Falar ostensivamente em arsenal nuclear e ogivas atômicas é uma característica típica da Coreia do Norte, mas nada comum na Coreia do Sul. Por isso, causou estranheza o anúncio no dia 26 de abril, após um encontro entre o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, e o presidente da Coreia do Sul, Yoon Suk-yeol, na Casa Branca, de um novo acordo de cooperação militar, que foi chamado de Declaração de Washington.
O governo americano prometeu reforçar a segurança de Seul, que se comprometeu a não desenvolver um arsenal nuclear próprio. Biden e Yoon concordaram em montar um grupo para decisões conjuntas em caso de ataque norte-coreano, mas elas não serão posicionadas no território aliado, como ocorria antes do fim da Guerra Fria.
O pacto deixou claro os temores sul-coreanos com o vizinho do norte. A Coreia do Norte está construindo armas nucleares cada vez mais sofisticadas que podem atingir cidades em diversos pontos dos EUA - e qualquer ponto da Coreia do Sul.
Mas é importante também para reforçar a presença e influência americana na região do Indo-Pacífico, em meio à escalada de tensões com a China e à proximidade econômica entre Pequim e Seul. No mês passado, as Forças Armadas dos EUA realizaram os maiores exercícios de guerra da história da região do Indo-Pacífico nas Filipinas. O aumento de temperatura no conflito entre Pequim e Washington também subiu como apoio americano para Taiwan, território que Pequim considera como seu.
“Os Estados Unidos tem visto a relação da Coreia do Sul com a China crescer em termos econômicos nos últimos anos”, avalia Alexandre Uehara, professor de relações internacionais da ESPM e especialista em Ásia. “Da perspectiva de interdependência econômica, o comércio sul-coreano é bem maior com Pequim do que com Washington, aumentando a percepção dos Estados Unidos de que os laços precisam ser estreitados”, acrescenta Uehara.
Segundo o professor da ESPM, a iniciativa entra no guarda-chuva de outros movimentos similares de Washington na região, como o fortalecimento do Diálogo de Segurança Quadrilateral ou Quad, formado por Estados Unidos, Índia, Japão e Austrália, países que geograficamente são próximos da China.
Armas para a Ucrânia
Antes do encontro entre os dois países, o vazamento de diversos documentos da inteligência americana sugeriram que Washington pode ter espiado conversas de oficiais sul-coreanos sobre a possibilidade de venda de armas de Seul para a Ucrânia, o que é pleiteado pelos Estados Unidos.
A indústria armamentista da Coreia do Sul está em expansão. No ano passado, o país teve um aumento de 140% nas exportações, com destaque para um grande acordo com a Polônia no valor de US$ 12,4 bilhões.
Seul tem uma política de Estado de não fornecer armas a países em guerra, impossibilitando a venda direta de armamentos para Kiev, embora tenha enviado ajuda humanitária e aderido às sanções econômicas lideradas pelos Estados Unidos contra a Rússia.
Moscou já avisou Seul que caso a Coreia do Sul opte por vender armas para a Ucrânia, a Rússia pode estreitar as relações com a Coreia do Norte.
“Caso a Coreia do Sul opte por vender armas para a Ucrânia, dá um sinal significativo em direção ao ocidente, o que levaria a uma insatisfação com a China e uma preocupação com a Rússia. Iria mexer com todos os atores internacionais envolvidos na Ásia”, avalia o professor de relações internacionais da FGV, Pedro Brites.
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A Declaração de Washington
A Coreia do Sul já flertou com a ideia de desenvolver armas nucleares na década de 1970, quando teve um programa secreto. Mas quando os EUA descobriram, foi dado um ultimato: Seul poderia continuar com seu programa, ou aceitar que os EUA defendessem o país, com toda a força de seu arsenal nuclear. A Coreia do Sul optou pelo apoio dos EUA.
O acordo costurado entre Estados Unidos e Coreia do Sul prevê que pela primeira vez Seul tenha um papel central no planejamento estratégico para o uso de armas nucleares em qualquer conflito com a Coreia do Norte. Em troca, a Coreia do Sul rejeitou qualquer esforço para a obtenção de seu próprio arsenal nuclear.
