Quando, na ação Regentes da Universidade da Califórnia vs. Bakke, de 1978, a Suprema Corte dos EUA decidiu que as universidades podiam levar a raça como um fator para as admissões, os nove juízes redigiram seis opiniões diferentes. As divergências apontaram para uma incerteza duradoura nas discussões em torno das ações afirmativas, que voltaram à instância mais alta do Judiciário americano em argumentos orais.
Mesmo entre quem apoia, nem sempre há um consenso em torno da finalidade da ação afirmativa.
Primeiro, a ação afirmativa pode ser uma forma de reparação oferecida aos afroamericanos depois dos séculos que eles passaram escravizados, tendo depois disso a proteção igual da lei lhes sido negada.
É o que dá a entender o célebre discurso de Lyndon Johnson na Howard University, no qual ele falou da injustiça de se libertar uma pessoa que passara anos acorrentada e lhe dizer: “Você está livre para competir com todas as outras”, mas sem lhe oferecer reparação. Esse é o argumento moral mais claro em favor da ação afirmativa: as consequências multigeneracionais da escravidão e das leis Jim Crow exigem que seja feita uma exceção, por um período determinado, aos princípios oficiais da não discriminação.
Mas esse argumento simples encerra dificuldades. Ele entra em conflito com a leitura mais direta da Lei de Direitos Civis. Converte a ação afirmativa numa política pública voltada a uma faixa relativamente estreita da população. Sugere aos afroamericanos jovens e ambiciosos que eles precisam de paternalismo liberal para darem certo na vida e deixa implícito que terá um eventual prazo final, já que a lógica de Johnson fica menos persuasiva a cada geração sucessiva de beneficiários.
Para responder a essas dificuldades, uma teoria diferente é aventada: em vez de um argumento em favor de reparações que seja ligado explicitamente à escravidão e à segregação racial, ela apresenta a diversidade racial generalizada como uma necessidade educacional, essencial para uma experiência universitária que amplie os horizontes mentais dos estudantes.
Logo, ela deve ser algo que os encarregados das admissões de alunos precisam considerar.
Esta é a teoria proposta pelo autor da decisão do processo Bakke, Lewis Powell. Ela foi defendida por Sandra Day O’Connor na ação Grutter vs. Bollinger, de 2003. Foi abraçada pelas universidades como um conceito organizador, um mantra, uma visão do mais alto bem acadêmico.
Suprema Corte dos EUA
É compreensível. O argumento da diversidade reduziu a tensão da ação afirmativa com as leis. Criou uma base maior para a política, na medida em que qualquer minoria subrrepresentada poderia teoricamente se beneficiar. Assim, o impacto da ação afirmativa era suavizado, e os estudantes afroamericanos não se sentiriam alvos de paternalismo. E não implicava necessariamente na existência de um prazo, apesar da esperança declarada de O’Connor de que isso ocorresse até 2028: desde que as disparidades raciais persistam e a diversidade continue a ser essencial, a ação afirmativa poderá ser defendida.
Enquanto isso, do ponto de vista do interesse da universidade, a diversidade racial prometia ser uma força que legitima a meritocracia. Ao garantir a representação adequada dos principais grupos étnicos, as escolas de elite foram libertas do medo de que, se seus formandos não tivessem a cara da América em transformação, em algum momento a América poderia procurar uma classe governante em outro lugar.
Mas essa ênfase sobre a aparência dos formandos aponta para algo que se tornou um problema fundamental dessa abordagem: após décadas de discurso sobre diversidade, está evidente para todo o mundo que os corpos discentes de elite estão tão estratificados e separados quanto sempre estiveram.
Há neles uma ausência gritante de diversidade de classe, ideologia e pensamento. E, com o argumento das reparações tendo sido posto de lado, a busca generalizada por diversidade racial não traz uma resposta óbvia para o problema que Lyndon Johnson identificou, já que ela pode beneficiar um jovem da alta classe nigeriana em lugar de um descendente de escravos americanos.
Tudo isso ajuda a explicar por que o discurso da diversidade acadêmica suscita tanto cinismo. E é uma razão da eterna impopularidade política da ação afirmativa.
Mas o sistema entrou em crise de fato com a alegação de que as universidades acabaram discriminando alguns candidatos de minorias, especificamente asiático-americanos.
O caso deles dividiu ao meio a base pan-étnica da ação afirmativa. Descobrimos que, em determinado momento, nem todas as minorias se beneficiam da diversidade arquitetada.
O caso dos asiático-americanos chamou a atenção para os números específicos, para as vantagens e as desvantagens concretas para diferentes grupos raciais e étnicos que se ocultam atrás da linguagem eufemística de se “levar a questão racial em conta”.
E, ao reacender a memória das cotas judaicas nas universidades de elite americanas, ele destacou o hábito da academia de apostar na discriminação autointeressada, seu medo recorrente de que um excesso de determinado grupo poderá estragar a imagem e o nome da universidade.
Com o tempo, passei a apreciar mais o argumento inicial desta coluna: a ideia de que o impacto da escravidão foi profundo o suficiente para justificar alguma reparação contínua, quer a ação afirmativa seja ou não o melhor meio para isso.
Mas a dúvida que se coloca não é apenas se a preferência dada a afroamericanos nas admissões à universidade deve continuar. O sistema que a Suprema Corte vai julgar virou um monstro esdrúxulo de autointeresse e autoadmiração da elite, manchado por aparente preconceito antiasiáticos e marcado por tensões insustentáveis. Independentemente do que vier depois, esse sistema provavelmente merece cair.
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