Como é ir para a balada em Kiev sob a ameaça das bombas de Putin?

População da capital segue a vida confiando que os sistemas de defesa aérea manterão os mísseis distantes enquanto acompanham em tempo real os ataques russos em aplicativos

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Foto do author Carolina Marins

ENVIADA ESPECIAL A KIEV* - É quase verão na Ucrânia. Em um restaurante de comida local, em Kiev, um grupo animado faz uma longa degustação de vinhos. Nos bares e adegas, jovens se aglomeram para aproveitar a noite de calor ameno.

A única diferença desta cena para qualquer outra capital europeia é que, na capital ucraniana, os bares fecham cedo. O toque de recolher imposto pelo conflito começa à meia-noite. A Ucrânia está em guerra, mas a festa, assim como a vida, continua.

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Com o toque de recolher, as baladas migram dos bares para as casas das pessoas. Quem ainda quer curtir uma noite inteira de festa, pode passar as cinco horas do toque de recolher em alguma propriedade particular sem problemas.

“Isso é muito ucraniano”, comenta Miroslava Iaremkiv, 32, relações públicas do Ukraine Crisis Media Center, organização que recebeu a reportagem do Estadão na Ucrânia, quando escuta a surpresa dos jornalistas estrangeiros com a noite agitada da capital. “Faz parte da estratégia de sobreviver à guerra, reconstruir o mais rápido possível e retomar a vida.”

Esta reportagem é a segunda de uma série produzida pelo Estadão na Ucrânia sobre a vida da população civil em meio à guerra com a Rússia. A reportagem percorreu durante oito dias diversas cidades da Ucrânia, colhendo histórias sobre o conflito.

Pessoas caminham e ocupam mesas do lado de fora de bares e restaurantes em Kiev Foto: Carolina Marins/Estadão

Rave em horário de matinê

Na cidade que, antes do conflito, se tornava um oásis da cena europeia de música eletrônica, festejar se tornou um símbolo de resistência. Antes da guerra, Kiev era a capital das festas rave, com jovens europeus aproveitando a cidade mais barata e de relativo fácil acesso para ter uma experiência similar às famosas festas do gênero na Alemanha.

A capital ucraniana também se tornou o point de celebração dos jovens europeus conforme o país se tornava um dos primeiros a levantar as restrições contra a covid-19.

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Com o início do conflito, as celebrações pararam. Membros da comunidade de música eletrônica emitiram uma carta aberta manifestando apoio às Forças Armadas ucranianas, organizando manifestações e boicotes contra a Rússia e pedindo doações ao Exército. Meses depois, conforme Kiev foi se sentindo mais segura, as festas retornaram, com algumas adaptações.

Em uma antiga fábrica de cervejas localizada em uma das áreas mais antigas da cidade, jovens formam uma longa fila para entrar na festa mais conhecida da região. A festa, porém, não tem nome. Devido ao toque de recolher, a rave ocorre durante o dia, do meio-dia às 23h. A qualquer hora do dia a fila para entrar é enorme, cheia de jovens nas mais elaboradas vestimentas.

Em uma tarde ensolarada de quarta-feira em Kiev, ucranianos seguem as suas rotinas de trabalho e lazer apesar da guerra Foto: Carolina Marins/Estadão

As regras para entrar são repassadas inúmeras vezes antes de chegar à pista de dança. Fotos e vídeos não são permitidos, e as câmeras dos celulares são obstruídas logo na entrada. O ingresso custa o valor que você achar justo, que será integralmente direcionado às Forças Armadas ucranianas. Antes de entrar, seguranças perguntam aos estrangeiros como ficaram sabendo da festa e o que buscam ali. “Ouvimos que este é um lugar de resistência”, é a resposta padrão.

“Vocês são corajosos de virem aqui, fico feliz”, celebra um ucraniano, que revistava bolsas e mochilas dos participantes na entrada, ao saber que havia brasileiros naquele sábado, 25 de maio.