Biden também afirmou que os EUA irão enviar submarinos americanos com mísseis balísticos nucleares para atracar na Coreia do Sul. Como parte do novo acordo, os Washington e Seul criarão um Grupo Consultivo Nuclear para coordenar as respostas militares à Coreia do Norte. Os Estados Unidos prometeram consultar os aliados sul-coreanos antes de uma possível retaliação contra a Coreia do Norte.
“Um ataque nuclear da Coreia do Norte contra os Estados Unidos e aliados é inaceitável e resultará no fim de qualquer regime que tomar esta atitude”, afirmou Biden durante uma coletiva de imprensa na Casa Branca após o anuncio do acordo.
Mesmo que o acordo tenha importância estratégica para os dois países, Biden deixou claro que o pacto costurado segue dando autoridade exclusiva de Washington na decisão final de usar ou não armas nucleares. Os EUA retiraram as últimas armas nucleares da Coreia do Sul em 1991.
De acordo com o professor da FGV-SP os acordos tem uma relevância significativa porque permitem que a Coreia do Sul tenha uma garantia maior em relação a sua segurança. “O acordo mostra muito a preocupação dos Estados Unidos de efetivamente reconstruir relações com seus aliados na Ásia”, acrescentou. O especialista também sinalizou que o Japão pode querer buscar um acordo parecido com os Estados Unidos, visto que também tem preocupações com a sua segurança na região.
Seul indica que quer melhorar defesa
A opinião pública da Coreia do Seul já vinha indicando que era necessário reforçar a segurança em caso de um ataque de Pyongyang.
Segundo uma pesquisa do Chicago Council on Global Affairs, 71% dos sul-coreanos estão a favor de que Seul desenvolva armas nucleares, enquanto 56% avaliam que Washington deve implementar armas nucleares no território da Coreia do Sul.
Entre essas duas opções, 67% do público afirmou que prefere um arsenal independente da Coreia do Sul, enquanto 9% preferem que armas nucleares americanas sejam instaladas em Seul.
A Coreia do Sul é signatária do Tratado de Não Proliferação Nuclear, que a proíbe de obter armas nucleares. Portanto, o compromisso de não construir suas próprias armas não é novo. Mas as nações podem se retirar do tratado apenas com uma notificação para a ONU.
Apesar da intenção sul-coreana, especialistas ouvidos pelo Estadão avaliam que a Coreia do Sul deve se manter dentro do guarda-chuva norte-americano neste momento.
“Não vejo perspectiva da Coreia do Sul ter armas nucleares, isso geraria uma tensão muito grande na região e não seria um fator de estabilização ou de melhoria na questão de segurança nacional. Na minha avaliação a situação poderia até piorar”, afirmou o professor da ESPM.
Para Youngshik Daniel Bong, professor do Instituto de Estudos sobre a Coreia do Norte da Yonsei University, de Seul, o país asiático não deve ir atrás da obtenção de armas nucleares até o final do governo de Joe Biden nos Estados Unidos e o governo de Yoon Suk-yeol na Coreia do Sul.
“Se Biden perder nas eleições presidenciais de 2024 e o ex-presidente Donald Trump ou um presidente dos EUA semelhante a Trump for eleito, o acordo pode retroceder para a estaca zero e a nova administração dos EUA, especialmente se estiver comprometida com a política externa America-First, que foi adotada por Trump em seu primeiro mandato, pode estar disposta a deixar a Coréia do Sul desenvolver armas nucleares”, afirmou o professor sul-coreano.
Segundo Pedro Brites, professor da FGV, Seul não tinha interesse imediato no desenvolvimento nuclear, mas usou o discurso como barganha para obter mais garantias de segurança dos Estados Unidos.
Coreia do Norte
O tratado anunciado por Seul e Washington ocorre em um momento crítico nas tensões da península coreana. Em março, o líder supremo da Coreia do Norte, Kim Jong-un, ordenou o disparo de quatro mísseis balísticos intercontinentais após a realização de exercícios militares conjuntos entre Coreia do Sul e Estados Unidos, que foram consideradas as maiores manobras militares em cinco anos, segundo o Exército sul-coreano.
