A vida breve do bebê Serhii, morto em uma maternidade na Ucrânia

Com apenas 2 dias, ele está entre as mais de 440 crianças mortas e centenas de outras feridas em meio aos conflitos

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Por Samantha Schmidt e Serhii Korolchuk


NOVOSOLONE, UCRÂNIA - Na manhã em que deu à luz, Maria Kamianetska enviou uma foto do bebê ao pai dele, que ficou no vilarejo onde moram. Os olhos do menino estavam fechados, a cabecinha coberta com uma touca branca, o corpo envolto em uma toalha.

“Você tem um filho”, escreveu ela do leito hospitalar. A maternidade onde o parto aconteceu fica em Vilniansk, na região de Zaporizhzhia, uma das quatro áreas ucranianas que o presidente russo Vladimir Putin alega ter anexado.

Maria Kamianetska, mãe de Serhii, que aparece na foto no celular; ele morreu dois dias após nascer durante um ataque com mísseis da Rússia contra a Ucrânia Foto: Heidi Levine / The Washington Post

Durante os nove meses da gestação dela, seu país esteve sob ataque, e a vida dela (e também do filho) correu risco constante.

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Mas ali estava ele, pesando pouco menos de 3 quilos, saudável. Os pais escolheram o nome Serhii. Ele era o quarto filho do casal, o irmãozinho que o outro filho, de 7 anos, tanto esperava.

Mas o pai do bebê jamais teria a oportunidade de conhecê-lo.

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Perto das duas da madrugada na quarta feira, dia 23, quando Kamianetska tinha acabado de ninar o bebê e colocá-lo para dormir no berço ao seu lado, um foguete atingiu a maternidade. As paredes desabaram, prendendo Kamianetska e o recém-nascido nos escombros.

Os dois eram os únicos pacientes naquela noite. As equipes de resgate conseguiram tirar a mãe viva, com as pernas arranhadas e ensanguentadas. O único morto foi o bebê Serhii.

Uma das vítimas mais jovens da guerra, Serhii, de apenas 2 dias, figura entre as mais de 440 crianças ucranianas mortas e centenas de outras feridas até o momento como resultado da invasão russa, de acordo com o gabinete do procurador-geral da Ucrânia. O menino nem recebeu sua certidão de nascimento.

No momento que as equipes de resgate vasculhavam os restos da maternidade, os bombeiros disseram a Kamianetska que não conseguiam encontrar seu bebê.

Tudo que acharam foi uma boneca, caída de bruços no chão. “É o meu filho!” gritou ela.

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Em meio à guerra, um novo irmãozinho

Kamianetska sempre quis o quarto filho, e torcia por um menino. O filho de 7 anos, que cresceu cercado de irmãs, já estava reunindo brinquedos para mostrar ao novo irmãozinho.Sonha em pilotar um trator, como o pai, e mal podia esperar para brincar de trator com o menino.

Os pais, que conversaram com a reportagem na semana passada, tinham preparado tudo para Serhii: berço, carrinho, enxoval. Kamianetska e o pai de seus filhos, Vitalii Podlianov, estavam preparando a mudança para uma casa maior, do outro lado da rua, na primavera, onde haveria espaço para a família cada vez maior.

O casal soube da gestação no fim de fevereiro, quando soldados russos começavam o ataque à Ucrânia. Enquanto milhões de ucranianos deixaram o país, principalmente mulheres e crianças, Kamianetska e a família permaneceram no seu vilarejo, Novosolone, na região de Zaporizhzhia. Aquele era o lar deles, onde tinham criado três filhos, e onde o restante da família vivia.

Familiares de Serhii, bebê morto com apenas dois dias de vida, preparam sua cova em Zaporizhzhia Foto: Heidi Levine

Mas era também uma região cujo nome se tornaria conhecido em todo o mundo, Zaporizhzhia, local da maior usina nuclear da Europa e provável alvo de uma nova contraofensiva ucraniana.

Os ataques com mísseis se tornaram cada vez mais frequentes na área próxima à maternidade. Antes de novembro, a cidade não tinha sido alvo, disse o prefeito; nesse mês, foi atingida em três dias. Na quarta feira, o presidente ucraniano Volodimir Zelenski responsabilizou o “estado terrorista” pelo ataque à maternidade. O ministro da defesa da Rússia não respondeu aos pedidos de resposta.

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Kamianetska vivia a cerca de uma hora da frente de batalha, mas a guerra ainda parecia algo distante. “As explosões além do horizonte não me preocupavam”, disse ela. Mas, conforme se preparava para a chegada de Serhii, o estrondo foi se aproximando gradualmente da cidade.