Lá dentro, parte dos valores das bebidas também é revertido para a guerra. Se a sirene de ataque aéreo soar a música para instantaneamente e, quem não se sentir seguro, pode buscar o bunker mais próximo. Mas a festa segue assim que o alarme toca novamente avisando do fim do perigo.

Na pista de dança, não se fala dos milhares de mortos, feridos e deslocados pelo conflito. É o momento de esquecer que uma guerra se desenrola poucos quilômetros dali.

Um casal de idosos observa um memorial aos soldados ucranianos mortos desde a invasão russa de 2022 Foto: Carolina Marins/Estadão

Uma vida quase normal

Em um dia comum de semana, em 22 de maio, a capital ucraniana começa a sua rotina como qualquer outra cidade do mundo: com trânsito e transporte público lotado com quem vai trabalhar.

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Os vestígios do conflito que se desenrola no Donbas, no entanto, aparecem por toda a cidade em formato de memoriais aos mortos, cemitérios de tanques abatidos e prédios governamentais cercados por barricadas de sacos de areia, barreiras antitanque e checkpoints com militares.

Mais recentemente, apagões têm se tornado frequentes conforme a Rússia mira infraestruturas críticas da Ucrânia. Muitos restaurantes e bares, porém, adquiriram geradores que ficam funcionando até que a energia seja restaurada - o que leva poucas horas.

Pessoas caminham próximo ao antigo Arco da Amizade do Povo, que representava a união entre russos e ucranianos. Monumento que ficava abaixo foi removido e arco foi rebatizado Foto: Carolina Marins/Estadão

Resiliência econômica

É esta estranha normalidade um dos pilares que parece segurar a economia ucraniana, apesar da guerra. O principal pilar da recuperação, obviamente, é a ajuda externa. O PIB da Ucrânia despencou 29% em 2022, ano da invasão russa, mas em 2023 registrou um crescimento de 2%. Para 2024 e 2025 se espera um crescimento de 3,2% e 6%, respectivamente.

Os dados ainda representam um declínio em comparação com o período pré-guerra, mas surpreendem quem esperava um país devastado e cujo território é 17% ocupado pelo país inimigo.

“Apesar da guerra, o país beneficiou-se de uma recuperação mais forte do que o esperado e um ímpeto de reforma inabalável”, observou o FMI em seu relatório de dezembro de 2023.

Mas destacou que “apesar da resiliência do povo ucraniano e da habilidade das autoridades em formular políticas para manter a estabilidade macroeconômica e financeira, o apoio externo contínuo é crítico para ajudar a restaurar a viabilidade externa de médio prazo, preparar o país para a recuperação e reconstrução pós-guerra”.

Passarela perto do Arco da Amizade exibe fotografias de Kiev, em uma se lembra o pedido de ajuda à comunidade internacional Foto: Carolina Marins/Estadão

Escudo aéreo

Esta normalidade só é possível graças aos poderosos sistemas de defesa antiaéreo da capital adquiridos com os países da Europa e os Estados Unidos. O principal deles, os interceptadores americanos Patriots, tem derrubado drones kamikazes e mísseis hipersônicos russos.

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Um privilégio que não se estende para as outras regiões da Ucrânia, incluindo da fronteira com a Rússia, e que vem se tornando um pedido constante do presidente Volodmir Zelenski de ajuda à comunidade internacional.

“Nossos parceiros sabem exatamente do que precisamos. Mais Patriots e outros sistemas modernos de defesa aérea para a Ucrânia. Acelerar e expandir as entregas de F-16 para a Ucrânia. Fornecer aos nossos soldados todas as capacidades necessárias”, apelou o líder ucraniano em 1º de junho, após uma nova onda de ataque russo.

Em regiões de fronteira, como Chernihiv ao norte, a escassez de interceptadores faz com que uma sirene de ataque aéreo seja levada mais a sério do que em Kiev ou Lviv. Mas mesmo na capital Moscou tem lançado ataques para desgastar a capacidade defensiva.

