações balísticas da Coreia do Norte e as próprias escolhas estratégicas da Rússia na Ásia – incluindo exercícios militares recentes que viram a Rússia e a China conjuntamente voarem com bombardeiros sobre o Mar do Japão – tudo pairava por trás do aviso de Kishida.
O primeiro-ministro japonês prometeu aumentar a presença diplomática e de segurança de seu país na Ásia e disse que o Japão consideraria até adquirir recursos de ataque preventivo – um desenvolvimento que poderia violar a constituição pacifista do país pós-Segunda Guerra Mundial. Mas, do ponto de vista de Tóquio, o cenário estratégico pode exigir isso cada vez mais.
“Não é de admirar que, mesmo que uma revisão do artigo constitucional do Japão que proíbe ‘forças terrestres, marítimas e aéreas, bem como outros potenciais de guerra’ permaneça improvável, a opinião pública está mudando e os limites estão se tornando mais flexíveis, com capacidades de contra-ataque agora em discussão”, escreveu Clara Ferreira Marques, colunista de Cingapura. “Mesmo Kishida, cuja família vem de Hiroshima e é menos agressivo do que outros em seu partido, está prometendo um aumento substancial nos gastos com defesa, um passo além da mentalidade pacifista das últimas décadas.”
As preocupações japonesas, no entanto, raramente refletem o clima predominante em outras partes da Ásia. Em Cingapura e em cúpulas anteriores deste ano, diplomatas de vários países do sul e sudeste asiáticos pediram a seus interlocutores ocidentais que esfriassem o que é percebido como uma corrida precipitada para uma nova Guerra Fria - impasses geopolíticos com Rússia e China, em particular, que obrigam outros jogadores regionais a “escolher lados” em meio a uma grande competição de poder.
O secretário de Defesa Lloyd Austin parecia ter ouvido essas mensagens. “Ninguém deve forçar escolhas binárias na região”, disse em Cingapura. “Nossas nações do Indo-Pacífico devem ser livres para escolher.”
Mas ele criticou a crescente “abordagem coercitiva e agressiva” da China em relação às suas reivindicações territoriais na região e alertou para o fato de Pequim fazer qualquer coisa unilateralmente para mudar o status quo prevalecente com Taiwan. Austin, como outros no Diálogo Shangri-La, invocou a guerra na Ucrânia.
“A crise na Ucrânia coloca algumas questões urgentes para todos nós”, ele disse. “As regras importam? A soberania importa? … A ordem internacional baseada em regras importa tanto no Indo-Pacífico quanto na Europa.”
Autoridades dos EUA se envolveram em uma pequena onda de diplomacia silenciosa com seus colegas chineses na semana passada, após muitos meses sem contato significativo. Na segunda-feira, o conselheiro de segurança nacional da Casa Branca, Jake Sullivan, realizou uma reunião de quatro horas e meia com o principal diplomata chinês Yang Jiechi em Luxemburgo, que autoridades dos EUA descreveram como “produtiva” e parte dos esforços do governo para “gerenciar a dinâmica competitiva” com Pequim, segundo a Axios.
Essa reunião foi precedida pelo próprio encontro “cândido” de Austin em Cingapura com o ministro da Defesa chinês, general Wei Fenghe, onde a dupla discutiu como “fortalecer as grades de proteção contra conflitos” e diminuir o risco de erro de cálculo de ambos os lados.
Os comentários públicos de Wei transmitiram muita hostilidade. “Exigimos que o lado dos EUA pare de difamar e conter a China”, disse Wei, acusando Washington de ser um “valentão” e “seqüestrar” outras nações asiáticas para seguir sua agenda na Ásia-Pacífico. “Se alguém forçar uma guerra com a China, o [Exército de Libertação Popular] não recuará.”
Enquanto Wei esperava a cessação das hostilidades na Ucrânia, ele disse que o objetivo histórico de Pequim de anexar Taiwan “absolutamente deve ser alcançado”. A China vê a nação insular democrática autônoma como parte de seu próprio território, sem se importar com a firme oposição do povo e do governo de Taiwan à unificação com o continente. Wei alertou que a China “esmagará resolutamente” qualquer tentativa de Taipei de declarar “independência” formal.
A crescente retórica de Pequim foi acompanhada por uma abordagem estratégica mais rígida. Segundo relatos, autoridades chinesas em particular transmitiram a colegas dos EUA que não veem mais o Estreito de Taiwan como águas internacionais, uma posição que pode ter implicações operacionais para as marinhas do mundo.
“Enquanto a reunião Wei-Austin parecia ter como objetivo colocar em prática proteções para Taiwan, o vai-e-vem público mostra que enfrentamos um longo caminho para qualquer tipo de estabilidade”, disse Natasha Kassam, do think tank do Instituto Lowy, especialista em Taiwan, ao Financial Times. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.