Pyongyang vem tentando aprimorar o seu arsenal nuclear e chegou a testar um novo drone submarino de ataque nuclear capaz de “provocar um tsunami radioativo em larga escala”, segundo noticiou a agência estatal de notícias KCNA.
Segundo a diretora do programa de pesquisa sobre Coreia do Norte do Stimson Center, centro de estudos baseado em Washington, Jenny Town, a Declaração de Washington reforça a retórica “hostil” dos Estados Unidos para Pyongyang.
“A Coreia do Norte olha para este acordo como mais uma justificativa para a obtenção de armas nucleares. No longo prazo, o pacto reduz qualquer tipo de negociação sobre redução de armas, muito menos a desnuclearização da península coreana”, afirma a especialista.
Town destaca que apesar do crescimento militar de Pyongyang, a Coreia do Norte segue sendo o país militar mais fraco no conflito, reduzindo qualquer possibilidade de um equilíbrio na região.
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Pequim sentiu
Após o anuncio do acordo, a China afirmou que os EUA e a Coreia do Sul não devem provocar um confronto com a Coreia do Norte.
“O que os Estados Unidos estão fazendo tem a intenção de provocar confronto entre os dois lados, abala o regime de não proliferação nuclear e os interesses estratégicos de outros países”, acrescentou um comunicado de Pequim.
De acordo com a diretora do programa de pesquisa sobre Coreia do Norte do Stimson Center, Jenny Town, a polarização entre Estados Unidos e China amplia o apoio militar e político que Pyongyang deve receber de Pequim e Moscou. “A Coreia do Norte tem mais valor agora para Pequim e Moscou, em uma batalha de vontades com os Estados Unidos e seus aliados. Portanto, enquanto os testes e exercícios implacáveis da Coreia do Norte agitarem a segurança na região, deve receber mais apoio do eixo composto por China e Rússia”.
Japão e Coreia do Sul reforçam laços
Compartilhando temores de um ataque da Coreia do Norte, Japão e Coreia do Sul voltaram a estreitar os laços apesar de diferenças históricas por conta da ocupação japonesa do território coreano que durou de 1910 até 1945. Segundo estimativas, 150 mil coreanos foram forçados a trabalhar em fábricas e minas japonesas durante os anos do conflito.
Em março, o primeiro-ministro do Japão, Fumio Kishida e o presidente da Coreia do Sul, Yoon Suk-yeol, se reuniram pela primeira vez em 12 anos.
A viagem ocorreu após Tóquio e Seul chegarem a um acordo para resolver o impasse da indenização de sul-coreanos submetidos a trabalhos forçados. Além disso, o Japão suspendeu as restrições para a exportação de semicondutores para a Coreia do Sul.
“Meu coração dói quando penso nas muitas pessoas que sofreram e na dor terrível das difíceis circunstancias da época”, afirmou Kishida, em um aceno para melhorar as relações com a Coreia do Sul. Em contrapartida, Suk-yeol apontou que espera tornar as relações entre os países “melhores do que nunca”.
Na avaliação de Youngshik Daniel Bong, a visita de Kishida foi muito significativa e a relação entre os países deve se aproximar ainda mais, com compartilhamento de informações militares e exercícios conjuntos.
Já para a diretora do programa de pesquisa sobre Coreia do Norte do Stimson Center, Jenny Town, as relações entre os dois países continuarão melhorando enquanto Pyongyang continuar ativamente testando novos sistemas de armas.
A especialista também avalia que não existe um apoio irrestrito para a aproximação de Japão e Coreia do Sul entre a opinião pública e a classe política dos países.
“Não há apoio generalizado para as medidas que o presidente da Coreia do Sul está adotando, seja em Seul ou Tóquio. Embora essa tendência deve continuar no atual governo, é improvável que seja sustentável durante uma transição política na Coreia do Sul”, acrescentou Town.
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