Quando Sandra (nome fictício) se tornou médica, há cinco anos, o Hospital Universitário Dr. Luis Razetti, em Anzoátegui, na Venezuela, contava com laboratórios, remédios e demais recursos necessários para um atendimento adequado aos pacientes. No ano seguinte, o tomógrafo parou de funcionar - problema que perdura até hoje. Agora, há deficiências e insuficiências nos mais diversos setores, de a infraestrutura aos insumos médicos básicos.
Neste cenário, quando o médico solicita um exame de raio X, por exemplo, se depara com a falta de impressoras. A alternativa é olhar o resultado no próprio computador ou tirar fotos com o celular. Os laboratórios também não funcionam mais, então o paciente tem que pagar até mesmo por um exame de sangue.
Para quem está internado, a situação é ainda mais grave. O hospital chega a ficar um mês sem fornecer comida, transferindo a responsabilidade para as famílias. Mas é com os medicamentos é que ocorrem mais improvisos: não há analgésicos, nem remédios para problemas gástricos. Antibióticos são receitados de acordo com a disponibilidade no estoque, independente de ser ou não o melhor tratamento para o paciente. Soros e demais soluções também precisam ser compradas pelas famílias, assim como a insulina para os diabéticos.
Os pacientes internados se recuperam em camas coladas umas nas outras. "Alguns estão em cadeiras, até mesmo os que enfartaram", explica Sandra. A unidade de oncologia ainda funciona e os remédios de quimioterapia são comprados pelo governo. Porém, algumas empresas farmacêuticas saíram da Venezuela, então essa ajuda não contempla todos os tipos de cânceres. Os pacientes com leucemia ou linfoma precisam conseguir os remédios em outros países, geralmente pagando em dólar.
"Ficar doente hoje na Venezuela é um luxo", define Sandra, diante do alto custo que os pacientes precisam arcar para suprir tudo que falta nos hospitais. Ela estima que 80% do tratamento seja custeado pelas famílias. Quando falta algum remédio ou produto básico no hospital, os médicos solicitam a compra, procuram em outros centros de saúde e até recorrem ao serviço social. Se nenhuma opção dá certo, é preciso que a família consiga. "Se o paciente não tem dinheiro, só sobra rezar."
Sandra, responsável pelos que estão internados, conta que um dos momentos mais difíceis da carreira foi perder uma paciente com lúpus, aos 20 anos, porque a família não tinha condições financeiras para comprar os esteroides necessários, que estavam em falta no hospital. A doença estava em atividade e ela precisava do remédio para sobreviver.
As grávidas também enfrentam riscos. Não há vitaminas, nem anestésicos para a cesárea. "Os remédios estão muito caros, as pessoas não conseguem arcar com tanto, nem mesmo eu que sou médica consigo custear algumas coisas", conta. Além de todos esses problemas, médicos, pacientes e demais funcionários também precisam conviver com uma enorme quantidade de lixo nas instalações, goteiras, esgoto e infiltrações.
A situação desse hospital não é exceção na Venezuela. A Pesquisa Nacional de Hospitais, desenvolvida pela ONG Médicos pela Saúde, com apoio do Observatório Nacional de Saúde e da Comissão de Saúde da Assembleia Nacional do país, mapeou as condições de hospitais, incluindo os universitários, em todos os Estados.
A avaliação confirmou diversos desses problemas na maioria dos centros de saúde do país. Em relação à equipamentos inoperantes ou com falhas, 89% dos hospitais públicos apresentam problemas com aparelhos de raio X, 94% com tomógrafos e 97% com laboratórios. Sobre os recursos, 78% dos hospitais não têm medicamentos ou sofrem com faltas. Além disso, 51% dos centros de saúde têm problemas nos pavilhões e 63% falta de água ou interrupção do serviço. A falta de cateteres e sondas, entretanto, diminuiu, passando de 87% no ano passado para 76% agora.
O serviço de nutrição hospitalar é falho ou inoperante em 64% dos hospitais, assim como o fornecimento de alimentação para bebês. Dos mais de 16 mil leitos hospitalares do país, 6 mil estão inativos, o que corresponde a 39% do total. Essa pesquisa é feita há quatro anos e tem como base informações fornecidas pelos próprios médicos.
Infraestrutura. A decadente mudança do cenário ao longo dos anos também choca Carla (nome fictício), que trabalha há quase 20 anos no Hospital Universitário de Caracas, na Universidade Central da Venezuela, a maior do país. Neste lugar, ela se formou, fez duas especializações e atua como médica. Hoje, convive com problemas estruturais, roubos e ameaças.
Ao chegar no hospital, ela se depara com o piso quebrado e sujo, assim como as escadas. Geralmente, apenas um elevador está funcionando, e é preciso disputar espaço e fila com emergências, pacientes com consultas marcadas, funcionários administrativos, enfermeiros, médicos. Já o elevador de carga serve para transportar comida, lixo, funcionários, pacientes e até os corpos de quem morre no hospital.
Carla também relatou que muitas instalações são mal cuidadas - muitas as camas, por exemplo, estão estragadas e com insetos - e destacou que o hospital sofre com falhas constantes nos aparelhos de ar condicionado, incluindo em áreas onde seu uso é essencial. Em seu consultório, não há computador, móveis e até mesmo espaço adequado para os atendimentos. Também não há papel, então os médicos precisam pedir para os pacientes ou trazer de casa para que possam fazer relatórios ou receitar medicamentos e tratamentos.
"Eu sinto muito de ter que observar a rápida e profunda deterioração da instituição em que me formei e onde luto diariamente com meu trabalho e com a participação na formação de outros profissionais", lamenta a médica. "Os jovens não merecem trabalhar nessas condições."
A situação mais grave, entretanto, é a falta de remédios e de produtos básicos para o exercício da medicina. Segundo ela, pacientes que passarão por cirurgia precisam conseguir o material da sutura, além de cateteres, gazes, tubos, embalagens para amostras, agulhas e encontrar um lugar que faça os exames. "Eu nunca vi uma situação tão caótica", reflete Carla. Não há também antibióticos, anti-hipertensivos, anticonvulsivantes e soluções intravenosas.
Como quem procura hospitais públicos geralmente não tem boas condições financeiras, muitos não conseguem resolver esses problemas, atrasando os atendimentos. "Nunca antes eu vi faltar jaleco, luvas e máscaras para avaliar pacientes em áreas críticas, onde até não há sabonete para lavar as mãos. Precisamos trazer tudo de casa", afirma Carla. Além de todos esses problemas, frequentemente os médicos e departamentos inteiros são roubados dentro do hospital, segundo ela. Fora do ambiente de trabalho, eles são alvos constantes de acusações e maus tratos.
Há quase dois anos começaram a circular panfletos que acusavam os médicos de serem os responsáveis pela crise, porque a inventaram e por roubarem os insumos para utilizá-los em instituições privadas. "Alguns médicos foram até ameaçados de morte", conta. "Em todos os meus anos como profissional dedicada à saúde pública jamais havia visto uma situação tão deplorável, paupérrima e crítica", avalia. "E o pior é que as autoridades não têm consciência da realidade ou são incapazes de reconhecê-la."
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