Ela tinha visto as imagens de grávidas ensanguentadas em macas do lado de fora de uma maternidade em Mariupol, fotos que chocaram o mundo ainda no começo do conflito.

Mas, na véspera do nascimento do seu bebê, sua única preocupação era chegar à maternidade em segurança. Podlianov a levou de carro até a casa de parentes na cidade onde ela planejava dar à luz, que ficava mais perto da maternidade do que a casa deles. Então ele voltou ao vilarejo para cuidar dos outros filhos.

Na madrugada de segunda-feira, dia 21, Kamianetska chamou uma ambulância para ir à maternidade.

Bastaram duas contrações para o nascimento, que ocorreu às 8h20, medindo menos de 50 centímetros.

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Já passava da uma da madrugada quando ela ouviu o primeiro estrondo mais alto: um ataque em outra parte da cidade. Então veio a explosão.

O foguete esmagou as paredes de tijolos do segundo andar da maternidade, que ruiu sobre o andar de baixo. Ela se lembra de ouvir um médico pedindo ajuda.

Uma parte do teto de concreto caiu sobre Kamianetska, que estava de camisola na cama. Mas ela só pensava em chegar ao berço de Serhii. Gritou por ajuda enquanto tentava desesperadamente afastar os pedaços de concreto para chegar ao seu bebê. Ela lembra de sentir os pulmões se enchendo de fumaça e poeira.

Ela conseguiu se erguer da cama e rastejar até o berço, mas ficou horrorizada ao ver que estava vazio. A explosão arremessou o bebê para fora da cama.

Kamianetska agarrou o celular, usando a lanterna para procurar pelo bebê caminhando descalça pelos escombros.

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Maternidade em Vilniansk, na Ucrânia, atingida por mísseis; só havia Maria Kamianetska e seu filho Serhii no local; ele não sobreviveu Foto: Heidi Levine

Os momentos que se seguiram são um borrão: as equipes de resgate a salvando dos destroços por uma janela; paramédicos tirando os estilhaços da sua perna; o telefonema para a mãe, contando que a maternidade fora atingida por um foguete.

Mas ela lembra vivamente dos próprios gritos, pedindo para ver o filho.

Caixão pequeno e funeral rápido

Cerca de 15 pessoas se reuniram no cemitério gelado na quinta-feira, dia 24, enquanto o padre se aproximava do caixão decorando com rendas diante de si. Fez uma prece e depositou uma pequena cruz no caixãozinho - menos de um metro onde Serhii jazia, envolto em um cobertor azul. Os olhos do bebê estavam fechados, e o rosto ainda apresentava escoriações.

O funeral foi organizado rapidamente, no dia seguinte à morte. Os pais não queriam trazer o caixão para casa, onde os outros filhos o veriam, e por isso decidiram enterrar o bebê o quanto antes.

Os irmãos mais velhos de Serhii ficaram em casa, brincando no jardim, enquanto os parentes corriam para o cemitério. As crianças sabiam que o irmãozinho não viria para casa, mas os pais ainda não tinham explicado por quê.

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Vestindo pesados casacos em temperaturas próximas do zero, os parentes chegaram trazendo flores e brinquedos - um tigre de pelúcia, uma joaninha vermelha e um carrinho novo, do tamanho para um bebê. Kamianetska usava um capote preto. Nas costas, as palavras: “Tudo ficará bem. Cada dia será melhor que o anterior”.

Kamianetska olhava desolada para o caixão, debruçando-se sobre ele enquanto chorava. A mãe e a cunhada a seguravam pelos braços, ajudando-a a ficar de pé. Ela se debruçou sobre o caixão e beijou o bebê.

Então, depois que o padre respingou água sobre o caixão, dois homens o baixaram cuidadosamente na terra. O som da artilharia ecoava na distância enquanto os parentes jogavam terra no túmulo.

Enquanto os homens cobriam o caixão, a mãe relatava os acontecimentos daquela noite.

“Meu quarto foi completamente destruído”, disse ela. “Procurei o bebê em meio aos escombros. Ele estava no berço pouco antes. Estava pensando em trocar suas fraldas quando isso aconteceu.”

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Cada um dos parentes a abraçou, desejando-lhe força. Com a maioria indo embora, a mãe de Kamianetska a aconselhou quanto ao que fazer com o leite, agora que ela não amamentaria.

Naquela noite, Kamianetska sonhou com o filho. No sonho, ele tinha fome e queria mamar. Por isso, na manhã seguinte, ela voltou ao cemitério para levar biscoitos e leite para ele.

Dessa vez, levou consigo os outros filhos para ver o túmulo, para que finalmente conhecessem o irmãozinho. | TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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