A verdade é a primeira vítima nas eleições do Reino Unido

Um surto de mentiras propagadas nos círculos políticos vem corroendo a democracia e as chances de eleger alguém que não diz a verdade aumentam

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Por The Economist
Atualização:

Winston Churchill afirmou certa vez que “a verdade em tempo de guerra é tão preciosa que deveria sempre ser acompanhada de uma escolta de mentiras”. Se essa eleição britânica, que ocorre amanhã, é guiada por alguma coisa são as mentiras tão preciosas que precisam ser acompanhadas por uma escolta de novas mentiras.

Esta eleição repousa na desonestidade: grandes e pequenas mentiras, meias verdades e pseudofatos, distorções, dissimulação e desinformação e embustes digitais em escala industrial. A população está tão desiludida com o processo político que, quando uma pessoa perguntou a Boris Johnson, durante um debate pela TV, se ele valoriza a verdade, o público deu gargalhadas. Johnson é o favorito nesta eleição e deve vencer por uma margem substancial.

O primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, a dois dias das eleições gerais Foto: Peter Powell/EFE/EPA

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Um jogo popular nos círculos políticos é debater que partido é o mais mentiroso. A resposta é que os tories (conservadores) são provavelmente os piores e os liberal-democratas os menos ruins, embora tenham o hábito preocupante de produzir notícias falsas em jornais locais. Mas o fato é que os dois principais candidatos transformaram a desinformação em uma arte.

Ambos começam com grandes mentiras – os tories afirmando que conseguirão um Brexit rápido e indolor, e os trabalhistas prometendo que seus gigantescos planos de gastos serão financiados por um punhado de bilionários (que enriqueceram roubando dos pobres). Eles então reforçam essas grandes mentiras com outras pequenas, com os tories afirmando que estão construindo 40 novos hospitais e os trabalhistas insistindo que seus rivais planejam privatizar o serviço de saúde.

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Naturalmente, grandes e pequenas mentiras sempre fizeram parte da política. Anthony Eden contou uma mentira descarada na Câmara dos Comuns em 1956, ao afirmar que Reino Unido e França não entraram em conluio com Israel na invasão do Canal de Suez. Edward Heath plantou as sementes dos atuais problemas do Reino Unido em 1972, quando insistiu que a entrada do país no Mercado Comum não envolveria nenhuma perda de soberania.

Mas agora há alguma coisa nova acontecendo nesta eleição e não somente em termos do número escabroso de mentiras. Esta é uma campanha da pós-verdade. Os partidos se comportam como se a verdade não tivesse a mínima importância e não se consideram mentirosos. Eles continuam a repetir os mesmos argumentos mentirosos mesmo os que se revelaram falsos. E eles se acusam de disseminar fake news, ao mesmo tempo que as propagam.

Por que o Reino Unido atravessou a porta da pós-verdade? Parte da culpa é da nova tecnologia. Os exemplos mais atrozes de distorção ocorrem online. Durante o debate de um líder, o Partido Conservador renomeou sua conta no Twitter para Factcheckuk e a usou para produzir e enviar mensagens partidárias disfarçadas de avaliações independentes.

A internet mudou as regras do jogo político, enfraquecendo o poder dos guardiães da velha mídia (que são regidos pela ética profissional e normas eleitorais) e abrindo o campo de batalha para fanáticos e vigaristas. E permitiu às campanhas tecerem narrativas diferentes para os eleitores pelo país. 

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Parte da culpa é dos dois principais candidatos. Jeremy Corbyn é imune à verdade porque está dominado pela ideologia global sobre os males do capitalismo e do imperialismo e as maravilhas do socialismo e do poder popular. Boris Johnson é indiferente à verdade porque está tomado pela ambição. Ele foi duas vezes demitido por mentir – uma vez pelo Times por causa de uma citação forjada e uma vez por seu partido envolvendo um caso – no entanto, ele chegou ao topo.

Ele está tão preocupado em ser chamado à responsabilidade por suas várias afirmações que (até agora em contraste com outros líderes do partido) se esquivou de uma entrevista com Andrew Neil, o abalizado entrevistador da BBC. E sua escapada deu uma reviravolta sinistra no caso do seu principal assessor, Dominic Cummings, um ideólogo maquiavélico que propagou a mentira de que o Brexit geraria US$ 460 milhões por semana para o serviço nacional de saúde.

Tribalismo

Mas há também uma força mais profunda atuando: o triunfo do tribalismo político. Na era de David Cameron e Tony Blair a política tinha a ver em primeiro lugar com política. Os políticos discutiam em que medida a abertura econômica estimularia o crescimento, ou, depois do colapso financeiro, que nível de austeridade manteria os mercados calmos. Organizações como o Departamento Nacional de Estatísticas se manifestavam com autoridade. Hoje a discussão é mais sobre tribalismo, tanto quanto economia.

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Os tories usam o Brexit para conquistar eleitores, ao passo que os trabalhistas reafirmam sua identidade como partido da classe operária. Os especialistas perderam muito da sua credibilidade entre a população em grande parte porque são vistos em primeiro lugar como membros de uma tribo (a elite cosmopolita de Londres) e não como comentaristas objetivos.

Mesmo antes de esta eleição começar seu trabalho corrosivo, somente 40% dos eleitores pesquisados pelo Reuters Institute for the Study of Journalism disseram confiar nas notícias. Essa porcentagem é bem menor entre os membros da classe trabalhadora e os eleitores que apoiam o Brexit.

A combinação dessa epidemia de mentiras e o clima de desconfiança é nociva. Distorce o processo de seleção. E quanto mais eleitores acharem que todos os políticos são mentirosos maior a probabilidade de escolherem um mentiroso para representá-los. Boris Johnson é o político ideal para uma era da pós-verdade, pois ninguém espera que ele vá manter sua palavra. Ele existe num mundo do nós contra eles, um mundo de emoção e não de razão, um mundo em que alegrar as pessoas é mais importante do que deixá-las deprimidas com fatos.

A democracia liberal depende de pessoas fazendo algo extraordinário, ou seja, escolhendo um grupo de pessoas que representam seus interesses e opiniões no Parlamento. Sem o elemento aglutinador da confiança e da verdade, esse processo extraordinário cedo ou tarde se deteriorará. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

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