Mais recentemente, a Rússia disparou rajadas de drones e mísseis contra o território ucraniano, em resposta à autorização americana para que Kiev utilize suas armas em ataques diretos ao território russo. O resultado foram 35 dos 53 mísseis russos abatidos e 46 dos 47 drones, segundo a força aérea ucraniana.

Cemitério de tanques na Praça São Miguel, em Kiev Foto: Carolina Marins/Estadão

Uma guerra vivida online

Com esta garantia de que todos os drones e mísseis serão abatidos pelo sistema, a frente de batalha se transferiu para o celular. Todo ucraniano tem ao menos um aplicativo instalado que toca a sirene de aviso de ataque, além de outros que passam informações em tempo real dos perigos que o céu esconde.

Um desses app, o Air Alert, faz o alarme tocar no celular mesmo em modo silencioso. Mas quem já está habituado consegue desativar o som estridente e deixar apenas um som simples de notificação. O aviso de perigo chega como se fosse um SMS qualquer.

Outro reúne informações de todos os alarmes que estão ativos em um mapa de toda a Ucrânia. Em momentos de tensão, é possível acompanhar o trajeto de mísseis conforme o mapa vai mudando de amarelo (sem perigo) para vermelho (risco de ataque) em cada região. Se alguma explosão é reportada, o símbolo de uma bomba aparece no local. Regiões sob alerta há mais tempo ficam vermelho mais vívido, como é o caso da Península da Crimeia, anexada pela Rússia em 2014 e sob intenso combate desde a invasão de fevereiro de 2024.

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Pessoas aproveitam uma tarde ensolarada na quarta-feira, 21 de maio, em um praça na região central de Kiev Foto: Carolina Marins/Estadão

Quando Vladimir Putin promoveu um ataque massivo em 1º de junho, todo o mapa da Ucrânia se pintou de vermelho, com alerta de mísseis por todo lado. A notificação chegou mesmo com o aplicativo silenciado, em forma de push do próprio sistema do celular, e quando a reportagem já não se encontrava mais em território ucraniano.

Os avisos tendem a ser levados mais a sério durante à noite, principalmente de madrugada, que é quando a maioria dos ataques realmente acontecem. Depois de acordar ao som da sirene, muitos ucranianos correm para os grupos de Telegram para se informar do que está acontecendo. Informações, muitas vindas de fontes anônimas porém de alta confiança da população, orientam sobre que tipo de ataque esperar.

Na madrugada do dia 26 de maio, uma dessas fontes anônimas alertou que não era para os moradores ignorarem o alarme que deveria soar entre 2h30 e 3h30 da manhã. A mensagem informava que bombardeiros soviéticos Tu-95 haviam decolado da Rússia e se esperava o lançamento de mísseis contra a Ucrânia naquela madrugada.

Mapa da Ucrânia em um aplicativo em 1º de junho, no momento em que a Rússia promoveu ataques em massa ao país em resposta ao Ocidente Foto: Reprodução

“Por favor, não ignorem este alarme, vão para o abrigo”, foi a orientação passada à delegação de jornalistas que visitava a capital. Mas seguia com a tentativa de conforto: “não entrem em pânico. Kiev, especialmente o centro, é muito bem protegida”.

No fundo, parece que todo ucraniano virou especialista em temas militares. Alguns tiram um tempo para explicar aos jornalistas estrangeiros que não precisam se assustar toda vez que o alarme toca. “Eles vão abater”, garantem. E orientam que drones são a ameaça mais fraca, facilmente abatidos. Mísseis de cruzeiro são um pouco mais perigosos. Mísseis balísticos definitivamente devem ser levados a sério, já que o sistema pode não segurar.

*A repórter viajou a convite da Fundação Gabo, que tem um projeto para incentivar reportagens em cobertura de conflitos internacionais, em parceria com a organização Ukraine Crisis Media Center, da Ucrânia

Mapa da Ucrânia horas depois do fim dos bombardeios, indicando o fim dos alertas de ataques aéreos Foto: Reprodução
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